Índice de Capítulo

    Aos poucos, figuras importantes começaram a ocupar o palanque elevado. Primeiro vieram pajens e serviçais, alinhando cadeiras e orientando os nobres conforme iam chegando. Cada detalhe era ajustado com precisão, como se a própria ordem fosse uma forma de poder sendo exibida diante do povo. 
     
    Logo os Anciãos começaram a se sentar, rostos solenes marcados pela idade e pela política. Em seguida, os Patriarcas das Grandes Casas ocuparam seus lugares com gravidade. Vi meu pai, Tibérius, surgir entre eles, imponente como sempre. Ao seu lado, minha mãe, Isolde, trajava um vestido de luto discreto, mas com o brasão da Casa Aníbal bordado com fios dourados no peito. Sentaram-se sem olhar para mim, mas sua presença era como uma âncora no ambiente.
     
    Por fim, Annabela apareceu. Diferente de outros dias, mantinha-se recuada, sentando-se no fundo do palanque com uma expressão indecifrável. Estava acompanhada por dois sacerdotes da Igreja da Retribuição e Justiça, que permaneciam imóveis atrás dela, como sombras.
     
    Então, com grande estardalhaço, surgiu o Imperador Juliani, de braços dados com Lady Lenora Umbrani. Os dois caminharam até o púlpito central com passos lentos e calculados. Juliani trajava a túnica cerimonial do trono — negra com detalhes carmesim — enquanto Lenora usava vestes austeras, quase eclesiásticas, como se fosse a guardiã de uma verdade que os demais não compreendiam.
     
    Uma segunda corneta soou, seu som cortando o ar como uma lâmina afiada. Todos silenciaram.
     
    Foquei. Com todas as minhas forças. Queria detectar qualquer rastro de magia sutil. Sabia que Annabela e Elizabeth dominavam encantamentos discretos, capazes de dobrar vontades ou alterar percepções. Se algo estivesse sendo manipulado, eu queria sentir — ou pelo menos perceber o cheiro de mana no ar.
     
    Juliani ergueu os braços. Um silêncio absoluto se instalou. Ele levou dois dedos à garganta e infundiu mana, amplificando sua voz para que fosse ouvida por todos ali, da primeira fileira ao último degrau da colina.
     
    — Súditos do Império — começou, sua voz firme, com um toque estudado de pesar. — É com o coração pesado que me apresento diante de vocês. O Império falhou. Eu falhei. Falhei em proteger esta cidade, este povo… e, em especial, os filhos e filhas de Thallanor.
     
    Fez uma pausa. Olhou para o céu, respirou fundo. Tudo muito ensaiado. Cada gesto milimetricamente planejado para parecer espontâneo.
     
    — Fomos atacados com brutalidade, como não víamos há mais de quatro séculos. Com o passar do tempo, nos iludimos com uma falsa sensação de segurança. Esquecemos que nossos inimigos eternos, os necros, jamais dormem.
     
    Seu tom endureceu. Transformava o próprio fracasso em uma narrativa de guerra e redenção. Eu sabia a verdade — os necros foram apenas o instrumento. O verdadeiro inimigo era a Névoa. E ela não seguia as regras convencionais.
     
    — Muitos questionaram nossa ausência durante o ataque. Mas quero esclarecer que não estávamos em ócio. Estávamos fora por uma razão nobre: um templo foi descoberto. Um santuário antigo, repleto de saberes esquecidos. E entre esses saberes, há segredos para domar a Névoa. Para atravessá-la. Para expandirmos novamente os limites do Império sem medo.
     
    Um murmúrio atravessou a multidão. Meus músculos se retesaram. Se o que ele dizia era verdade, mesmo que em parte, as implicações eram imensas. Meu pensamento correu até Malena. A chance de aquele templo ser um antigo refúgio dela era enorme.
     
    — Mas ainda não é hora de celebrar. — Sua voz tornou-se grave. — Pagamos um preço alto demais. Thallanor sangrou. Calculamos que apenas um quarto dos que estavam na cidade sobreviveram. E entre os nobres e combatentes, esse número é ainda mais sombrio: perdemos metade de nossa força.
     
    Ele baixou a cabeça. Os olhos marejados, os ombros pesados, como se carregasse o luto de todos.

    — Mas saibam disto — disse, com a voz embargada. — O sacrifício deles não será esquecido. Este ataque não foi apenas uma tragédia, foi um chamado. Um estalo que rompeu nosso torpor. Chegou a hora de nos prepararmos de verdade. De erradicarmos o inimigo. O sangue derramado hoje alimentará a força de amanhã.

