Capítulo 577 - Investigações

Após uma longa e conturbada noite, Garância enfim viu a luz de um novo dia. E com o amanhecer, as tropas que estavam em alerta total dentro dos muros, finalmente foram enviadas para diversos locais.

A primeira coisa a ser feita, foi garantir que as rotas comerciais estivessem seguras antes que as caravanas das Guildas Comerciais chegassem.

Mesmo que a cidade tivesse sofrido baixas militares dentre as tropas nos postos avançados e as designadas para a defesa da muralha, isso não era uma perda tão significativa no espectro geral, mas se falhassem em manter essas rotas comerciais, as Guildas de Mercadores iriam se recusar a fornecer suprimentos devido à incapacidade dos Leões Dourados em garantir a segurança regional, o que causaria uma crise logística e reputacional.

Além disso, ainda havia o fato de não terem conseguido proteger adequadamente as Guildas de Construção, com o Salão da Recepção tendo que ressarci-los pelo prejuízo, somado ao controle mais rigoroso na entrada de pessoas na cidade, instituído depois do incidente com assassinos infiltrados da Família Lopes, todos esses acontecimentos somados poderiam acarretar com Garância isolada economicamente, o que geraria um grande transtorno financeiro.

Dentro de uma sala de reuniões, numa enorme mesa central, várias figuras estavam sentadas, com expressões variadas.

No local estavam Wayne, Herin, Zado, Ramon, Pagliuca e por fim, Oliver.

“Por quanto tempo vamos esperar? Isso é ridículo!” Herin declarou, com a voz irritada.

“Vamos aguardar, Dimitri está chegando.” Wayne respondeu, com a voz calma. “Essa é uma reunião importante, preciso de todos aqui.”

“Por que deveríamos esperar? Uma pessoa a menos não fará diferença, ainda mais um General de enfeite.” O homem, de longa barba negra e cabelos compridos, falou abertamente.

Muitos franziram as sobrancelhas ao vê-lo agindo e falando dessa forma. Mesmo que todos soubessem que Herin e Dimitri não tinham boas relações, era um tabu no meio militar criticar abertamente um companheiro de alta patente de forma tão ofensiva.

Como todos ali eram figuras prestigiadas, não deveriam permitir que a reputação de um General fosse manchada, pois isso prejudicaria toda a visão que as pessoas comuns tinham deles.

Bam!

Nesse momento, a porta foi subitamente aberta com força, quando um velho homem com cabelos espetados adentrou, sua expressão escura. Quando seus olhos se cruzaram com os de Herin, a irritação era aparente. No entanto, apesar disso, ele não disse nada, sentando-se em seu lugar.

Herin obviamente sabia o motivo da sua frustração e se regozijou a respeito.

Já me livrei do seu querido pupilo Dimitri, agora será sua vez. Não permitirei que um sujeito inferior como você me desafie novamente! pensou, com os olhos fixos no sujeito de cabelos espetados, que imediatamente devolveu o olhar, encarando-o de forma afrontosa, como se chamas fossem saltar de seus olhos a qualquer momento.

“Muito bem, como todos estão aqui, vamos começar.” Wayne falou, emanando autoridade. Mesmo que o desconforto entre os dois homens fosse visível, ele não deu atenção. “Recapitulando os eventos da última noite, após o ataque do Rei Carniçal e dos Carniçais, despachamos todos vocês para setores distintos com diferentes missões a serem concluídas. Os Generais Zado, Dimitri e Ramon, bem como a maioria dos Majores, ficaram responsáveis pelo rastreamento preventivo e detecção de tropas Orcs além da fronteira. Como é uma área sensível, que poderia causar uma questão diplomática, apenas pessoas de alto nível foram enviadas. Além de monitorar os Orcs e garantir que não intervissem, também havia o objetivo de criar uma teia de segurança para impedir que o alvo da operação fugisse ou recebesse reforços.”

Todos ficaram em silêncio, enquanto ouviam o Comandante detalhar a função de cada um.

Durante o ataque a cidade, a maior preocupação não era sobre como lidar com o Rei Carniçal ou com os incontáveis Carniçais, pois com tantos Majores e Generais em Garância naquele momento, eles poderiam neutralizá-los em pouco tempo. O real temor dos Generais era de que os Orcs se aproveitassem da confusão para lançar uma nova investida contra a cidade, ignorando o armistício. Ou mesmo que houvessem mais forças inimigas por trás disso além do Necropto.

Logo Wayne tirou alguns documentos, analisando-os e fazendo a leitura.

“Por último, General Herin ficou a cargo de atrasar o Rei Carniçal e impedir que a Matriz de Defesa fosse danificada, mobilizando as tropas próximas para resguardar a muralha, enquanto eu e o General Pagliuca ficamos incumbidos de resguardar o QG, e o Major Oliver seria aquele encarregado de capturar o Necropto.” O General Comandante relembrou, destacando os pontos e funções de cada um.

Com exceção de Wayne e Pagliuca, todos os outros haviam recebido missões externas importantes e dentre esses a mais destacada era a de Oliver.

Nesse ponto, obviamente os outros Generais já haviam sido informados de seu fracasso.

“Nós conseguimos repelir o inimigo e nossas perdas foram mínimas. Eu gostaria de dizer que fomos bem sucedidos nessa operação, mas não é o caso…” Wayne prosseguiu, o descontentamento em sua voz era visível. “Não só não capturamos vivo o Necropto que orquestrou esse ataque noturno, como temos três Majores Combatentes desaparecidos. Alguém gostaria de explicar como essa situação ocorreu?”

Um longo silêncio se seguiu na sala, com ninguém tomando a iniciativa.

