Índice de Capítulo

    Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
    Aspas duplas para conversa mental: “
    Travessão para falas em voz alta: —

    Eu estava novamente diante do Major Garrick em seu escritório no coração do quartel-general de Tournand. A sala era austera, com paredes de pedra polida e um leve aroma de cera e pergaminho. A luz das velas tremeluzia, lançando sombras sobre mapas estrategicamente pendurados e estandartes do reino.

    Ao lado dele, uma espada longa repousava contra a mesa. A bainha, marcada por arranhões de batalhas antigas, exibia runas que brilhavam com um tom azulado, pulsando como se a arma sussurrasse encantamentos esquecidos. Era a mesma com a qual ele ganhara o título de Mestre do Aço Encantado, uma lâmina lendária que poucos ousariam enfrentar.

    O quartel-general de Tournand, uma fortaleza imponente, priorizava função sobre beleza, mas ainda carregava uma aura de autoridade. Seus corredores largos, pavimentados com lajes escuras e gastas pelo tráfego de soldados, magos e mensageiros, exibiam armas cerimoniais cruzadas e brasões das famílias influentes do reino.

    A decoração era esparsa, dando espaço a mapas e ordens fixados em tábuas de madeira. Havia várias salas ao longo dos corredores: algumas para reuniões estratégicas, outras para treinamento de magias menores, com portas reforçadas abafando explosões mal controladas.

    Pela janela alta na sala de Garrick, o pátio central era visível — um vasto campo de treinamento com bonecos reforçados por aço e alvos marcados por queimaduras e cortes profundos. O lugar exalava disciplina e força, mas também uma tensão constante.

    — Então, Grenhard, como está a tutoria de Flügel? — Garrick não desviou os olhos do relatório de três meses sobre o garoto, sua voz firme, mas com um toque de curiosidade ansiosa.

    — Ele aprende rápido, até para ler e escrever, bem acima da média. Há quatro meses, perguntou sobre outras línguas e quis aprendê-las. Prossegui sem sua permissão, pois não vi motivo para negar. Na matemática, teve dificuldade inicial, mas logo pegou o jeito, como se já soubesse muito — respondi, ajustando os óculos que escorregaram pelo meu nariz com o dedo indicador.

    Garrick permaneceu em silêncio, lendo o relatório com um sorriso crescente. Estava claramente satisfeito por ter recrutado Flügel para nossas fileiras.

    — E quanto à magia? — perguntou, já sabendo a resposta, mas querendo ouvi-la de mim.

    — Flügel é um gênio na magia. Não precisa repetir feitiços, parece ter mana inesgotável e domina todos os elementos, incluindo escuridão e luz. Além disso, cria magias com facilidade — limpei a garganta e continuei. — Ontem, ele me mostrou um novo feitiço.

    — Hmh… Qual? — Garrick finalmente levantou os olhos do relatório, fixando-os em mim com interesse genuíno.

    — Ele chamou de Eco Prismático — respondi, ajustando os óculos por hábito. — É uma esfera pequena, do tamanho de uma maçã, que paira no ar e alterna entre luz branca ofuscante e preto abissal. Ao ativá-la, fragmenta-se em dezenas de raios que se espalham como espelhos quebrados refletindo caos.

    Garrick ergueu uma sobrancelha, intrigado, mas não me interrompeu.

    — Cada raio tem uma propriedade distinta — prossegui. — Alguns queimam como fogo, outros congelam ao toque, outros corroem como escuridão pura. Ele disse que ainda ajusta o feitiço, mas quer criar algo que consiga se adaptar ao inimigo, um ataque que sai por cima  com o que enfrenta.

    Garrick largou o relatório na mesa e cruzou os braços, o sorriso agora mais sério, quase preocupado. Tamborilou os dedos na madeira, o som ecoando no silêncio.

    — Um feitiço que é adaptável… — murmurou, mais para si mesmo. — E ele fez isso sozinho? Sem orientação?

    — Sim — confirmei, hesitante. — Disse que teve a ideia após ler sobre magias antigas que combinam elementos opostos. Passou a noite testando no campo de treinamento. Quase destruiu um boneco reforçado no processo, mas ele é jovem. Ainda precisa de disciplina.

    Garrick deu uma risada curta e seca. — Disciplina é o de menos, Grenhard. Um garoto como ele… Se já cria magias assim, o que será capaz de fazer como Mago Celestial? Ou Monarca?

    Eu não respondi de imediato. A pergunta me pegou desprevenido, não por não ter pensado nisso, mas porque sabia que Flügel já estava além do que podíamos prever. Ele não era apenas um prodígio; era uma força da natureza que ainda não conhecia seu limite.

    — Por ora, ele foca em aprender línguas e melhorar o controle desse feitiço — falei, tentando mudar o tom da conversa. — Quer torná-lo mais preciso, talvez até usá-lo como suporte, não só ataque.

    Garrick assentiu lentamente, voltando ao relatório, mas parecia distraído. — Mantenha-me informado de cada avanço, Grenhard. Cada detalhe. Se ele já cria magias assim, não podemos deixá-lo fora de controle.