    Suas veias estavam saltadas, o rosto ruborizado. Agora gritava, saliva escapando pelos cantos da boca enquanto suas palavras ressoavam com intensidade.

    — Nossos jovens lutaram. Não fugiram. Enfrentaram o horror de frente. E dessa luta, saíram forjados em algo mais forte. Eles são a lâmina renovada deste Império!
     
    Parou por alguns instantes, respirando com dificuldade. Passou a mão no rosto, como se se acalmasse.
     
    — A partir deste momento, declaro estado marcial. Todos, sem exceção, devem responder às convocações da Igreja da Retribuição e Justiça. A capital está sob quarentena. Nenhuma entrada, nenhuma saída sem autorização. O Torneio dos Jovens está suspenso até nova deliberação do Conselho dos Patriarcas.
     
    Fez uma pausa final, olhando ao redor.
     
    — Durante este período, o poder será exercido por mim, em parceria com o Conselho dos Anciãos. Lady Lenora Umbrani presidirá esse conselho. Agora, convido-a a dizer algumas palavras.
     
    Inclinou-se respeitosamente para a idosa ao seu lado e desceu do púlpito, afastando-se alguns passos, com o rosto ainda marcado pela encenação emocional que acabara de executar.
     
    Lady Lenora agradeceu com um leve aceno de cabeça e levou dois dedos à garganta, da mesma forma que Juliani fizera momentos antes. Sua voz surgiu com clareza inquestionável, amplificada pela magia, preenchendo o gramado com uma presença quase física. Antes de falar, ela varreu a multidão com o olhar. Depois, voltou-se ao Imperador e sorriu.

    Mas não foi um daqueles sorrisos educados, mecânicos, tão comuns entre os nobres de sua idade. Era um sorriso real, sincero, e por isso mesmo, perigoso. Um frio me percorreu a espinha. Havia algo nos olhos dela. Algo que não estava lá antes. Um brilho de decisão implacável.

    — O Conselho dos Anciãos foi chamado pelas circunstâncias — começou ela, em tom firme, mas sem pressa. — Um chamado, inicialmente, para auxiliar. Para compor. Para apoiar. Mas ao chegar aqui, vimos coisas demais fora do lugar.
     
    Ela fez uma pausa, permitindo que o silêncio desse peso às suas palavras. Quando voltou a falar, sua voz era mais baixa, mais grave. Como o som de um julgamento inevitável.
     
    — Palavras belas demais para esconder mentiras. Vaidades colocadas acima da justiça. E uma verdade… sempre sufocada sob o peso de conveniências.
     
    Fez um gesto sutil com a mão, como quem afasta um véu invisível.
     
    — Pois saibam: uma vez que escolhemos intervir, não voltamos atrás. Estamos aqui para o bem… e para o mal. Doa a quem doer. Não nos falta coragem para desvendar as verdades ocultas, nem para atribuir a culpa a quem a merece. E saibam disso, todos vocês. — Ela se virou levemente, indicando com a mão aberta o grupo de patriarcas sentados atrás dela. — A razão de estarmos aqui… é culpa de vocês. Apenas de vocês.
     
    O sorriso de Juliani desaparecera. Seu rosto endureceu como pedra sob o sol. Annabela mexia-se, inquieta, cruzando e descruzando as pernas, tensa, como se cada palavra de Lenora fosse uma ameaça implícita. E talvez fosse.
     
    — Mas deixemos de lado — disse Lenora, recobrando um tom mais neutro — esse jogo de acusações. Não é para isso que nos reunimos hoje. Estamos aqui para homenagear os que defenderam Thallanor. Para honrar aqueles que lutaram… e caíram. E para reconhecer os que, contra todas as probabilidades, resistiram.
     
    Ela voltou-se para um dos pajens ao lado do palco e assentiu.
     
    — Chamaremos os nomes. Peço que cada um se dirija ao palanque quando chamado.
     
    Uma longa lista foi declamada. Primeiro, cidadãos comuns, mercadores que abriram seus depósitos para refugiados, curandeiros que montaram tendas improvisadas nas ruas, artesãos que usaram seus talentos para fortalecer barricadas. Cada um subia ao palco e recebia uma pequena condecoração: um broche de prata em forma de chama, símbolo da resiliência.
     
    Depois vieram os soldados. Guardas urbanos, batedores, integrantes da milícia civil que permaneceram ao lado do povo mesmo quando a situação parecia sem esperança. Muitos subiam ainda feridos, com braços imobilizados ou bandagens nos rostos. Alguns choravam. Outros tremiam. Todos eram aplaudidos com respeito verdadeiro.
     
