Capítulo 99: Espiões na noite
Me despedi de todos no Matadouro com um aceno discreto, sentindo o peso de um dia árduo de treinamento nos músculos doloridos. O corpo clamava por descanso, mas a mente vibrava com a adrenalina do combate. Ainda havia muito a aprender, muito a aperfeiçoar, mas por ora, o cansaço superava a vontade de continuar. O recado de Pandora ainda ecoava em meus ouvidos:
— Descanse, amanhã será um dia cheio. Recupere suas forças.
O caminho de volta à mansão era familiar, e sem que percebesse, eu já havia internalizado parte do treinamento. Minha mana circulava por reflexo, amplificando meus sentidos, como uma segunda pele envolvendo cada fibra do meu ser. Os sons da cidade pareciam mais nítidos, desde o murmúrio distante dos mercadores recolhendo suas barracas, ao tilintar ocasional de moedas e o farfalhar do vento entre os becos estreitos. Até mesmo os odores eram mais vivos: o cheiro metálico do sangue ressecado em minhas roupas, a poeira quente da rua, o leve aroma de especiarias que pairava no ar.
Foi então que senti.
Uma nota dissonante na melodia da cidade. Fraca, sutil, mas inconfundível. Algo me observava das sombras. Pequeno, rastejante, carregando uma sensação familiar. Miasma.
Continuei andando, forçando os passos a manterem seu ritmo natural. Não olhei para trás, não dei qualquer sinal de que havia notado sua presença. Queria ver até onde aquilo iria. O espião seguiu-me como um fantasma silencioso, deslizando entre as sombras, esperando… observando.
Aguardei até que estivesse suficientemente longe do Matadouro, onde as ruas se estreitavam e poucos olhos curiosos podiam testemunhar o que eu faria. Então, com um gesto fluido e um comando mental preciso, conjurei uma mão fantasmagórica. O ar ao meu redor estremeceu com a súbita emanação de mana.
A criatura foi arrancada das sombras e ficou suspensa no ar, debatendo-se em vão. Uma ratazana. Olhos escuros e arregalados, corpo retorcendo-se em espasmos inúteis. Não era uma ratazana comum—sentia isso na essência enegrecida que pulsava dentro dela.
Inclinei a cabeça levemente, observando-a como um predador que analisa sua presa.
— Vamos ver os segredos que você esconde.
Minha voz saiu num sussurro quase gentil, mas carregado de intenção.
Deixei que um fio de miasma fluísse da ponta dos meus dedos até o pequeno corpo trêmulo. Uma semente de escuridão pulsava dentro do cérebro do animal, como um parasita adormecido. Com um estalo de energia, cortei sua consciência. O corpo relaxou de imediato, pendendo como um fantoche sem cordas.
Apressei-me de volta para casa, atento aos arredores, buscando qualquer outro indício de que eu estivesse sendo seguido. Cada sombra parecia mais densa do que o normal, cada canto escuro parecia respirar. O ar noturno tornou-se pesado em meus pulmões. Mas não havia tempo para hesitar.
Ao chegar à mansão, fui direto à escrivaninha, onde Philip já me aguardava. Ele sabia. Não precisava perguntar, nosso elo não permitia esses segredos triviais. Seu olhar brilhava com curiosidade, ele queria saber que presa eu tinha capturado.
Depositei a criatura sobre a madeira fria.
Ela despertou num espasmo de horror. Suas pequenas patas arranharam o tampo da mesa, tentando se debater, mas a mão fantasmagórica a mantinha presa como se amarrada por correntes invisíveis.
Antes que pudesse resistir, deixei que meu miasma se infiltrasse nela.
A primeira barreira surgiu de imediato. Era uma resistência tênue, quase instintiva, como se uma vontade externa tentasse manter a criatura selada. Um último esforço patético para proteger seu mestre.
Sorri.
Aumentei o fluxo.
O bloqueio se desfez como vidro rachando sob um golpe preciso, e as imagens invadiram minha mente como uma enxurrada.
Vi a mim mesmo, de fora para dentro. Meu próprio rosto, meus próprios movimentos. Desde o momento em que saí da mansão, cada golpe trocado no Matadouro, cada expressão que fiz, cada instante capturado por olhos que não eram meus.
