Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 34 — Tão Fraco, Tão Tarde.
Desativei parcialmente a gravidade, descendo rápido e parando em intervalos até tocar o chão. Ele não avançou; parecia saber que, se apenas esperasse, meu tempo chegaria. — Nytheris, espada!
Nytheris emergiu de mim, criando duas espadas negras com sua mana. Uma para mim, outra para ele. A pele e a carne do meu peito pendiam, expostas.
Agarrei a espada com a mão direita, os dedos escorregando no cabo por causa do sangue. A lâmina negra pulsava, como se tivesse vida, e eu sentia a mana de Nytheris fluindo dela, fria e afiada.
Ele ficou ao meu lado, segurando sua espada com firmeza, os olhos pretos fixos no Vulto Esfarrapado. O ar vibrava, o silêncio da floresta cortado apenas pelo som úmido do meu sangue pingando, gota a gota.
O Vulto não se mexeu, os trapos negros flutuando lentamente, como se dançassem num vento que eu não sentia. A máscara de osso branco em me encarava, o brilho roxo pulsando mais forte, como se ele saboreasse minha fraqueza.
Eu sentia o peso daquele olhar, mesmo sem olhos para me fitar, era como se ele estivesse dentro da minha cabeça, aguardando o momento em que eu desmoronaria. Mas a raiva queimava mais forte que a dor, um fogo que me mantinha de pé.
— Você não vai me pegar de novo — murmurei entre dentes e maldições, a voz rouca, quase um rosnado. Minha mão apertou o cabo da espada, ignorando o tremor no braço.
O corte no peito ainda sangrava, a magia de cura mal fechando as bordas rasgadas, mas eu não ia esperar mais. Temia não ter muito mais tempo, e isso me aterrorizou tanto quanto me enfureceu. Não daria a ele a satisfação de me ver cair.
Nytheris deu um passo à frente, a espada apontada para o Vulto. — Ele está brincando conosco, Flügel — disse ele, a voz firme, mas com um fio de tensão.
— Não deixe ele te enrolar. Vamos acabar com isso agora.
Assenti, o movimento causando uma pontada de dor no ombro. O Vulto inclinou a cabeça, como se tivesse entendido, e os trapos negros começaram a se agitar mais rápido, subindo como serpentes prontas para atacar.
Ele deslizou para a frente, as garras brilhando na penumbra. Meu coração disparou, mas ergui a espada.
Ele veio primeiro para mim, as garras da mão direita cortando o ar num arco que mal vi. Por instinto, joguei o corpo para o lado, o feitiço de gravidade me deixando leve o bastante para desviar.
A garra passou a centímetros do meu rosto, o ar assobiando com a força do golpe, o vento frio roçando minha bochecha.
Antes que ele pudesse virar, Nytheris atacou pela esquerda, sua espada negra partindo os trapos no caminho.
A lâmina cortou o tecido sombrio, que se desfez em fumaça preta, mas o Vulto não recuou. Girou o corpo, a mão esquerda mirando em Nytheris com uma velocidade que não era nada menos que impressionante.
— Nytheris, cuidado! — gritei, a voz rasgando a garganta já dolorida. Ele pulou para trás, a garra cortando a ponta da manga do hanfu dele, mas sem acertá-lo. O Vulto parou por um instante, os trapos se contorcendo como se irritados, e eu aproveitei.
Corri para a frente, a espada erguida. E golpeei com toda a força que me restava, mirando a máscara de osso. A lâmina acertou precisamente, um som seco ecoando pela estrada, e o brilho roxo atrás da máscara piscou, como se eu o tivesse ferido.
Mas ele não caiu. A máscara rachou em uma linha fina subindo pelo lado esquerdo, mas o Vulto apenas virou a cabeça para mim, o brilho roxo agora mais intenso, quase cegante.
Os trapos se ergueram, mais longos e rápidos, e, antes que eu pudesse recuar, um deles se enrolou no meu tornozelo, puxando com força.
Meu corpo leve voou para o chão, batendo com um baque que arrancou o ar dos pulmões. A dor no peito explodiu novamente, o corte se abrindo mais. O sangue quente escorrendo pela barriga.
— Flügel! — Nytheris gritou, correndo na minha direção, mas o Vulto foi mais rápido. Apoiei-me num joelho, a espada ainda na mão. Minha respiração saía em chiados curtos, cada movimento uma agonia. Mas a raiva ainda me segurava.
— Não vou morrer de novo — cuspi entre os dentes cerrados, encarando o brilho roxo que ameaçava perigosamente escapar de trás da máscara de ossos. Levantei a cabeça, pronto para me pôr de pé, mas então tudo parou.
Não vi nada. Não ouvi nada. Só senti um vazio gelado, e um péssimo pressentimento, algo que eu gostaria de nunca mais conseguir sentir, aquele terrível medo, aquele arrepio em todo o corpo.
E então de repente uma dor lancinante explodiu no meu pescoço. Minha visão escureceu num piscar enquanto eu caía para trás.
O chão bateu contra minhas costas, mas eu não senti o impacto, apenas o calor úmido e quente escorrendo pelo peito.
Minha mão soltou a espada, os dedos moles. E percebi, tarde demais, que o vulto estava mirando em minha garganta. O Vulto me pegara novamente, rápido demais para eu reagir.
O sangue jorrou, e junto com ele o terror tomou conta da minha mente confusa com a velocidade dos acontecimentos.
Um gorgolejo escapou enquanto eu tentava respirar e tampar o corte com as mãos.
Lágrimas escorriam como rios dos meus olhos, tentava estancar inutilmente o buraco em minha garganta, me agarrando à esperança de viver a esse ferimento fatal.
