Índice de Capítulo

    Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
    Aspas duplas para conversa mental: “
    Travessão para falas em voz alta: —

    O vento soprava frio contra meu rosto enquanto eu sobrevoava a floresta, os olhos varrendo as copas das árvores abaixo.

     Minha primeira missão não era exatamente o que eu esperava. O capitão Eadric informou que uma carruagem não retornara ao portão menor de Tournand no horário previsto, e minha tarefa era descobrir o motivo. Só isso. 

    Mineradores seguiam para as montanhas além da floresta densa em busca de pedras, outros entravam na mata para coletar madeira e ervas. 

    Mas ninguém saía sem um sino, aqueles artefatos que tilintam suavemente e afastam os monstros conhecidos por aqui. Se a carruagem não voltou, algo deu errado. Algo que eu preferia não enfrentar.

    “Você está muito quieto” disse Nytheris na minha mente, o tom cortante como sempre.  “Está com medo de encontrar um troll ou o quê?”

    “Não é isso” retruquei, ajustando o voo para descer um pouco mais.  “Só quero terminar logo.” Era mentira. Meu peito se apertava só de lembrar do lich — aqueles olhos vazios que pareciam me engolir. Eu não queria cruzar com nada parecido outra vez.

    Toda a minha excitação havia desaparecido quando finalmente compreendi o que aquilo significava.

    Eu estava indo descobrir o desconhecido, assim como na vez em que eu encontrei o Lich. Eu estava com medo de desbravar o desconhecido novamente. 

    Então eu vi. Entre as árvores, uma forma escura emergiu na penumbra era a carruagem, ou o que restava dela. A madeira estava estilhaçada, retorcida como se algo a tivesse esmagado com força bruta. 

    As rodas, quebradas em pedaços tortuosos. Corpos jaziam espalhados ao redor, sombras imóveis na terra úmida, e o ar parecia pulsar com o peso da morte. 

    Eram quatro, cada um mutilado de forma mais grotesca que o outro. 

    O primeiro estava partido ao meio, as entranhas derramadas como cordas viscosas sobre a terra, o torso separado das pernas por uma força que deixou as vértebras expostas, lascas de osso branco manchadas de vermelho escuro.

    O segundo jazia sem um braço, a carne do ombro rasgada em tiras irregulares, o osso do úmero exposto e rachado, pingando uma mistura de sangue e pus que formava uma crosta fétida. 

    O terceiro estava sem cabeça, o pescoço reduzido a um coto irregular, os tendões pendurados como fios partidos, o sangue seco empoçado ao redor em uma massa negra e espessa, cheia de moscas que zumbiam num coro ensurdecedor.

    O último tinha o peito aberto, as costelas quebradas para fora como uma gaiola estilhaçada, o coração exposto ainda úmido.

    Meu estômago revirou, um gosto amargo e quente subindo pela garganta, e eu quase perdi o controle do voo. Forcei-me a pousar, as botas afundando no chão úmido com um som viscoso. 

    Olhei para baixo e vi que pisei numa poça de sangue coagulado, espesso como melaço, grudando no couro e subindo pelas laterais como se tivesse vida. 

    O fedor me atingiu em seguida, um golpe nauseante de sangue metálico e bile, tão forte que senti o cheiro se agarrando às minhas narinas, queimando a garganta. Meu coração disparou, o pavor subindo pela espinha como uma lâmina gelada.

    — O que aconteceu aqui? — murmurei, a voz trêmula, os olhos fixos nos corpos. Um dos homens ainda segurava um sino na mão. 

    Ele era pequeno, de bronze, as runas gravadas emitindo um brilho fraco, quase extinto. ‘Se o sino servia para afastar monstros, por que eles estão assim?’

    “Parece que o sino não deu conta” disse Nytheris, como se lesse meus pensamentos. Sua voz estava mais baixa agora, carregada de uma tensão que eu raramente ouvia. “Olhe em volta, Flügel. Algo ainda pode estar por aí.”

    O ar parecia mais denso, trazendo um cheiro azedo que se misturava ao fedor dos corpos. Então, uma sombra moveu-se entre as árvores. Alta, esguia e silenciosa como a morte. 

    Não ouvi passos, apenas vi de canto de olho os trapos negros flutuando na penumbra, como serpentes prontas para morder. Meu corpo congelou, o ar preso nos pulmões. 

    Antes que eu pudesse gritar, ele veio. Rápido, um borrão de escuridão. Garras afiadas como lâminas rasgaram minhas costas. 

    Senti cada uma delas cortando a pele, rasgando os músculos em tiras, o som úmido e nauseante da carne se partindo misturado ao arranhar agudo contra as vértebras.

    O sangue jorrou quente, escorrendo em riachos grossos, e o impacto me lançou contra a carruagem quebrada, meu corpo colidindo com um estalo seco que reverberou nos ossos. A dor era um inferno líquido, queimando cada nervo. 

    Roubando o ar dos pulmões. Tentei me virar, mas as garras voltaram, perfurando meu peito com um som molhado e oco. 

    Olhei para baixo, atordoado e assustado, vendo os dedos ossudos atravessarem minha carne, as costelas partindo como gravetos secos, o sangue explodindo em golfadas quentes que encharcavam minhas roupas. 

    Um puxão brutal veio em seguida. Minha cabeça se soltou com um estalo úmido e viscoso, os tendões do pescoço esticando e rasgando como cordas podres. 

