Capítulo 117: Vislumbrando o Mar
Nos dirigimos para onde Hass estava.
— É melhor a gente se apressar — Joaquim comentou, olhando em volta com cautela. Sua respiração ainda estava pesada, mas os olhos atentos percorriam o ambiente em busca de qualquer movimento. — Esse barulho vai atrair mais coisas pra cá.
Assenti, tentando controlar o tremor nas mãos enquanto a adrenalina começava a diminuir. A sensação de vazio depois de usar tanta energia era como um buraco no peito, mas não tínhamos tempo para descanso. Respirava fundo, absorvendo a mana ambiente.
Pandora me olhou de soslaio, indicando que concordava com Joaquim, mas seus olhos esmeralda ainda analisavam os arredores, como se esperasse que outra aberração surgisse das sombras.
— Vamos — falei, lançando um último olhar para a carcaça disforme da criatura derrotada. Me dirigi para onde a abominação havia arrastado Hass, seguindo os rastros fundos no chão e o som distante de luta.
Pandora tomou a dianteira, movendo-se com a graça felina de sempre, enquanto Joaquim vinha logo atrás, mantendo os braços erguidos e os sentidos em prontidão. Marius e Claire nos seguiram, embora suas passadas fossem mais hesitantes.
— Vocês acham que ele está bem? — Claire perguntou, a voz baixa, quase abafada pelo eco do corredor.
— Se estivesse morto, o maldito já teria voltado para nos assombrar — Joaquim brincou, tentando soar animado, mas não conseguiu esconder a preocupação no tom.
— Hass é forte — disse Pandora, sem olhar para trás. — Se alguém pode aguentar uma coisa daquelas sozinho, é ele.
O som de metal contra metal ressoou à distância, seguido por um grito abafado. Aceleramos o passo, ignorando o cansaço que mordia nossos músculos. O corredor se estreitou antes de se abrir em uma câmara maior, com colunas quebradas e destroços espalhados. No centro, Hass estava ajoelhado, apoiando-se em uma lança como se ela fosse a única coisa que o mantinha de pé.
— Hass! — chamei, acelerando o passo.
Ele ergueu o rosto, sujo de sangue e fuligem, mas ainda com aquele sorriso irritante nos lábios.
— Demoraram — provocou, cuspindo um filete de sangue no chão.
— Seu idiota — Pandora bufou, dando um soco leve no ombro dele. — Achei que estivesse morto.
— Vai precisar de mais que isso pra me derrubar — ele respondeu, embora seu tom fosse fraco.
Joaquim o ajudou a se levantar, apoiando-o pelo braço. Eu me aproximei e fiz uma breve leitura com minha magia, apenas para garantir que não havia miasma ou algum vínculo sombrio prendendo-se a ele. Para minha surpresa, encontrei apenas exaustão e alguns ferimentos que já estavam começando a cicatrizar.
— Você matou a criatura? — perguntei.
Hass assentiu, limpando o rosto com as costas da mão.
— Era só uma. Bem menor que a de vocês, mas ágil pra caramba. Não deu muita chance pra respirar.
— Pelo menos está inteiro — Marius comentou, aliviado. — Mas precisamos sair daqui antes que mais apareçam.
— Concordo — falei, observando os arredores. — Não podemos dar sorte ao azar.
Hass se ajeitou, endireitando os ombros com um resmungo dolorido.
— Vamos logo, então. Se aparecer mais algum desses bichos, vou precisar que vocês façam o trabalho pesado.
Pandora soltou uma risada breve, e até Joaquim deu um meio sorriso. Não estávamos seguros, nem totalmente fora de perigo, mas ainda estávamos juntos.
Olhando ao redor para me localizar, fiz um gesto para indicar o caminho até a casa de Claire.
— Por aqui — murmurei, mantendo a voz baixa para não atrair atenção indesejada.
Seguimos pelas ruas laterais, evitando as avenidas principais, que estavam abarrotadas de hordas de mortos-vivos vagando sem rumo. O céu nublado e a fumaça que pairava sobre a cidade davam ao lugar uma sensação de clausura, como se o próprio ar estivesse envenenado. O som de passos pesados e gemidos distantes preenchia o silêncio angustiante.
Após uma curva apertada, não consegui evitar a curiosidade e me virei para Marius, que caminhava logo atrás.
— Sua oficina não seria mais perto do que a casa de Claire? — perguntei, franzindo a testa. — Vamos sair da cidade e entrar na área nobre.
Marius deu um meio sorriso e deu de ombros.
— Mas é lá mesmo que minha oficina fica, Lior. Pode não parecer, mas sou de uma Casa menor.
