Capítulo 141: Testemunho
A voz do sacerdote ecoou no salão com uma solenidade estudada:
— Dante Avaris acusa Lior Aníbal de conluio com os Necros, fazendo uso de magia profana e miasma. O que diz em sua defesa, Lior Aníbal?
Respirei fundo. O calor da aura da verdade pulsava ao meu redor como um fôlego que não era meu. Senti as runas pulsarem dentro de mim, um leve formigamento sob a pele. Minha frequência cardíaca estava sob controle. Minha expressão, calculadamente neutra. A mentira não estava nas palavras, mas nas entrelinhas. E isso, eu dominava.
Me levantei devagar, deixando os olhos varrerem o salão. Vi o olhar da anciã fixo em mim, avaliando cada sílaba antes que eu as dissesse. Vi o rosto tenso de Claire, os olhos baixos. E vi Dante, inflado de expectativa, como um cão de caça prestes a morder.
— Eu sou inocente. — repeti, com a voz firme. — E, se me permitem, quero contextualizar essa acusação, que parece mais emocional do que factual.
Dei um passo à frente, consciente de cada movimento..
— Nem eu, nem Claire somos traidores. Tampouco somos usuários de miasma, ou temos algo com a invasão. Ela é, no entanto, uma jovem de um talento raro… e alguém que, até muito pouco tempo, vivia acorrentada. — Olhei para ela. Ela não me fitou, mas seus ombros se contraíram levemente. Continuei: — Seus tios, seus tutores legais, a mantinham em uma posição de subserviência. A viam como nada mais do que uma sombra… uma sombra de Zia.
Um leve murmúrio percorreu os anciãos. Percebi que minhas palavras atingiram algum nervo oculto da presidente do conselho. Assumi que ela era uma Umbrani. Outros franziram o cenho.
Zia era considerada uma prodígio. E Claire, apenas a sobrinha sem pais e sem talento, mantida à margem.
— Claire nunca recebeu o treinamento adequado. Era preterida em tudo. Não por falta de capacidade, mas por decisão deliberada. Seus tios moldaram seu desenvolvimento para que ela fosse uma serva leal, uma seguidora, uma presença decorativa na corte de Zia. Submissa. Contida. E, para piorar, era constantemente lembrada de seu lugar… como se talento sem permissão não valesse nada.
Voltei meus olhos para Dante.
— Quando a encontrei, percebi seu potencial. Dei a ela o que sempre lhe fora negado: incentivo, autonomia, liberdade. Em poucas semanas, ela floresceu. E isso — voltei-me à plateia, com um sorriso irônico — foi imperdoável.
A tensão era palpável agora. Até mesmo a anciã se reclinara levemente, atenta.
— Zia via Claire como um bichinho de estimação. Um adorno obediente, moldado para enfeitar sua sombra. Mas Claire ousou crescer. Ousou erguer os olhos. Pensar por si. E, nesse instante, a máscara caiu. A decepção virou raiva. Os pais de Zia, temendo perder o controle sobre o brinquedo que achavam possuir, fizeram o que os poderosos sempre fazem quando se sentem ameaçados: puniram.
Voltei-me novamente para o inquisidor, minha voz mais baixa, mas firme:
— Foi então que Dante apareceu. Sob o pretexto de protegê-la, de evitar sua corrupção, de mantê-la longe de “más companhias”. Mas não era proteção. Era contenção. Um vigia disfarçado. Um freio imposto. No torneio, Claire cometeu seu maior pecado: recusou-se a entrar para o time de Zia. Quis trilhar seu próprio caminho. E isso… isso foi imperdoável.
Deixei o silêncio se instalar. Denso. Cortante. Havia lacunas na minha narrativa — é claro que havia, mas o que importava era que a essência era real. A forma como tratavam Claire era real. E todos ali sabiam disso, mesmo que fingissem o contrário.
— Essa é a verdade por trás dessa acusação. Não é sobre necromancia. Não é sobre lealdade. É sobre controle. Sobre uma casa que não suporta ver a peça mais frágil do tabuleiro se recusando a obedecer. E sobre um cão fiel… disposto a latir qualquer mentira para agradar seus donos.
Os olhos de Dante faiscaram. Os punhos cerrados. Os ombros tensos. Ele tremia de raiva contida, e de impotência. Ainda não era sua vez de falar. E isso o devorava por dentro.
A anciã me observava em silêncio, a sobrancelha erguida, como quem pesa cada sílaba, cada pausa, cada intenção por trás das palavras.
Então concluí:
— Não nego que Claire mudou. Mudou, sim. Para melhor. Cresceu. Escolheu. E se isso, neste tribunal, é considerado crime… então talvez o problema não esteja em nós, mas no valor que se dá à verdade aqui dentro.
Sentei-me devagar, com a tranquilidade de quem já disse o que precisava ser dito. O peso das minhas palavras ainda pairava no salão, denso como fumaça após um incêndio. O silêncio que se seguiu foi curto, mas nunca pareceu tão longo.
A anciã se levantou devagar, apoiando-se em uma bengala com um toque quase cerimonial. Seus passos eram lentos, mas carregavam a solenidade de quem pesava cada movimento como parte de um julgamento antigo. Ela cruzou o salão até onde Claire estava sentada. A garota tremia, mal perceptível à distância, mas evidente para quem prestava atenção. Seus dedos se apertavam no tecido do vestido, as unhas quase perfurando a palma das mãos.
— Me diga, Claire — a voz da anciã era serena, mas cortante como lâmina fria. — O que Lior disse… é verdade? Os recursos da casa foram todos desviados para Zia?
Claire hesitou, os olhos baixos. Sua voz saiu embargada, como se cada palavra fosse puxada de dentro de um poço fundo.
