Capítulo 102: A batalha do Matadouro (2)
Com a espada em punho, disparei pelos corredores como um raio, meus pés mal tocando o chão frio e ensanguentado. Cada passo ecoava o ritmo descompassado do meu coração, uma batida apressada e errática que parecia querer escapar do peito. As paredes ao meu redor contavam uma história de horror e desespero: membros dilacerados, manchas escuras que se espalhavam em padrões caóticos e o cheiro metálico e rançoso do sangue seco. O que quer que tivesse passado por ali, deixara apenas destruição e cadáveres mutilados como lembrança.
A cada curva, eu reforçava minha determinação. O medo roçava minha mente como garras afiadas, mas eu o afastava com pura força de vontade. Tinha a sensação sufocante de que, se hesitasse por um único segundo, todos ali morreriam — e o peso dessa responsabilidade fazia meu coração bater descompassado.
O ar ficava mais denso a cada passo. Era como respirar através de um pano úmido e podre. O miasma corrompia o ambiente, impregnando as paredes e o chão com uma umidade fria e doentia. As sombras pareciam se esticar, como se algo faminto se esgueirasse logo além do alcance da visão.
Achei aquilo estranho. O grosso das criaturas estava na arena, mais ao fundo do complexo, então o miasma não deveria ser tão forte ali. Mesmo assim, avancei. Meus músculos queimavam e o fôlego vinha em puxadas rasas, mas eu não podia parar. Eu não podia me permitir fraquejar.
Os corredores se alargaram, sinal de que o lobby estava próximo. Antes que pudesse reagir, o som de aço contra carne e grunhidos guturais preencheu o ar. Luta. E pelo barulho, não estava indo bem. Num último esforço, abaixei o ombro e me joguei contra as portas duplas à frente. O impacto foi brutal: uma das portas voou longe, arrancada das dobradiças, enquanto a outra se despedaçou contra a parede oposta, espalhando lascas de madeira pelo chão.
A visão que me aguardava me fez parar por um instante.
No centro do saguão, duas criaturas monstruosas dominavam o ambiente. Eram colossos grotescos, sua pele parecia a costura malfeita de cadáveres — humanos e não humanos — criando um mosaico profano de carne morta e apodrecida. As costuras grotescas entre os pedaços de corpos formavam padrões doentios, e suas respirações eram acompanhadas por um ruído úmido e pegajoso. O miasma que emanavam era tão denso que parecia ondular o ar ao redor, uma neblina escura e sufocante que fez meus sentidos gritarem em alerta.
No topo de cada abominação, uma figura encapuzada se erguia em um cesto improvisado, como um rei profano em seu trono de carne morta. Eram cavaleiros pálidos, suas peles translúcidas quase se fundindo com os mantos desgastados que os envolviam. Eles brandiam cetros retorcidos, adornados com crânios e ossos, cada movimento desenhando no ar runas sombrias e contorcidas. Seus olhos, minúsculos pontos vermelhos cravados em rostos cadavéricos, observavam a batalha com uma frieza inumana. As auras que os envolviam traziam à memória a presença de Drael, uma escuridão sufocante que parecia se alimentar da própria luz ao redor, distorcendo o ambiente em sombras vivas.
Meus companheiros estavam espalhados pela sala, lutando desesperadamente.
Aiden usava seu teleporte para evitar os ataques esmagadores da abominação. Ele surgia em borrões roxos e desaparecia antes que as garras imundas o alcançassem. Apesar da habilidade, o suor em seu rosto mostrava que a exaustão estava se aproximando.
Joaquim, ao seu lado, estava pior. Seu braço esquerdo pendia inerte, sangue escorrendo de um ferimento profundo no ombro. Mesmo assim, ele avançava, seus golpes menos precisos do que o normal, mas ainda assim ferozes.
Claire estava de joelhos ao lado de Victor, que jazia caído, o peito subindo e descendo lentamente. Suas mãos brilhavam com uma luz esverdeada e frágil enquanto tentava usar as poucas técnicas de cura que eu havia lhe ensinado. Seu rosto estava manchado de lágrimas e concentração.
— Aguenta firme, Vic… — ela sussurrava, como se a própria voz pudesse ancorá-lo à vida.
Joana dançava na periferia da batalha. Seu bastão traçava arcos no ar, desviando os ataques do monstro. Mas suas pernas tremiam e seu fôlego era irregular. Cada vez mais, o monstro chegava perto de tocá-la, e um único golpe poderia ser o fim.
No outro lado do saguão, Rosa e Pandora enfrentavam a segunda criatura. Elas se revezavam em ataques rápidos, tentando confundir o monstro, mas seus esforços pareciam inúteis. Nenhuma de suas lâminas fazia mais do que arranhar a carne apodrecida, e as investidas da criatura faziam o chão tremer. A cada ataque, as garras deixavam um rastro profundo no chão, não me permitia imaginar o que fariam se acertassem as mulheres.