Eu ri comigo mesmo, surpreso. Por essa, não esperava.
— Você não tem mesmo cara de nobre — comentei, ainda sorrindo.
— Não me incomodo com isso — ele respondeu, olhando para os lados com cautela. — Os outros mestres engenheiros sempre disseram que eu sou o mais “plebeu” dos artesãos. Talvez não estejam errados.
Quando chegamos a uma esquina, parei e espiei pelos cantos dos edifícios. O boulevard que levava à região nobre estava coalhado de monstros. As criaturas cambaleavam de um lado para o outro, com a carne em decomposição pendendo dos ossos e os olhos vazios brilhando com um brilho antinatural. Seus controladores atrás, como se açoitassem seus chicotes invisíveis.
Me virei para Marius, esperando que ele conhecesse um caminho alternativo.
— Você mora aqui há um bom tempo… Sem pegar as vias principais, tem outro jeito de chegar na área nobre?
Marius parou para pensar por um momento, coçando a barba suja de fuligem.
— Podemos passar por debaixo da grande ponte — ele sugeriu, apontando para a estrutura imponente que cruzava o canal mais à frente. — É um caminho geralmente perigoso por causa de bandidos e vagabundos, mas duvido que tenha alguém por lá agora… Com essa invasão, todo mundo que tinha juízo já fugiu.
Eu concordei com um aceno, embora uma parte de mim ainda estivesse apreensiva.
— Certo. Mas vamos manter a atenção — avisei, olhando para os outros.
Marius assumiu a dianteira, nos guiando por ruelas cada vez mais estreitas. Passamos ao lado de um pequeno riacho que separava as áreas populares da zona mais abastada da cidade. A quantidade de mortos-vivos errantes parecia aumentar a cada passo. Eles vagavam sem rumo, colidindo uns com os outros ou simplesmente caindo ao chão, para logo depois se erguerem de novo. Nossa equipe despachava os que se aproximavam com uma facilidade que me deixava assustado. Em pouco tempo tínhamos nos acostumados a esse pesadelo.
As casas ao redor eram humildes, feitas de madeira velha e tábuas desalinhadas, com telhados de palha que já estavam começando a apodrecer. Muitas portas estavam quebradas ou arrombadas, como se algo ou alguém tivesse forçado a entrada. Manchas escuras cobriam os batentes e os degraus das entradas, e corpos estavam espalhados pelas esquinas e becos, em diferentes estágios de decomposição.
O cheiro se tornou insuportável, uma mistura de podridão, sangue coagulado e o azedo típico de carne velha. Tapei o nariz com a manga da roupa, lutando contra a ânsia de vômito. Quando ia pedir uma pausa, Alana se adiantou, olhando para frente com os olhos estreitos, como se estivesse sentindo algo no ar.
— Virando essa esquina tem muitos deles — ela sussurrou, a voz baixa e tensa. — Mas nenhum controlador. Devem ser o povo daqui que se levantou por conta da alta concentração de miasma.
Eu a encarei, absorvendo a informação. Desde que tinha perdido minha corrupção por miasma, minha habilidade de detecta-lo tinha diminuído.
— Se eles não têm controlador, então estão só reagindo ao ambiente?
— Exato — Alana confirmou, seus olhos prateados brilhando com um reflexo estranho. — Se todos se aproximarem de mim, posso nos ocultar para atravessarmos em segurança, talvez se estivermos todos de mãos dadas também.
Pandora olhou para ela com ceticismo.
— Você consegue manter isso por tempo suficiente?
— Vou tentar — Alana respondeu, respirando fundo. — Mas preciso que fiquem bem perto de mim. Qualquer afastamento e eles podem sentir a presença de vocês, ou se soltarem minha mão.
Troquei olhares com Joaquim e Marius, que assentiram em silêncio. Formamos um círculo apertado ao redor de Alana, que fechou os olhos e sem murmurar palavras arcanas, liberou uma forte onda de miasma. Uma escuridão tênue começou a emanar dela, formando uma fina camada de energia que nos envolveu.
— Vamos — ela sussurrou, mantendo a concentração.
Avançamos em silêncio pela curva, tentando ao máximo não fazer barulho. A horda estava logo à frente, amontoada e inquieta. Eram muitos — talvez milhares — reunidos em um único lugar, como uma massa disforme de carne apodrecida e ossos expostos, esperando por algo que os tirasse de seu estupor. Nós.
Meu coração martelava no peito, e soltei o ar dos pulmões sem perceber.
— Por Thalos… — murmurei, incapaz de conter a expressão de espanto.
Como iríamos passar por um mar de mortos-vivos?
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