Capítulo 70 - Encontro de energias
[ Pátio da ASA – 18h30 da noite. ]
O céu noturno estava limpo demais, sem uma única nuvem, e a brisa, morna e arrastando poeira, completava o famoso clima estranho antecessor do inesperado…
Seguindo o caminho de brita, Akemi passava pelas pedrinhas que sempre entregavam qualquer tentativa de andar despercebido, o que por sorte, não era o caso.
“Campo de Treinamento 3…” pensava ele, olhando de soslaio1 para a placa pendurada em uma estaca de madeira envelhecida, onde a tinta vermelha descascando nas bordas dava a impressão de que as próprias escrituras tentavam escapar.
Para uma tentativa inútil de parecer apresentável, o garoto ajeitou a gola do gakuran. “Ok, além desse maldito frio, não tem ninguém por perto? Que vazio estranho…”
À frente, protegendo o interior de um grande muro de tijolos claros, os duplos portões de ferro do Campo 3 se destacavam como a entrada de uma imensa estrutura amaldiçoada.
A visão daquelas grandes barras arqueadas e meio abertas trazia um tipo muito específico de desconforto: não era medo, era a falta dele, o que seria algo pior.
As portas foram empurradas pela força mínima de dedos finos: o portão cedeu de forma anormalmente fácil e rangeu até um breve estalo final.
Cuidando-se para que não esbarrasse na pouca abertura que tinha entre o vão da passagem, Akemi avançou. Cada passo afundava levemente num terreno irregular, arenoso em certos pontos, seco e duro em outros. O vazio continuava tomando conta: nenhum som além do próprio caminhar. Não havia postes, não havia iluminação alguma além do céu escurecido. Nos arredores, formas silenciosas de ruínas: casas quebradas, torres carcomidas, campos abertos com elevações artificiais de terra.
“Este lugar é feito para simulações de guerra? Macaaabro…”
Em um cenário que parecia ter sido usado pela última vez há anos e sem nenhum rastro recente de movimentação, não se podia deixar baixar a guarda.
Entretanto, mais à frente, entre as construções retorcidas por antigas batalhas simuladas, uma construção arrojada lateralizada na visão do jovem o chamou a atenção. A construção contava com contornos elegantes, elevados sobre uma base de mármore esbranquiçada, onde breves escadas de mesmo material levavam até a entrada desprovida de portas.
“Um dojô?”
O diferencial estava no que escapava do interior após a entrada: uma luz… clara, pulsante, e quente.
“Essa luz vindo lá de dentro… quase arde meus olhos…” Mesmo sem entender o porquê, Akemi seguiu adiante com certa reverência.
Quanto mais se aproximava, mais o calor se intensificava, cercando-o e envolvendo-o por completo como um abraço morno e sedutor. Era vivo, pulsante, cada passo trazia a sensação de feitiço. O calor devia queimar, mas somente acariciava e infiltrava a pele, a mente… e algo mais profundo.
Akemi já havia aprendido: sensações intensas não tocam apenas o corpo ou o pensamento, elas afetam sua aura; e naquele momento, imerso em uma vibração calorosa, ele não pensava em mais nada além de seguir em frente.
A vontade de confirmar a afirmação corroía cada segundo que passava em direção à construção. A luz do interior continuava sumindo e aparecendo, mas de maneira forte, como se convidasse e soubesse exatamente que o alguém viria.
— Afinal… que lugar é esse? — murmurou Akemi, subindo os poucos degraus onde o forte brilho aumentava, pouco, mas perceptível, o suficiente para fazê-lo parar por um segundo. O mármore sob os pés mantinha o calor com mais eficiência do que deveria. — Tem mesmo alguém após essas escadas?
A ideia que fisgou a mente do curioso foi se esgueirar pela lateral da entrada, porém, o som agiu antes.
FUOSH!!!
No centro do dojo, uma chama, resplandecendo todo o seu brilho e beleza, cegando tudo o que ousasse olhá-la. Entretanto, para a sorte de um garoto que viu poucas coisas na vida, Akemi era agraciado pela capacidade de observá-la.