    O mundo girou enquanto eu caía, e por um instante vi meu próprio corpo tombando, o pescoço jorrando sangue em arcos vermelhos.

    Tudo ficou preto. Um vazio absoluto, onde o som do meu coração cessou. Então, presenças e vozes surgiram — dezenas delas, graves e dissonantes, como um coro vindo de um abismo:  — Você é aquele rejeitado pela morte, Flügel. Retorne e aprenda com seus erros.  — Uma luz caótica rasgou a escuridão. Intensa, ofuscante, como se o céu tivesse explodido em mil cores. 

    De repente, eu estava de pé outra vez. Minhas botas afundaram no chão úmido, a carruagem estilhaçada à minha frente, o ar frio batendo no rosto. 

    Meu peito estava inteiro, minha cabeça no lugar, mas a memória daquele corte, daquelas garras, do meu sangue pingando.

    Tudo queimava na minha mente como se ainda estivesse acontecendo. Minhas mãos tremiam, o suor escorria pela testa, e eu mal conseguia respirar.

    — O que…? — murmurei, a voz rouca, os olhos arregalados. Eu estava em choque, tudo aconteceu tão rápido que eu não tive tempo de digerir tudo, mas o medo se instalou em meu corpo, a dor exorbitante, mas passageira, deixou uma marca profunda em minha mente e alma.

    “Flügel?”  Nytheris chamou na minha mente, o tom estranho, quase hesitante.  “Por que você está parado aí desse jeito?”

    Pisquei, encarando os corpos novamente. Tudo estava igual,  minerador sem cabeça, o sino brilhando fraco, os pedaços espalhados. Mas eu sabia. Eu tinha morrido. 

    Minha cabeça rolara naquele chão, meus olhos tinham visto meu próprio corpo tombando antes de tudo apagar. E agora eu estava aqui, vivo, como se o tempo tivesse retrocedido. O gosto metálico do sangue ainda estava na minha boca, mesmo sem uma gota à vista.

    Por alguns segundos, meu corpo tremia incontrolavelmente, e eu mal conseguia focar a visão.

    Escondendo todo o medo e instinto de sobrevivência eu me forcei a pensar racionalmente.

    ‘Talvez um mau presságio?!’ Minha mente estava aos poucos voltando a pensar corretamente

    Rapidamente movendo meus olhos de um lado pro outro, caçando o ser que eu vi me rasgando feito um boneco de pano. 

     – Nytheris! – Minha voz falhou, interrompida por um movimento à minha direita. O ar ficou mais pesado, o cheiro azedo intensificando-se. Virei a cabeça o mais rápido possível, o coração disparado. 

    Ele estava lá, o Vulto Esfarrapado. Os trapos negros flutuando como sombras vivas, a máscara de osso branco inclinada na minha direção, o brilho roxo atrás dela pulsando lento, quase hipnótico. 

    Ele não se moveu, apenas me encarou. Senti o peso daquele olhar sem olhos, como se ele soubesse o que eu tinha visto. 

    Então, num piscar, ergueu a mão direita. As garras brilharam, finas e longas, cortando o ar num arco cruel. O golpe acertou do meu ombro esquerdo ao peito direito, rasgando minhas roupas e abrindo a carne numa linha irregular. 

    A dor veio como um trovão, um fogo que consumia tudo, e o sangue jorrou quente, encharcando meu peito e escorrendo pelas pernas.

    — AAAHHRR! — O grito escapou, rasgando minha garganta, um som selvagem que ecoou pela floresta. Meu corpo cambaleou, a visão embaçando enquanto eu levantava as mãos trêmulas. 

    O corte era profundo — eu sentia o osso exposto no ombro, o ar assobiando pela carne rasgada, o sangue pingando em poças escuras no chão. 

    Não ia morrer de novo, não tão cedo. Foquei minha mana, os dedos quase inertes, e conjurei um feitiço de gravidade, reduzindo meu peso até parecer uma pena. 

    Com um esforço que arrancou outro grito abafado, lancei uma rajada de vento para baixo, me jogando para o alto. 

    Subi desajeitado, o sangue caindo em gotas grossas, manchando a terra abaixo, enquanto o Vulto Esfarrapado permanecia parado, a máscara branca me seguindo, o brilho roxo faiscando como se me desafiasse.

    Eu pairava no ar, o peito em chamas, cada respiração um esforço que fazia o corte arder mais. 

    Minha capa estava encharcada, colando na pele, o sangue escorrendo até os pés, pingando como chuva. Minha visão tremia, pontos pretos dançando nos cantos, mas eu ainda estava vivo – por enquanto.

    — Flügel, você está sangrando muito! — Nytheris gritou na minha mente, a voz cortante, mas trêmula.

    Eu sabia que, se continuasse assim, desmaiaria e cairia direto nas garras daquele monstro. Com esse pensamento, uma onda súbita de raiva irrompeu do meu peito à cabeça, colocando-me em alerta.  

    — Eu sei, Nytheris! — respondi grosseiramente, embora soubesse que ele só estava preocupado. Mais tarde, me desculparia.

    Assim como usava a magia de gravidade no meu corpo sem precisar das mãos, troquei-a pela magia de cura. Meu corpo começou a se regenerar, mas lentamente. Eu morreria antes de me recuperar. 

    Olhando para o chão, vi o Vulto Esfarrapado me encarando, como um urubu observando um animal moribundo. Ele esperava que eu caísse, vencido. Eu não deixaria isso acontecer.

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