— De certa forma… sim — balbuciou. — Mas não quero parecer ingrata. Eles me acolheram quando meus pais morreram. Me deram um teto… segurança.
A anciã pousou a mão enrugada sobre a cabeça da garota, como se a abençoasse. Deu-lhe dois tapinhas suaves, não condescendentes, mas quase… solidários. Em seguida, ergueu os olhos para Dante, que permanecia de pé, com os punhos cerrados e a mandíbula trincada.
— Sua família, Dante, sempre serviu como espada e escudo da Casa Umbrani. Uma linhagem de guardiões. Diga-me, sua missão era mesmo impedir Claire de se desenvolver?
— Não! — explodiu ele, num rugido de indignação que ecoou pelas colunas do salão. — Minha missão era afastá-la dessa… dessa cobra em forma de gente, Lior! Ele e os outros a afastaram de Zia, dos tios dela! Eles temiam que ela se machucasse!
A anciã manteve o olhar fixo, inabalável.
— Treinando?
Dante hesitou por um instante. Sua resposta perdeu força, transformando-se em um resmungo amargo.
— Sim…
O reconhecimento, por mais vago que fosse, era suficiente para reforçar o que eu havia dito. A velha me lançou um olhar demorado, medindo-me dos pés à cabeça como quem avalia não apenas um corpo, mas a alma que o habita.
— E como convenceu Dante a deixá-la treinar com vocês? A lutar na Arena mesmo contra as ordens expressas da Casa? Sim, Lior. Sabemos das lutas.
A sala se calou. Seria a palavra de Dante contra a minha, mas eu percebi algo. A balança começava a pender, ainda que sutilmente, a meu favor. Eu precisava ser cuidadoso, preciso. Era hora de jogar os dados.
— Nós apostamos — disse, firme. — Dante e eu nos enfrentamos. Se eu vencesse, ele nos daria um prazo para que Claire treinasse conosco. E eu venci. Claire pôde lutar, crescer, aprender. Ele viu o que ela podia se tornar. Por um tempo, cumpriu o acordo. Mas quando o talento dela floresceu de verdade, quando ficou claro que ela não era mais uma sombra de Zia… ele recuou. Desfez o trato. Inventou essa história toda.
A anciã voltou-se para Dante. Um convite mudo para que respondesse.
Dante respirava com dificuldade. Seus olhos estavam vermelhos, não de choro, mas de pura frustração. Raiva fervia sob sua pele. Isso me favorecia. Um homem com raiva fala demais.
— É verdade… — ele cuspiu as palavras. — No dia que fui tirá-la do “treino”, enfrentei Lior. E perdi. Mas não foi uma luta limpa! Ele usou miasma contra mim. Me dominou. Me enfeitiçou! Só recentemente consegui me libertar da influência dele e contei tudo ao meu patrão.
A velha virou-se para Claire, que parecia cada vez menor em sua cadeira. Ainda assim, ergueu os olhos e falou com voz clara.
— Lembro de Dante ter sido derrotado. E depois disso… ele nunca nos impediu. Pelo contrário. Ele participou dos treinos, chegou a lutar ao nosso lado. Sempre foi solícito. Sempre… colaborou. Só posso dizer o que vi.
A anciã se aproximou mais da garota, sua voz um sussurro inquisitivo.
— Você disse que, no dia da invasão, Lior fez algo. Algo que fez Dante desmaiar. Confirma isso?
Claire assentiu, relutante.
— Sim. Ele fez… algo. Senti a mana dele se agitar muito rápido, de um jeito que não consegui entender. Então Dante caiu, desacordado. Quando acordou, já tínhamos saído da Arena.
— E o que ele fez?
— Não sei — ela confessou, quase num sussurro. — A verdade é que… na maioria das vezes, eu não entendo nem metade do que Lior faz. Ele vê coisas que a gente não vê. Faz coisas que não sabemos nomear. Acho que foi por isso que pedi que ele me treinasse. Quis aprender… entender.
A anciã voltou-se a mim mais uma vez, com o peso do olhar de toda a assembleia atrás de si.
— E o que tem a dizer sobre isso, Lior?
Ergui o queixo. A voz calma, medida. Mas cada palavra era uma flecha cuidadosamente apontada.
— Duas coisas. A primeira: no dia da invasão, detectei um foco de miasma na cabeça de Dante. Um ponto de corrupção ativa. Agi para conter a infecção antes que se espalhasse. Usei meu raio de dissipação — um procedimento que posso demonstrar aqui, se desejarem. A segunda coisa… é um fato conhecido entre estudiosos do miasma: uma vez que o núcleo é corrompido, ele nunca mais volta a ser puro. Posso me submeter a uma inspeção completa, corpo e núcleo, por parte dos inquisidores. Não tenho nada a esconder.
A anciã arqueou uma sobrancelha. Analisava cada sílaba. Cada pausa. Mas não replicou. Não ainda.
— Certo… talvez isso seja mesmo necessário — murmurou. E então, ergueu novamente o olhar. — Uma última pergunta, Lior. Uma que exige mais que lógica… exige honestidade.
Silêncio.
— Se eu mandasse Claire lutar com Zia, aqui e agora… quem você acredita que venceria?
Sorri. Não um sorriso de escárnio, nem de triunfo. Um sorriso breve, cheio de certeza.
— Depois de treinar com a gente, de verdade. De lutar, cair, levantar, evoluir… Claire venceria sem grandes dificuldades.
O silêncio que se seguiu foi absoluto. Quase sagrado. Só o som distante das chamas nas lamparinas preenchia o ar, como se o mundo prendesse a respiração. E eu sabia, naquele momento, que tinha dado o golpe certo.
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