De costas para a entrada, estava sentada a própria encarnação do fogo: uma figura humanoide de curvas definidas e inteiramente moldada por chamas vivas que tornavam seu corpo um manto inquieto. Os cabelos eram labaredas intensas que ondulavam no ar, vibrando o rubro que poderia ser extraído do coração de uma fênix. Do âmbar dourado nas extremidades até o vermelho incandescente que ampliava sua silhueta, a chama ardia com uma presença hipnótica, e ao mesmo tempo, bela e perigosa, como o próprio fogo sentado em forma de gente.
Quando a luz baixou, revelaram-se os contornos solenes do dojo sem janelas. Paredes de madeira escura, com detalhes dourados que reluziam sob tochas, mantinham o tradicional; o chão, claro e polido com esmero2 sagrado, refletia as colunas brancas e entalhadas com dragões esverdeados. Não havia móveis, só um vazio cerimonial onde o fogo iluminava em silêncio.
Ao contrário dos céticos que zombavam do impossível, aquela chama que remetia o encanto de uma entidade certamente possuía consciência, e por algum motivo insondável, ela meditava ali, canalizando sua energia com serenidade. Contudo, tamanha beleza e fascínio não poderiam vir sem instinto. Uma figura de teor tão poderoso certamente perceberia qualquer intruso antes mesmo que o ar mudasse, e independente do destino reservado àqueles que perturbassem sua paz, uma coisa era certeira: ela notou que não estava sozinha.
As chamas avermelhadas tremeluziram, então, lentamente, um olhar sobre o ombro revelou o brilho carmesim de olhos cravados num rosto amarelado, sem boca… sem nariz. Claramente, aqueles olhos sérios se mostravam atentos.
No instante seguinte, o intrigante havia sido notado.
Entre a entrada do dojo, onde atrás só era possível ver a escuridão da noite sobre muros e construções, mostrava-se alguém diferente, alterado.
Em todo o seu corpo, a eletricidade o usava de referência: correntes elétricas, amareladas e velozes como relâmpagos, atravessavam todo o seu ser, evadindo-se e infiltrando por diversos pontos diferentes de um corpo frágil e despreparado.
Para fechar toda aquela visão de brilho, aqueles olhos, antes castanhos e inseguros, brilhavam a energia de mil relâmpagos, onde o amarelo brilhava tanto quanto as chamas que os observavam e, insanamente, os hipnotizavam.
Aquele de vestes pretas, energizado entre a entrada, estava altamente perdido naquilo que contemplava, aparentemente, seu corpo já estava tomado pelo calor, e aquilo o alimentava fisicamente, mentalmente, e talvez, espiritualmente.
Na entrada do dōjō, onde a noite reinava absoluta por trás dos muros e construções destruídas, algo ou alguém, estava diferente… ou melhor, alterado.
Ali, a própria eletricidade havia escolhido o próprio condutor: correntes amarelas, ágeis e violentas como relâmpagos, percorriam um corpo com fúria, atravessando cada extremidade, escapando por pernas, braços, torso, e até poros. Era um espetáculo de energia crua, rasgando a fragilidade aparente de um corpo despreparado.
Para destacar toda aquela demonstração de energia, os olhos, antes castanhos e inseguros, reluziam o brilho de mil tempestades, amarelos como o fogo que os observava.
No instante da troca de olhares, surgiu-se algo nas duas presenças: uma admiração mutuamente hipnótica, insana, como se tivessem se perdido para sempre dentro um do outro…
Todavia, a primeira quebra de transe veio da chama.
— A-AKEMI???!!! — Levantando-se rapidamente e desafogando-se das chamas que a envolviam, Hiromi Miyazaki retornou ao seu estado normal. Seu rosto, ainda arregalado de surpresa e ligeiramente envergonhado, não conseguiu desviar o impacto visual de suas roupas possivelmente destinadas a treinamentos: um kimono alaranjado vibrante com padrões flamejantes nos punhos, barra e gola, combinado a calças bordô justas que destacavam brevemente a musculatura das pernas. Nos pés, nada.