No canto mais afastado, Dante estava ajoelhado, as mãos agarradas à cabeça. Ele balbuciava palavras sem sentido, sua mente claramente perdida em meio ao caos. As veias de seu pescoço saltavam, seu rosto estava rubro, e seus olhos reviravam como se visse horrores invisíveis.
Eu precisava agir.
Em uma fração de segundo, decidi ir até Dante. O caos da batalha fervia ao meu redor, e se eu estivesse certo, o miasma denso e pútrido estava interferindo na semente de carniçal que eu havia implantado em sua mente.
A presença daqueles cavaleiros cadavéricos, com seus cetros retorcidos e olhos rubros, parecia pulsar em sincronia com o miasma. Era quase como se o próprio ar estivesse impregnado de comandos silenciosos, tentando puxar Dante para uma escuridão sem volta. Eles estavam tentando dominá-lo e usurpar meu controle, transformando-o em mais uma marionete do seu exército profano.
A urgência queimava em minhas veias. Se Dante sucumbisse, não apenas perderíamos um aliado, mas ganharíamos mais um inimigo. E um inimigo que conhecia cada fraqueza nossa.
Deslizei até ele, jogando meu corpo para baixo, desviando de um braço descomunal que se chocou contra o chão ao meu lado. Terra e lascas de pedra voaram, cortando minha pele. Quando alcancei Dante, estendi minha mão, conectando meu miasma ao dele. Senti a resistência da influência inimiga, um puxão gelado e faminto. Mas apertei os dentes e avancei.
O verme dentro de sua mente recuou, reconhecendo meu toque. A dor nos olhos de Dante se dissipou e, em meio à confusão, ele me viu.
— Mestre… — sua voz saiu rouca, entrecortada, como se falar lhe causasse dor.
— Sem tempo para isso, Dante. Levante-se. Precisamos de você.
Ele assentiu, trêmulo, mas determinado. Quando ficou de pé, sua mão agarrou a espada ao lado e seus olhos ganharam o brilho de quem tem uma dívida a saldar.
Sem perder o ímpeto, corri em direção à abominação que atacava o grupo de Aiden. Senti meu mana pulsar, percorrendo meus músculos e ossos, acelerando meus reflexos e ampliando minha força. Entrei no combate como uma sombra, movendo-me rápido demais para ser visto até o último segundo. Minha lâmina cortou os tendões da perna da criatura, o metal mordendo a carne pútrida e liberando um jato de sangue negro e viscoso.
O cheiro era insuportável, uma mistura de podridão e enxofre que fez meus olhos lacrimejarem. No entanto, o monstro não reagiu. Sua perna permaneceu firme, mesmo com os tendões destruídos. Não havia dor, não havia hesitação. Apenas a implacável vontade de destruir.
— Não adianta! — gritou Joana, desviando de mais um golpe. — Essas coisas não sentem nada!
Mas havia algo ali. Uma fagulha de estratégia surgiu em minha mente. Se não sentiam dor, então sua fraqueza não estava no corpo, mas no controle.
— Dante! — chamei, sem desviar o olhar da criatura. — O cavaleiro! Mire no cavaleiro!
A expressão de Dante endureceu. Sua figura ganhou nova vida e, num movimento fluido, ele disparou em direção à abominação. Sua espada brilhou, uma linha prateada que atravessou o ar, mirando diretamente no ser pálido e encapuzado que comandava o monstro.
Mas não seria nada fácil. A criatura, com um gesto simples, interceptou seu ataque. Sua mão grotesca se moveu com uma agilidade inesperada para algo de seu tamanho. A espada de Dante ricocheteou, e fui forçado a dar um passo atrás para sair de seu caminho.
O cavaleiro empoleirado em suas costas riu, um som fino e agourento que se misturou ao som da carne se retorcendo e ao rangido das costuras que mantinham a abominação unida. O monstro me encarou, seus olhos múltiplos — alguns humanos, outros de animais desconhecidos — piscando fora de sincronia. Senti o peso de sua atenção, como se uma sombra fria envolvesse minha alma.
— Recuem um pouco! — minha voz soou firme, mas carregava a urgência necessária. — Recuperem o fôlego enquanto eu o distraio!
Os olhares cansados de meus amigos se voltaram para mim. Vi o alívio imediato nos rostos de Claire, Joaquim e Joana, mesmo em meio ao sangue e suor. Sem hesitar, eles se moveram, formando uma linha defensiva mais atrás, ganhando o tempo precioso que precisavam.
Minha mente trabalhava rápido. A mana fluía em minhas veias, como fogo líquido, alimentando minha força e acelerando meus reflexos. Observei o colosso, analisando cada detalhe: as costuras grossas que uniam os diferentes pedaços de carne, os tendões expostos, o peso descomunal que fazia o chão gemer sob seus pés deformados.
Uma ideia surgiu. Não era perfeita, mas naquele momento, hesitar significava morrer.
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