    Engoli em seco, sentindo um peso novo. — Entendido, Major.

    — E sobre Nytheris?

    — Nytheris domina magias de escuridão com maestria, mas não consegue usar magia de luz. Tem pouca afinidade com água, fogo e gelo, e afinidade média com vento e cura. Seu armazenamento de mana parece igual ao de Flügel, e ele manipula parte dela para criar armas ou outros objetos. Também aprende rápido línguas e matemática.

    — Pelo menos ele não é tão peculiar quanto Flügel — Garrick recostou-se na cadeira.

    — Pode ir — disse ele, pegando outro relatório sobre o treinamento de espada de Flügel, escrito pelo mestre Álvaro.

    Antes que eu me virasse completamente para a porta, Garrick ergueu a cabeça. — Grenhard, uma última coisa. O Capitão Eadric chamou Flügel para o portão menor de Tournand. Parece que quer o garoto lá hoje. Pode ser sua primeira missão. Não o deixe esperando.

    Assenti, sentindo o peso daquelas palavras. — Entendido, Major. Vou levá-lo agora. — Ao me virar para sair, hesitei e acrescentei: — Respondendo à sua pergunta anterior… Flügel talvez alcance o nível de Aelara Veyris quando atingir o nível Rei.

    Eu sabia que isso era quase surreal, considerando que Aelara Veyris fora nível Monarca em seu auge. Saí da sala, caminhando pelos corredores familiares do quartel com a facilidade de quem os percorria há dois anos, acompanhando Flügel em seus treinamentos e entregando relatórios a Garrick.

    POV: Flügel Aurion Handels

    Eu estava com sete anos, e o quartel de Tournand não me assustava mais. Dois anos atrás, tudo parecia gigante — as muralhas de pedra reforçada, as espadas brilhando com poder, os magos gritando feitiços no campo de treinamento. Agora, era só o lugar onde eu vivia, estudava e testava coisas novas.

    Eu preferia usar esse campo de treinamento ao invés do campo de treinamento do quartel do norte, lá muitas pessoas me olhavam com cara feia, aqui não. Aqui os soldados até me elogiavam, e as mulheres me tratavam com carinho.

    Eu gostava disso. Gostava de aprender, sentir a mana correr pelas mãos, descobrir até onde podia ir com ela.

    Estava no campo de treinamento, sentado num banco de madeira com um livro grosso no colo, um tratado antigo sobre magias elementais escrito numa língua que Grenhard me ensinara meses antes. Ler não era mais difícil. As palavras faziam sentido na minha cabeça, como se eu já as conhecesse. Grenhard dizia que eu aprendia rápido demais, mas pra mim era normal.

    Minha nova capa negra, comprada na semana passada com meu salário de uma moeda de ouro por semana, caía confortavelmente sobre os ombros. Feita de tecido leve e resistente, ela era simples, sem desenhos ou bordados.

    Por baixo, usava uma camisa cinza de mangas compridas ajustada ao corpo, calças escuras reforçadas nos joelhos com couro macio e botas de cano curto com solas grossas, gastas o suficiente para mostrar que eu passava mais tempo no campo do que em salas.

    Um cinto largo de couro preto prendia tudo, com bolsos pequenos onde guardava um caderno minúsculo para ideias. Quando o frio apertava, jogava por cima um manto azul-escuro com capuz que Grenhard me dera no último inverno — ele dizia que me fazia parecer “um mago de verdade”, mas eu gostava porque era quente e escondia meu rosto quando queria pensar sem ser incomodado.

    Olhei o boneco de treino à frente. Estava meio queimado, com marcas pretas e pedaços derretidos onde o “Eco Prismático” acertara ontem. Não foi de propósito. Só queria testar uma ideia nova. Levantei a mão, sentindo a mana fluir dentro de mim como um rio constante. Era fácil chamá-la agora, mais fácil que no começo. Não precisava falar nem pensar muito. Só imaginar, e ela vinha.

    Uma esfera pequena surgiu na minha palma, do tamanho de uma maçã, brilhando com uma luz que mudava, branco ofuscante, depois preto como a noite, depois branco de novo. Eu gostava de olhar pra ela. Era bonita, de um jeito bagunçado. “Eco Prismático”, chamei, porque parecia um eco que refletia tudo que eu jogava dentro dela. Fechei os olhos e imaginei os raios saindo, como ontem. A esfera tremia, instável, mas eu sabia como fazer funcionar.

    — Vai — murmurei pra mim mesmo.

    A esfera se partiu, e os raios voaram. Um queimou o chão com fogo vermelho, outro deixou uma mancha de gelo azul, outro cortou o ar com um chiado escuro que fez o boneco tremer.

    Dessa vez, tentei algo diferente. Pensei no vento, e um raio virou uma rajada que jogou terra pra todo lado. Sorri. Estava funcionando. Não era perfeito, mas ficava mais parecido com o que eu queria, uma magia que mudava conforme a necessidade.

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