    Em seguida, os jovens nobres que participaram das defesas e do combate foram chamados. Vi André, meu antigo líder de equipe no torneio, com o semblante mais sério do que nunca. Depois, Cassiopeia, minha irmã, que ergueu o queixo com altivez, como se não aceitasse menos do que reconhecimento pleno.

    Joaquim veio depois, junto de outros membros da equipe de André, alguns, cujos nomes me escapavam, e até integrantes da equipe de Valis. Todos foram recebidos como heróis.
     
    Mas eu… não fui chamado. Nem Valis, nem Elizabeth. Estranhei. Algo estava sendo guardado para depois.
     
    Por fim, os civis mais poderosos e hábeis foram convocados. Rosa, Pandora, Marreta, e os outros gladiadores que haviam liderado o povo comum em combate. Lenora os elogiou abertamente e os convidou a integrarem o exército imperial, oferecendo-lhes patentes e títulos nobiliárquicos menores. Um reconhecimento imenso.
     
    Sua voz ecoou com mais força:
     
    — Agora, quero chamar as figuras centrais na defesa da capital. Aqueles cujos feitos definiram o curso dessa história.
     
    O murmúrio que crescia entre o público morreu subitamente. Ela não precisava pedir silêncio, ele veio sozinho.
     
    — Lady Elizabeth Elden, suba ao palanque.
     
    Vi uma figura se levantar entre as primeiras fileiras. Uma jovem loira, com postura impecável, caminhando com graça. Não a havia notado antes. Nem Valis, que estava próximo ao local de onde ela saiu, em uma cadeira de rodas, tão imóvel que parecia esculpido ali.
     
    Elizabeth subiu ao palanque e fez uma reverência profunda diante de Lenora, como se o mundo observasse cada detalhe.
     
    — Você lutou bem, criança — disse Lenora, com uma rarefeita doçura na voz.
     
    Ela se virou para o público, braços abertos como uma sacerdotisa diante do altar.
     
    — Lady Elizabeth Elden não apenas lutou. Ela organizou as forças remanescentes do exército imperial quando seus líderes caíram ou desapareceram. Coordenou evacuações, defesas, e, junto de aliados valorosos, conduziu o ritual mágico que destruiu a maioria dos inimigos errantes. Por tudo isso, ofereço-lhe a Medalha do Guardião Imperial, nossa mais alta honraria… e um lugar no Círculo Interno do Império.
     
    Um estrondo de aplausos. Gritos, até. O nome de Elizabeth ecoava. Ela curvou-se novamente, agradeceu com discrição e desceu do palanque, voltando ao seu lugar.
     
    — Lorde Valis Nonnar, por favor, ao palanque.
     
    Dois serviçais se aproximaram da cadeira de rodas. Valis, lentamente, colocou-se de pé. Ajudado com cuidado, começou a caminhar. Seus movimentos eram difíceis, cada passo vacilante como se o chão oscilasse sob seus pés. A cabeça envolta em bandagens, deixava à mostra apenas um olho, era o suficiente para ver a determinação que ainda habitava ali. Era o mesmo Valis. Só que menor. Mais frágil. Mas não vencido.
     
    Quando finalmente chegou diante de Lenora, baixou a cabeça. Um gesto simples, mas que dizia muito.
     
    — Foi corajoso, minha criança — disse ela, suavemente.
     
    Virou-se para a multidão.
     
    — Lorde Valis demonstrou uma coragem que poucos entre nós conhecem. Com Elizabeth, sustentou a linha de defesa, enfrentando não apenas o caos, mas também o próprio líder da invasão. Um inimigo que, confesso, talvez mesmo aqui entre os patriarcas, teríamos hesitado em enfrentar. Seus ferimentos são prova de sua bravura. Por suas contribuições, também lhe ofereço a Medalha do Guardião Imperial, e um assento no Círculo Interno.
     
    Novamente, os aplausos irromperam. Muitos se levantaram em sinal de respeito. O nome de Valis foi gritado por algumas vozes mais jovens. Um herói vivo. Um símbolo.
     
    Ajudado pelos serviçais, ele se retirou do palco, com a mesma lentidão, mas com algo diferente no olhar. Um brilho que não era orgulho. Era algo mais profundo. Um tipo de aceitação.
     
    E então, Lenora voltou ao centro do palco, com a respiração firme, as mãos cruzadas à frente. E nesse momento, por instinto, senti que o próximo nome… seria o meu.
     