O sangue vazava sem parar por entre os meus dedos, e minha força ia embora junto com ele. Todos aqueles segundos de agonia pareceram durar horas, e então logo minha visão foi tomada pelo breu.
No fim, não foi o medo da morte que me apavorou — foi o silêncio. Aquele silêncio interno que toma conta quando você aceita que fracassou. De novo. Era como cair num poço onde nem os próprios pensamentos te alcançam.
E, ainda assim… parte de mim implorava por mais uma chance. Por quê? Eu não sabia. Talvez porque eu nunca tivesse tido uma escolha.
As vozes voltaram junto com as presenças, mais altas agora:
— A morte não o aceita, Flügel. Retorne e aprenda com seus erros. — A luz caótica explodiu novamente, um turbilhão de cores que queimava os olhos, e eu estava de pé mais uma vez, as botas afundando no chão úmido.
A carruagem estilhaçada à minha frente, os corpos espalhados, o sino brilhando fraco. Meu peito estava inteiro, minha garganta intacta.
Mas a memória daquelas garras cortando meu pescoço, do sangue enchendo minha boca, me fez cambalear. Minhas pernas tremeram, e caí de joelhos, o ar entrando em golfadas rápidas e rasas.
“Flügel! O que está acontecendo com você?” Nytheris gritou na minha mente, o tom agora puro pânico. “Você está agindo estranho pra caramba!”
Não respondi. Não conseguia. Minha cabeça girava, o gosto do sangue ainda preso na garganta, mesmo sem ele estar lá.
Quantas vezes eu ia morrer hoje? Quantas vezes aquele monstro ia me rasgar antes que eu entendesse o que estava acontecendo?
Levantei os olhos devagar, o coração disparado, e lá estava ele, o Vulto Esfarrapado, a poucos metros, os trapos negros flutuando como se zombassem de mim, a máscara rachada me encarando com aquele brilho roxo que parecia rir da minha fraqueza.
Meu corpo estremeceu ao vê-lo. Desesperado, gritei — Nyth — O som morreu na minha garganta. Ele percebeu que eu faria algo e lançou um dos trapos flutuantes contra meu rosto.
O impacto foi devastador. O osso do nariz se despedaçou com um “crack” úmido e nauseante, a cartilagem afundando num estalo que reverberou dentro do meu crânio.
A dor explodiu como um prego incandescente cravado na minha face. Uma onda branca e quente que fez meus olhos se encherem de lágrimas instantâneas.
Caí para trás. Sangue jorrando em torrentes espessas, escorrendo pelas narinas destruídas e inundando minha boca com um sabor metálico e podre.
Tentei respirar, mas o ar não entrava. O líquido viscoso encheu minha garganta, borbulhando nos pulmões enquanto eu me afogava em mim mesmo.
Levei as mãos ao rosto, os dedos trêmulos tocando a cavidade disforme onde meu nariz estivera, sentindo os ossos esmagados misturados à carne rasgada, os estilhaços da ponte nasal cortando minha palma enquanto o sangue quente escorria em riachos grossos pelo queixo e peito.
Tentei gritar, mas só saiu um gorgolejo abafado, o som distorcido e grotesco enquanto o ar lutava para passar pela garganta entupida de sangue. Meu corpo convulsionou, o pânico me dominando enquanto o chão parecia girar sob mim.
A visão embaçou, os olhos ardendo com o sangue que pingava das órbitas, e a escuridão me engoliu como uma onda gelada.
Acordei rodeado pelas mesmas entidades que já vira três vezes hoje. — O seu destino não acaba aqui. Retorne e aprenda com seus erros — disseram em uníssono. Então, voltei ao mesmo ponto, onde sou rasgado repetidamente.
Comecei a me perguntar se isso era punição, ou um teste. Não sabia quem estava me forçando a reviver aquilo.
Os Deuses? Nytheris? Eu mesmo? Cada morte deixava cicatrizes que não sumiam. Meu corpo sempre voltava ao normal, mas a cada experiência de morte eu sentia um pedaço de mim mesmo se quebrar.
“O que aconteceu, Flügel?!” Nytheris falou na minha mente, tirando-me do estupor. Só o ouvi porque ele estava dentro da minha cabeça; os sons ao redor estavam distantes e indistintos.
Não respondi. Concentrei o máximo de mana possível na mão direita, virei-me e lancei uma bola de fogo do tamanho do meu punho para trás, onde o Vulto normalmente surgia.
Lá estava ele, já correndo para me atacar, silencioso e imprevisível como a morte. A bola de fogo o atingiu em cheio, mas não surtiu efeito, talvez por eu não ter tido tempo de infundi-la com mana suficiente.
‘De novo não!’ gritei na minha mente. Não aguentava mais sentir a dor de ser despedaçado e retornar ao mesmo lugar, sem progresso. Mas, enquanto ele avançava, a presença de Nytheris sumiu mais rápida que as garras do Vulto.
Nytheris emergiu de mim, materializando primeiro o torso e os braços. Na mão direita, uma adaga negra, estilo medieval.
Com o Vulto vindo em alta velocidade, ele não conseguiu parar e nem desviar. O monstro balançou as garras para atingir Nytheris, acertando-o, mas a adaga de Nytheris cravou-se na máscara branca.
O Vulto cambaleou para trás e caiu imóvel no chão com um baque seco.
— Heh… — Foi tudo que consegui dizer, encarando o ser que me fizera sofrer tanto, agora derrotado. Fora tão fácil acabar com ele que todo o meu sofrimento inexplicável parecia banal.
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