Parado no limiar entre o interior do dojô e o mundo lá fora, vestido de negro e envolto em faíscas, Akemi parecia menos humano e mais fenômeno: estava consumido pelo que viu, ou talvez alimentado por isso. Sem responder ao grito da garota, ele deixava-se levar.
Diante do calor de chamas nunca antes vistas, o raio encontrou seu altar…
— Akemi? Ooi? — chamava Miya, aproximando-se cautelosamente do garoto que, faiscando energia absorvida, estava hipnotizado entre a entrada do dojo mal iluminado por tochas. “Ele… está diferente… Sequer está me ouvindo?!” pensava a garota, preocupada, curiosa, e acima de tudo, impressionada pelo que via.
O mesmo garoto desajeitado que nem conseguia emitir um sopro de energia, estava envolto em correntes elétricas em torno de seu corpo como serpentes douradas. Seus olhos, antes tão humanos, brilhavam com a intensidade de um céu em tempestade amarela.
— Ei, me responde! O que deu em você? — Palavras forçadas tentaram penetrar aquele estado catatônico e incrivelmente contido.
Nada.
Akemi continuava imóvel, como se visse algo além da garota à sua frente, além das paredes, além do próprio mundo. A eletricidade pulsante que o cobria alimentava-se de algo invisível e ao mesmo tempo presente.
“Isso não é normal… Essa energia… está dominando ele”, determinada, Miya esticou a mão. Se palavras não funcionavam, talvez um toque o trouxesse de volta. Seus dedos se aproximaram do rosto do jovem, lentamente… até que-
Tzzt!
Um arco de energia saltou da pele de Akemi e atingiu a ponta dos dedos de Miya como um aviso. Ela recuou com um suspiro entrecortado quando sentiu um formigamento desagradável subir pelo braço.
“Isso foi… uma absorção?!”
Não havia espaço para teorias, se Akemi estava perdido em si mesmo, só restava uma opção.
“Tenho que superar isso se eu quiser acordá-lo.”
Miya novamente esticou uma mão e, enfrentando as faíscas que aparentemente tentavam atrair sua força, preparou um peteleco.
Tap.
O som sutil do toque na testa ressoou pelo dojo vazio.
Akemi cambaleou, seus olhos piscaram algumas vezes. Quando as faíscas dissiparam-se como fumaça, o jovem levou a mão à cabeça, bem onde a pequena marca do leve golpe se formava.
— A-ah… — A voz dele começou confusa. O rosto voltou ao normal, levemente atordoado, mas consciente. — Eu… O que aconteceu?
Miya aliviou-se, contudo, cerrou os punhos. — Eu que te pergunto! E você não pode ficar parado aí, entre logo! — Sem esperar resposta, ela agarrou o pulso do garoto e o puxou para dentro do dojo. Do lado de fora, não era possível perceber nenhum brilho chamativo.
O interior tornou-se mais escuro: apenas as tochas nas paredes mantinham a ilusão de calor.
Miya soltou-se do rapaz, cruzou os braços e estreitou os olhos. — Explica. Agora.
Akemi analisou as próprias mãos na espera de ver algo a mais nelas. — Eu… não sei. Só lembro de ver uma luz. E depois… — Ele fechou os olhos e tentou reconstruir a memória. — Era como se eu estivesse sonhando acordado.
Miya não se convenceu. — Você estava coberto de eletricidade. E seus olhos… brilhavam.
“Olhos… brilhando? Não, não era eu quem estava assim.” Akemi não tirava da menta a figura flamejante que contemplou. Mesmo que estivesse reduzida a uma silhueta feminina envolta por traços de calor. — Mas… era você a impressionante.
— … Impressionante? — repetiu Miya, irônica, mas no fundo, receosa.