Era estranho ver-me assim, como se assistisse a um teatro onde eu era o protagonista e não sabia a trama, mas gostei do que vi. Meus movimentos eram afiados, minha postura fluía com mais naturalidade do que eu imaginava. O treino estava funcionando e eu era impressionante.
Mas eu queria mais, mais informações.
Aprofundei minha influência, injetando minha vontade junto de mais miasma, buscando o que estava por trás da criatura.
Foi então que senti.
Uma infinidade de pequenas mentes se conectou à minha, uma rede invisível tecida pela escuridão. Era imensa. Ratos, insetos, corvos. Todos espalhados pela cidade, observando, ouvindo, esperando.
E no coração dessa teia, dois olhos se voltaram para mim.
Frios. Profundos. Predadores. Havia algo neles além da simples observação, uma presença faminta, uma vontade implacável de subjugar, de esmagar qualquer um que ousasse se opor aos seus desejos.
A conexão se rompeu instantaneamente, como se uma lâmina invisível a tivesse cortado. Uma dor aguda explodiu em meu crânio, como se um prego fosse martelado entre meus olhos. Cambaleei, agarrando-me à mesa, respirando fundo para conter a vertigem.
Mas eu já havia visto o suficiente. Tinha discernido duas informações.
A primeira era que os espiões estavam disseminando maldições de ossos por diversos pontos da cidade: pequenos crânios impregnados de miasma, enraizando sua influência sombria como sementes de uma praga. O choque me atingiu como um golpe frio. Na casa de André, o adoecimento de sua mãe e irmã não fora obra do acaso, mas sim desse instrumento nefasto. Se já haviam causado tanto em uma única casa, o que poderiam desencadear espalhados por toda a cidade?
A segunda era que todos os participantes do torneio dos jovens nobres estavam sendo seguidos, exceto os poucos que não estavam na cidades. Cada um deles, vigiado por olhos invisíveis.
Quando a realidade voltou a se encaixar ao meu redor, percebi que a ratazana jazia imóvel. Seu pequeno corpo se contorcia em espasmos involuntários, até que um verme negro emergiu lentamente de sua boca.
Philip observou a criatura com um fascínio predatório, a saliva já se acumulando em suas pequenas presas afiadas.
— Vai em frente — murmurei, e ele não hesitou.
Em um instante, o verme desapareceu na boca de Philip, e um tremor percorreu seu corpo, um eco da entidade que eu havia tocado. Ele se encolheu, estremecendo, e percebi que precisava de mais miasma para digerir aquela coisa. Atendi à sua necessidade, sentindo a fome voraz que queimava dentro dele. Um guincho escapou de sua garganta, um som primal, quase de êxtase, antes de se encolher como uma bola, imerso em seu próprio processo.
Com a mão fantasma, ergui a ratazana inerte, envolvendo-a em minha magia. Um simples comando, e uma esfera de fogo surgiu dentro da prisão invisível. As chamas consumiram a criatura rapidamente, reduzindo-a a cinzas que se dispersaram no ar.
Soltei um longo suspiro e segui para a sala de banho. A água quente me ajudaria a aliviar a tensão acumulada no corpo e na mente, preparando-me para um sono sem inquietações. Amanhã era um dia decisivo. Germano já deixara claro que não hesitaria em tentar me matar na arena. Meu foco deveria estar completamente voltado para a luta. Espiões sorrateiros, miasma e a perseguição aos participantes do torneio teriam que esperar.
Ainda assim, a sombra do que eu havia descoberto pairava sobre mim. Não poderia ignorar o perigo.
Peguei pena e papel, decidindo escrever para minha mãe. Cifrei cuidadosamente a mensagem, relatando a presença dos pequenos espiões e das maldições. Ela precisava saber. Poderia proteger Cassiopeia e meus outros meio-irmãos antes que fossem alcançados por aquelas criaturas sorrateiras. Pedi a um dos serviçais que entregasse imediatamente no restaurante.
Além disso, amanhã, antes da luta, avisaria Claire, Joaquim, Joana, Dante e Gérard. Eles também estavam sendo vigiados. Precisavam estar preparados.
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