Capítulo 107: A esperança de Pandora
Com um comando mental, enviei Philip para realizar a varredura na área externa do Matadouro. Mantive nossa ligação ativa, querendo ver com meus próprios olhos o que acontecia lá fora. Através da visão do camundongo, o mundo assumiu uma nova perspectiva: ângulos baixos, sombras ampliadas e o cheiro metálico do sangue impregnando o ar. Philip deslizou silencioso pelas frestas e corredores, suas patinhas quase inaudíveis contra o chão de pedra fria. Sua ordem era me chamar se qualquer coisa digna de nota fosse avistada.
Enquanto minha mente dividia-se entre o aqui e o agora, meus amigos se levantavam ao meu redor, movendo-se como sombras cansadas. Quando todos estavam prontos, tomei fôlego e disse:
— Vamos descer então.
Peguei Pandora no colo. O peso dela era um lembrete constante de nossa fragilidade. Sua trança, desfeita, caía em mechas sujas sobre meu braço, o rosto pálido e sem expressão. Ao meu lado, Joaquim trouxe o corpo de Joana consigo, o corpo dela balançando de forma perturbadora a cada passo. Aiden, ainda inerte e parecendo atordoado, preferiu deixar Victor ali. Sua decisão parecia mais um abandono de si mesmo do que do amigo. Claire e Dante, sem ferimentos visíveis, seguiam por último.
O corredor que nos levava à arena parecia mais longo do que antes. As paredes estreitas abafavam nossos passos, mas não os pensamentos que pulsavam em nossas cabeças. Cada um de nós estava sozinho em sua dor, caminhando juntos apenas por inércia.
Quando finalmente pisamos na areia da arena, a realidade nos atingiu como um golpe. A destruição era absoluta. Com a ajuda e organização de Rosa, os gladiadores sobreviventes já estavam fazendo uma triagem nos corpos caídos. Havia um método cruel naquilo — separar os mortos dos vivos, reconhecer quem ainda podia ser salvo e quem já havia partido.
Entre os corpos caídos, algumas pessoas ainda respiravam. Feridas gravemente, mas vivas. Era um milagre distorcido. Em um canto, uma fila de corpos começava a se formar. Os gladiadores que morreram em combate estavam sendo dispostos lado a lado, uma procissão silenciosa. A visão era chocante. Representavam quase a totalidade de todos os gladiadores presentes no dia. Uma geração de guerreiros varrida em questão de horas. Marreta e Marius, velavam Ludo.
No outro canto, os feridos eram acomodados no chão, alguns tendo o raro conforto de um lençol, tapeçaria ou até mesmo uma cortina rasgada sob seus corpos. Gladiadores e espectadores misturavam-se, formando uma massa caótica de carne dolorida e ensanguentada. Alguns gemiam baixinho, presos em sua dor silenciosa, enquanto outros gritavam por socorro, as vozes ecoando pela arena como lamentos de almas perdidas. Mas o mais inquietante era o silêncio — o silêncio daqueles cujos olhos fixos no nada já haviam se perdido para além da dor, mergulhados em um vazio onde nem mesmo o sofrimento encontrava voz.
Gérard e Domina estavam ali, lado a lado. Meu “primo” estava desmaiado, o antebraço esquerdo amputado de forma brutal. O coto enfaixado improvisadamente, o sangue ainda encharcando as bandagens. Domina, sem sua máscara, tinha metade do rosto ensanguentado. Ela chorava, sem vergonha, sem controle, as lágrimas lavando o sangue seco em sua pele, por ela, e por ele.
Entre eles, pude ver Malkus, o curandeiro estava vivo e se movia entre as fileiras de feridos. Seu cabelo branco estava desgrenhado, o avental empapado de sangue. Dois auxiliares o seguiam, carregando bandagens, frascos e instrumentos médicos. A pressão do trabalho o deixava à beira do colapso, mas ele seguia, cada movimento preciso, cada decisão vital.
Coloquei Pandora entre os feridos, tentando acomodá-la da melhor forma possível. Joaquim colocou o corpo de Joana no chão e se sentou ao lado dela, seus olhos vazios, apenas esperando pelo seu atendimento. Aiden não se mexeu, sua presença era quase um espectro entre nós, temia por sua mente.
Rosa nos viu e veio em nossa direção. Sua expressão era uma máscara de cansaço, os olhos fundos, mas ainda havia nela uma centelha de liderança.
— O que vocês decidiram? — Sua voz estava rouca, como se tivesse gritado ordens durante horas. — Nossa parte mais interna quase não sofreu danos. Minha equipe de copa e cozinha, tirando os atendentes que estavam na arquibancada e camarotes, está viva. Meus estoques de comida também estão intactos. Só não tenho outros tipos de recursos, como remédios. Se quiserem ficar, são bem-vindos. Até tudo se estabilizar, vamos ficar bem aqui dentro.
A ideia de segurança era tentadora, mas a incerteza sobre o mundo lá fora era um peso constante.