— Você estava toda em fogo. Não era apenas aura, era você. Seu corpo era chama.
Ainda de braços cruzados, Miya começou a tocar os dedos no cotovelo. “Normalmente eu consigo perceber a presença dos outros naquele estado. Mas por que eu não consegui pressenti-lo? Uma falha minha? Enfim, agora não dá pra voltar atrás”, seu rosto mantinha a expressão habitual de quem estava lidando com um cachorrinho teimoso, mas algo na curvatura dos lábios traía um possível segredo que ela queria esconder. — Hm… E daí? Você acha que é a primeira pessoa que vê algo que não devia?
— Não é sobre ver, eu… senti.
O ritmo ansioso dos dedos parou.
— Sentiu o quê?
Akemi abriu a boca, mas as palavras morreram na língua. Como explicar aquilo? A sensação de mil fios de energia despertando sob a pele e o arrepio que subiu pela coluna quando suas moléculas começaram a vibrar mais rápido. — Eu… não sei. — admitiu, frustrado — mas seu pai me informou que você queria me ver.
Bastou ouvir a palavra pai para Miya paralisar. — Meu… pai?
Um leve constrangimento resultou em uma coçada na nuca.
— É que eu queria entender melhor a minha aura, então fui atrás do seu pai. Até que a gente conversou bastante, aprendi coisas que nem imaginava… A médica da academia também apareceu pra ajudar, bizarra, mas eficaz. No fim das contas, descobri que minha aura reage bem com energias, principalmente o fogo. O calor meio que… alimenta ela, sabe?
“Hm, entendo”, Miya mapeava o caso. — Depois…?
O olhar afiado amedrontou o rapaz. “Caramba! Ela prestou atenção no que eu disse?” Mas ele continuou. — É… Depois de uns exames, seu pai comentou que você estaria me esperando neste campo de treinamento — uma olhada ao redor flagrou desconfiança — só não achei que estaria tão vazio e… escuro.
— Haaah… claro que ele faria isso.
— Miya… o que tá-
— Quer mesmo melhorar seus dons com aura?
Assentido, sem hesitar.
— Então me espere amanhã, aqui, no mesmo horário — ordenou Miya, direcionando-se para a saída do dojo.
— E-ei! Por que quer de novo que nos encontremos aqui?
Miya não diminuía o passo, gestos irritados demonstravam frustração e toques de aceitação. — Você não podia ter vindo aqui hoje. Ninguém deveria. Mas agora já era… A partir de amanhã, este horário será destinado a treinos extras sobre sua aura.
— Espera! Pra onde vai?
Entre a entrada, Miya virou-se, e num cruzar de pernas, escorou-se. — Vou para outros aposentos. Recomendo que não me siga… por enquanto. Se continuarmos próximos agora, só aumentamos o risco de sermos interrompidos.
— Eu não entendo. Sei que está falando do Jin, mas… quer mesmo que a gente continue se encontrando aqui, todos os dias? E se ele aparecer alguma hora?
— Tsc, acha mesmo que ele tem um tempo reservado só pra nos vigiar? Por favor. Ele é um atolado, e ironicamente, por culpa dele mesmo, aquele cargo de diretor fajuto ganhou data pra acabar.
— Data?
— Gostaria de ser detalhista, mas agora não temos tempo. No mais, tome cuidado ao se aproximar de mim até a segunda ordem.
— Engraçado, dormimos no mesmo quarto e só agora você age com cautela?
— Estava tudo sob controle.
— Você é maluca!
— Só tentei fazer o máximo pra manter a única pessoa no qual confio por perto.
— …
— Hihihi, qual é a dessa cara? Nunca se sentiu considerado?
— …
— Ok, ok. Não está tão tarde, mas te recomendo dormir logo, precisaremos de muita energia amanhã. Se Nikko perguntar sobre mim, diga que passarei a noite sob alguns afazeres. Então, até mais! — Apressadamente animada, Miya desceu os degraus e sumiu da visão de Akemi.
— … Até mais…?
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