    — Por último, mas não por isso menos importante — disse Lenora, com uma leve pausa dramática —, Lorde Lior Aníbal… o “Defensor de Thallanor”.
     
    O título me pegou desprevenido. “Defensor de Thallanor.” Um sorriso involuntário se formou em meus lábios. Era novo. Solene. Carregado de um peso que eu não tinha pedido. Tudo que eu queria era atrapalhar os planos de Annabela e Juliani.
     
    Me levantei devagar. Podia sentir os olhos sobre mim, centenas. Como uma corrente invisível, pesada, puxando minha atenção para o palco. E para além dele.
     
    Olhei para o palanque. As figuras ali estavam voltadas para mim. Mas havia um olhar que se destacava entre os demais, fixo, afiado, como uma lâmina escondida entre plumas. Annabela.
     
    Antes de subir, abaixei-me e beijei o topo da cabeça de Alana, que estava sentada ao meu lado, indiferente à presença de Annabela. Seu desdém parecia, de algum modo, me ajudar. Quando ergui os olhos novamente, vi a expressão de Annabela se desmanchar, surpresa com a garota estar comigo. Primeiro espanto, depois, os olhos dela se estreitaram como os de um falcão avistando a presa. A máscara tinha caído, ainda que por um segundo.
     
    Caminhei em direção ao palanque. No trajeto, os guardas imperiais bateram nos meus ombros. Não havia formalidade ou frieza neles, era um gesto genuíno. Alguns me chamaram pelo nome. Outros apenas murmuraram um “obrigado”. E por entre as fileiras, ecos começaram a surgir: Lior! Lior! Eram gritos dispersos, emocionados. Gritos de gente que sabia o que havia acontecido. Gente que viu. Gente que sobreviveu.
     
    Quando finalmente parei diante de Lenora, fiz uma mesura respeitosa. Ela me observou com um olhar grave, mas carregado de certa ternura. Quando falou, sua voz era clara como cristal:
     
    — Lutou com bravura, mostrou tenacidade, inteligência… e uma coragem muito além do que se espera de um jovem da sua idade, Lior.
     
    Ela se virou para a plateia, sem pressa. Como quem sabe que cada palavra é aguardada como um veredito.
     
    — Lorde Lior foi um dos pilares da defesa no quadrante leste da cidade, impedindo sozinho o colapso daquela região. Quando as forças imperiais estavam em silêncio, quando os nobres se escondiam ou hesitavam, ele organizou os civis, reuniu casas nobres rivais e comandou um contragolpe ousado. Sem qualquer apoio formal, formou o que muitos chamam de “o exército dos esquecidos”… e com ele, flanqueou as forças inimigas em um momento crucial da batalha.
     
    Uma pausa. Um leve erguer de sobrancelhas.
     
    — E se tudo isso já parece incrível, acrescento: Lorde Lior enfrentou o próprio líder da invasão. Salvou a vida de Lorde Valis Nonnar… e derrotou, sozinho, uma criatura que muitos de nós jamais ousariam encarar. Um lich de sétimo círculo. Um feito que ecoará na história por muitas eras.
     
    Ela virou-se para mim, seus olhos firmes.
     
    — Por tudo isso, Lior Aníbal, lhe ofereço a Medalha do Guardião Imperial… e um assento no Círculo Interno do Império.
     
    Silêncio.
     
    Um silêncio absoluto. Tenso. Quase irreal.
     
    As pessoas pareciam precisar de tempo para processar. Para acreditar que um garoto, um nome ainda fresco nas bocas de todos, tivesse feito tudo aquilo. Era o tipo de coisa que se ouve em cantigas, em mesas de taverna. E ainda assim… ali estava eu. Vivo.
     
    Então veio o primeiro assobio. Um som curto, agudo. Como o estopim de uma explosão.
     
    Logo em seguida, uma onda de aplausos se ergueu. Gritos. Palmas. Pés batendo no chão. Era um som vivo, pulsante, carregado de emoção crua. Não apenas reconhecimento, havia alívio, gratidão, esperança.
     
    A plateia gritava meu nome como se, por um instante, tudo fosse possível. Como se o futuro pudesse ser moldado, afinal, por ações justas.
     
    Eu me virei para o público. Estendi os braços com um leve gesto. Um agradecimento silencioso. Um reconhecimento mútuo. Como um ator diante de uma plateia que não queria que a peça acabasse.
     
    Depois, desci do palanque com calma. O coração ainda batendo forte. Caminhei de volta ao meu lugar, cada passo mais leve do que o anterior.

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