Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 32 — Além dos Muros de Tournand
— Flügel! — A voz de Nytheris me desconcentrou. Ele vinha correndo pelo campo, os cabelos longos e negros balançando como uma cortina escura. Seus olhos pretos brilhavam contra a pele pálida, quase como se não fosse humano. E não era, não de verdade.
Nytheris era meu familiar, ligado a mim desde que cheguei aqui, embora eu ainda não entendesse bem como isso funcionava. Ele estava com o corpo tão desenvolvido quanto o de um garoto de quinze anos. Parou na minha frente, com uma espada de mana preta na mão direita. Ele gostava de fazer armas assim, dizia que era mais natural que conjurar feitiços grandes. A espada sumiu num piscar de olhos.
— Tá brincando com essa esfera esquisita de novo? — perguntou, cruzando os braços.
— Não é esquisita — respondi, fechando o livro. — É o “Eco Prismático”. E não tô brincando, tô melhorando.
Nytheris riu, o som baixo e meio rouco. — Claro, e por isso o boneco tá quase virando carvão. Grenhard vai te dar bronca.
— Ele não deu bronca ontem — retruquei, me levantando e guardando o livro na mochila. — Só disse pra ter mais cuidado. E o Capitão Eadric gostou quando contei.
— O Capitão gosta de tudo que você faz — Nytheris deu de ombros, com um tom meio azedo. Ele se tornava mais protetor com o tempo, não confiava em ninguém do reino, embora Grenhard tivesse ganhado um pouco de sua confiança. — Ele acha que você vai virar um Monarca ou coisa assim.
Não disse nada. Não sabia o que era ser um Monarca, não de verdade. Grenhard falava de ranks às vezes — Adeptos, Peritos, Primarcas, Soberanos, Rei, e os mais altos que eu nem conseguia imaginar. Disse que eu era um Perito agora, quase um Primarca por causa do “Eco Prismático”, mas eu não ligava muito pra isso. Só queria aperfeiçoar o feitiço.
— E você? — perguntei, mudando de assunto. — Tá fazendo o quê?
Nytheris sorriu, levantando a mão. Uma lança de mana preta se formou, longa e fina, com um brilho que parecia engolir a luz ao redor. Ele não precisava treinar pra manter ela sólida — era algo natural, como respirar. — Tô aprendendo a usar uma lança. Quero dominar várias armas pra usar a melhor em cada situação.
Nytheris já era incrivelmente habilidoso com espada longa e adagas, provavelmente melhor que um Perito experiente com ambas, quase um Primarca. Eu, por outro lado, usava apenas uma espada longa e ainda era um Adepto, quase Perito iniciante.
Bom, isso era graças ao fato do meu corpo não ter tido desenvolvimento o suficiente, mas quando se tratava de usar ardema, por aquele curto período de tempo que eu conseguia manter o ardema, eu tinha a sua confiança de conseguir ser um perito no mínimo experiente.
Mas eu não conseguia manter a minha performance nesse nível o tempo todo, minha mente e corpo não estavam em sincronização, meu corpo simplesmente não conseguia acompanhar a velocidade de uma batalha á curta distância então eu só estava em meu auge durante os segundos em que eu conseguia usar forçadamente o ardema.
Grenhard apareceu no campo de treinamento, vestindo seu manto azul royal impecável e com seus cabelos loiros divididos ao meio. Acenou pra nós, chamando. Aparentemente, seu relatório a Garrick terminara.
Eu joguei a mochila nas minhas costas e me aproximei dele. — Flügel, vamos encerrar o dia mais cedo hoje. Capitão Eadric quer você na base do portão menor de Tournand. Talvez seja sua primeira missão — anunciou Grenhard virando-se enquanto caminhávamos pelos corredores do quartel-general.
Nytheris deslizou para dentro do meu braço, aninhando-se no meu peito como sempre.
Passávamos pelos corredores do quartel-general, menos extravagantes que os da academia Aera Veyris a melhor academia de magia de Tournand, frequentada majoritariamente por nobres. Ainda assim, era bem construído, com várias salas.
As paredes de pedra sólida tinham rachaduras sutis de décadas de uso, e o chão de lajes escuras rangia sob nossas botas. Portas reforçadas levavam a salas de treinamento, arsenais e dormitórios coletivos, de onde ecos de conversas abafadas escapavam.
Tochas nas paredes complementavam a luz de janelas altas que refletiam nos brasões pendurados, cada um contando uma história de vitória ou família que serviu ao reino. O ar cheirava a metal e suor, com um toque de ervas dos feitiços de cura nas alas médicas próximas.
Ao sairmos do quartel-general, uma carruagem chique esperava Grenhard. Ele sempre me dava carona, e eu já não hesitava em entrar. Sentei no banco aconchegante, notando como minhas roupas novas contrastavam com o assento caro. Minha capa negra parecia absorver a luz do sol que entrava pela janela, e as botas levemente gastas não pareciam tão fora de lugar.
Graças ao meu salário e ao de Aragi, que agora recebia quinze moedas de ouro por quinzena, eu podia comprar roupas melhores — além da túnica, e também conseguiria comprar um novo par de luvas, mas graças as luvas de mana deers, eu não precisei comprar novas e provavelmente não comprarei novas luvas tão cedo.
Elas eram incrivelmente boas, macias e tão resistentes que eu me pegava pensando se elas serviriam para aparar golpes de espadas, mas é óbvio que eu jamais testei isso, eu tinha medo de acabar cortando minhas preciosas luvas em um teste idiota que não fazia sentido fazê-lo.