— Decidimos descansar e recuperar nossas forças — respondi. — Queremos voltar para a cidade. Eles precisam verificar suas casas e parentes. Vou com eles. Aceito aquela poção que prometeu, para Joaquim.
Rosa assentiu. Havia uma vulnerabilidade em seu olhar, uma rachadura na fachada forte que ela sempre mostrava.
Antes que ela pudesse responder, uma voz grave ecoou pela arena.
— Pandora! Cadê você?
A voz vinha da passagem que levava à entrada escondida no bar. O homem que surgiu era forte e encorpado, de cabelos e barba grisalhos, os olhos duros como pedra. Hass. Sua presença era como uma sombra se espalhando pela arena.
Rosa endireitou os ombros e foi ao encontro dele. Fui atrás, sabendo da ligação profunda entre ele e minha treinadora.
— Não quero encrenca com você ou Haroldo — disse ela, tentando manter o tom neutro, mas o medo atravessava suas palavras.
— Também não quero — ele devolveu, sua voz carregando uma ameaça velada. — Na verdade, Haroldo não vai te incomodar. Nunca mais.
O sorriso que ele ofereceu não era de conforto. Era uma expressão doentia, que carregava uma promessa de dor.
— A única coisa a se preocupar, vinda de Haroldo, é que a elfa maluca canibal dele está solta pela cidade sem controle. Tome cuidado, ela é perigosa. Nem eu sei se posso com ela… — Seus olhos me encontraram, e senti o peso de sua presença. — Cadê Pandora?
Rosa lançou um olhar breve para mim, e eu, instintivamente, olhei na direção dos feridos. O movimento não passou despercebido.
Hass me olhou, ódio e preocupação em seus olhos era palpável, quase recuei um passo.
— Ela está ferida? — Sua voz era uma lâmina fria. Não esperou a resposta, caminhando a passos largos até Pandora.
Quando a viu, estacou. Seu corpo parecia vibrar, como se cada músculo estivesse pronto para explodir.
— O que aconteceu?
— Ela enfrentou um morto-vivo diferente — Rosa explicou rapidamente. — Uma espécie de mago controlador. Ele a atingiu na cabeça com seu cetro.
Hass se ajoelhou ao lado dela, a mão grande e calejada pairando sobre sua testa. A mana ao seu redor se agitou, ondulando como um mar revolto.
— Que diabos? — Ele murmurou, sua voz agora tomada por uma perplexidade sombria. — Não consigo penetrar. Seu oceano de mana está bloqueado.
A cada palavra, meu estômago se apertava mais, o medo se enrolando em minhas entranhas como serpentes. O estado de Pandora era pior do que eu imaginava. O que quer que aquele mago morto-vivo tivesse feito, deixara marcas que iam além do físico, esgueirando-se pela alma dela como um veneno insidioso. Dei um passo à frente, e sob o olhar intenso de Hass, quase vacilei. Seus olhos eram como lâminas afiadas, cortando qualquer camada de segurança que eu tentava manter. Mas, se havia uma chance de ajudar Pandora, eu precisava tentar.
— Acho que posso ajudar ela — murmurei, tentando firmar a voz que ameaçava trair meu nervosismo. — Ela me ajudou tanto… Devo isso a ela.
Os olhares de Rosa e Hass recaíram sobre mim, cheios de expectativa e desconfiança.
— Preciso fazer isso em um lugar isolado e quieto — acrescentei, deixando claro o que era necessário. — E a sós.
Rosa franziu o cenho, o olhar dela oscilando entre preocupação e esperança.
— Tem certeza? — Sua voz era um sussurro, carregada de uma vulnerabilidade rara.
Assenti, mesmo que por dentro tudo em mim tremesse.
Hass me fitou com intensidade, cada ruga em seu rosto reforçando a dureza daquele homem. Sua presença era esmagadora, uma tempestade prestes a se soltar.
— Faça logo — rosnou, a voz rouca e imponente soando como um trovão contido. — Mas ouça bem, garoto… Se algo acontecer a ela, não vai existir lugar nesse mundo onde você possa se esconder de mim.
Engoli em seco, o peso da ameaça impregnando o ar.
— Eu entendo — respondi, minha voz baixa, mas firme.
Troquei um olhar com Rosa, buscando nela o apoio que eu precisava. Ela apenas acenou, seu rosto uma máscara de controle, mas os olhos brilhando com a fagulha de esperança que todos ali precisavam.
— Vamos — falei, inspirando fundo. — Vamos levar ela até algum lugar onde eu possa tentar ajudar.
Hass se moveu rapidamente, abaixando-se ao lado de Pandora com uma delicadeza que parecia impossível para alguém tão imponente. Em poucos segundos, ela estava em seus braços, o rosto adormecido repousando contra seu peito largo.
Rosa abriu caminho, guiando-nos por um corredor lateral que levava às áreas mais internas do Matadouro. Os passos de todos ecoavam nas paredes estreitas, criando uma melodia sombria, um prenúncio do que viria a seguir.
Eu não sabia o que encontraria ao tentar acessar a mente de Pandora, mas sabia que, de uma forma ou de outra, precisávamos dela de volta.
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