Eu não gostava de gastar dinheiro, mas eu pagaria até o dobro do que eu peguei naquelas luvas, como elas eram feitas de couro de mana deers eu suspeitava que elas tinham um encantamento que me ajudava ao empunhar uma espada, mas não tinha certeza disso, apenas um palpite. Ajustei o cinto e me acomodei para a viagem até o portão menor de Tournand.
Portão Menor de Tournand, Sudoeste do reino.
A carruagem parou. Grenhard não saiu — como parte da ordem dos magos, não do exército de Tournand, ele não tinha negócios aqui. — Obrigado pela carona, mestre Grenhard — disse, sorrindo, ao descer. Ele apenas retribuiu o sorriso. Fechei a porta, e a carruagem partiu pela rua principal de pedra.
Virei-me para a base ao lado do portão menor, encostada na muralha que cercava a cidade. Era uma construção robusta de granito escuro, com vigas de metal reforçando paredes e telhado. Tinha dois andares: o térreo abrigava quartéis, arsenal e sala de comando; o subsolo servia como depósito e cela temporária.
Uma torre de vigia se erguia ao lado, conectada por uma passarela estreita onde arqueiros vigiavam a floresta e o caminho abaixo. Apesar de pequena, a base era funcional, projetada para cerca de vinte guardas, com um pátio externo cercado por uma cerca de madeira onde cavalos descansavam e duelos de brincadeira ocorriam. O ar trazia cheiro de terra molhada e metal, e o som abafado de vozes e passos ecoava pelo pátio.
Entrei na base, recebendo olhares dos guardas. Alguns me cumprimentaram, eu vinha aqui com frequência conversar com o Capitão Eadric. O interior era austero, mas organizado. Paredes quase nuas exibiam poucos escudos e espadas pendurados. No centro da sala de comando, um grande mapa do reino e áreas próximas estava sobre uma mesa, cercado por cadeiras desgastadas. Guardas conversavam em voz baixa, outros afiavam armas ou organizavam suprimentos.
O cheiro de óleo para armas e couro envelhecido misturava-se ao aroma de pão fresco de uma cozinha improvisada no pátio que tivera que atravessar para chegar a sala de comando, O Capitão Eadric me esperava perto da mesa, braços cruzados, expressão séria. Acenou para que eu me aproximasse, e senti um nó no estômago.
— Capitão! — Parei diante dele, pés juntos, braços colados ao corpo, tentando parecer o mais respeitoso possível.
— Flügel, aqui está sua primeira missão — disse Eadric, sua voz firme, mas com um leve tom de cautela, como se ele estivesse pesando cada palavra. Ele pegou um mapa menor da mesa, dobrado com precisão, bem diferente do grande que estava estendido ao seu lado.
— Você vai sobrevoar a floresta e procurar por qualquer coisa anormal. Descubra o porquê se for seguro, se não, não desça. Siga até o pé das montanhas. Se não encontrar nada, volte e reporte. Se encontrar algo, marque aqui onde foi e retorne imediatamente. Essa será sua primeira missão. Uma carruagem não voltou no horário previsto, e você sabe sobre os sinos, certo?
‘É sério que essa é a minha primeira missão? Só checar se está tudo normal na floresta e descobrir o porquê de uma carruagem não ter voltado?’ O pensamento passou pela minha cabeça, mas, pensando bem, eu sou uma criança de sete anos.
Não era uma má ideia me dar algo sem grandes riscos. Ainda assim, uma inquietação me apertava o peito. Eu não conseguia esquecer aquele encontro assustador com o lich, os olhos vazios brilhando na escuridão.
— Sei sim, senhor! — Respondi com um sorriso, a animação pela missão superando o desconforto. Meu coração batia mais rápido, ansioso pelo que estava por vir.
— Siga apenas sobre a estrada das carruagens, está bem? Não precisa se aventurar além disso. Agora vá, e volte rápido. Se não estiver aqui em cinco horas, mandarei uma equipe de resgate — ordenou Eadric, acenando com a mão num gesto que parecia mais apressado que impaciente.
Seus olhos, no entanto, me seguiram por um instante a mais, como se ele quisesse ter certeza de que eu levaria suas palavras a sério. Antes de sair, alguns magos e espadachins me desejaram boa sorte com acenos e sorrisos rápidos. Agradeci a cada um com um sorriso tímido, sentindo um calor no peito por saber que estavam torcendo por mim.
Passei pelo portão, o chão agora de terra batida sob minhas botas. O sol ainda estava alto, longe do anoitecer, banhando a estrada com uma luz dourada.
— Certo, vamos lá… — murmurei para mim mesmo. Concentrei-me, manipulando a gravidade para aliviar o peso do meu corpo. Era algo que eu fazia com facilidade agora, sem precisar das mãos, ao menos comigo mesmo. Depois, conjurei uma corrente de ar, sentindo o vento me erguer. Meu estômago deu uma leve reviravolta ao subir, e o ar fresco bateu no meu rosto, bagunçando meu cabelo enquanto eu ganhava altitude.
“Novamente voando sobre a floresta, hein?” A voz de Nytheris ecoou na minha mente, quase nostálgica, mas com um toque de cautela.
“É, né? Mas dessa vez espero não pousar com uma queda feia” retruquei, rindo ao lembrar da vez que minha mana acabou no meio do voo, me mandando direto pro chão.
“Você tá mesmo tranquilo depois daquela história com o lich?” Nytheris perguntou, o tom mais sério agora, quase como se ele pudesse sentir a inquietação que eu tentava ignorar.
“Não sei… Tô tentando não pensar nisso” admiti, meus olhos varrendo as copas das árvores abaixo enquanto eu ajustava minha trajetória. Não era hora pra conversa fiada. Eu ia levar essa missão a sério.
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