Embora a vida de um Major não tivesse o mesmo peso e importância que a de um General, era necessário muitos anos de treinamento e recursos investidos pela Legião até que alguém chegasse a essa patente, perder três numa única noite e sem sequer saber quem ou o que havia feito isso, era algo grave e vergonhoso.

Nesse momento, Pagliuca tossiu levemente.

“Acredito que isso deva ser conduzido sabiamente pelo General Wayne, mas se me permite, Comandante, gostaria de fazer uma indagação.”

Ouvindo as palavras do homem negro, Wayne assentiu, concordando. Como um General da Sede do Poder, sua autoridade não era menor que a dele próprio. Além disso, agora eles eram aliados, ceder às vezes era essencial para que mantivessem uma boa relação.

“Meu questionamento vai para o General Ramon.” Pagliuca falou, olhando para o sujeito, que ficou desconfortável ao ser mencionado. “Segundo a missão que lhe foi delegada, vocês deveriam ficar de olho nos Orcs e quando o Major Oliver localizasse o alvo, caso ele fugisse para sua direção, vocês deveriam interceptá-lo. Contudo, segundo o relatório inicial do Major Oliver, o Necropto não se dirigiu para nenhuma das áreas que nós demarcamos, mas inesperadamente contornou os arredores do nosso território, se dirigindo para a parte interna do cerco. Sendo assim, não houve necessidade da sua intervenção e você também não relatou nenhuma movimentação suspeita por parte dos Orcs em seu relatório inicial. Mas, mesmo assim, como exatamente dois dos três Majores desaparecidos, que eram meus homens pessoais, sumiram na sua área designada?”

Ainda que o homem aparentemente estivesse sendo cortês em sua pergunta, estava claro que ele não estava nada feliz com a situação.

Ramon franziu a testa, arrumando-se em sua cadeira. Dentre todos os Generais, ele era o que menos gostava de ser o foco das atenções. Mesmo em sua alta posição, sabia bem que alguém como ele, que era um General com poucas conquistas e reputação, não deveria se destacar demais, ou seria martelado.

“Assim como ordenado, observei as tropas Dobats a noite inteira enquanto aguardava qualquer sinal do Major Oliver. Os dois desaparecidos estavam perto da minha área, mas não senti qualquer sinal de flutuações de mana no ar que indicasse uma batalha. Também vasculhei os arredores ao amanhecer e não encontrei um único rastro. Eu não sei exatamente o que aconteceu naquela floresta, mas se eles foram atacados, provavelmente o responsável por isso os subjugou facilmente e antes que tivessem a chance de reagir.” explicou, dando o máximo de detalhes possíveis.

“Talvez tenham sido os Orcs.” Dimitri afirmou. Ele também estava em outro ponto da floresta e notou alguma estranheza naquela noite. “A floresta geralmente esta infestada de patrulhas, mas não vi uma única deixando o acampamento Leste deles, esse comportamento é suspeito.”

No entanto, Ramon discordou.

“Eu também acredito que havia algo de estranho nisso, mas ainda acho que é improvável que tenha sido uma ação dos Dobats. Estive de olho no acampamento principal deles a noite toda e eles não deram qualquer indício de que fariam algo. Além disso, Orcs são grosseiros e burros, não parece o modo de agir habitual deles. Se tivessem matado esses três homens, haveria rastros. Mesmo um Orc Lorde não consegue escapar do meu rastreamento, mas não havia nada, nem uma única pegada recente nos locais, é como se eles tivessem simplesmente sumido…”

As palavras de Ramon, causaram um sentimento de estranheza a todos. O sujeito parecia convicto em sua afirmação e como um General, não havia motivos para ele mentir.

Além disso, o relato de Dimitri parecia criar uma sensação de incômodo em todos. Como pessoas que lutaram com Orcs por uma vida, eles sabiam que as criaturas não eram do tipo que se intimidavam ou cediam território facilmente. Não importa como vissem isso, só havia um motivo para que eles não enviassem patrulhas naquela noite, eles estavam se protegendo!

Esse pensamento passou pela mente de todos, mas como parecia ridículo, ninguém mencionou abertamente.

Zado, que estava pensativo, logo chegou a uma nova conclusão, que parecia mais crível.

“Talvez o Necropto não estivesse sozinho, afinal. Talvez ele fosse apenas uma isca. Assim como fizemos com que o inimigo focasse sua atenção na cidade enquanto nos movíamos pelas sombras, eles podem ter feito o mesmo conosco. Afinal, como ele poderia sozinho controlar tantos Carniçais?”

Alguns pareciam concordar com essa ideia. Mas Pagliuca não parecia convencido, enquanto olhava fixamente para Ramon, como se estivesse o sondando.

“Meus homens lidam com Magos das Trevas a todo momento, eles jamais seriam mortos ou capturados sem resistência. Mesmo se um Necromante pessoalmente os atacasse.” garantiu.

Vendo a desconfiança e descontentamento do homem, Wayne suspirou.

“Enviaremos pessoas para investigar os locais novamente. Peço que seja paciente quanto a isso, General Pagliuca. Se seus homens estiverem vivos, vamos achá-los.” 

Apesar das palavras do Comandante, o General da Sede do Poder não parecia muito disposto a ouvi-lo.

“Isso não é necessário, eu mesmo lidarei com isso.” afirmou, com alguma confiança e altivez.

Vendo que o sujeito não tinha planos de recuar quanto ao assunto, Wayne acabou assentindo em concordância.

Atualmente eles haviam acabado de estabelecer uma aliança com membros do Conselho Dourado que faziam oposição a Dimas e sua facção e o único elo que tinham com eles era por meio de Moura Pagliuca. Desta forma, não era de seu interesse causar atritos.

“Muito bem, quanto ao próximo assunto… Major Oliver, eu li seu breve relatório inicial, mas há muitos pontos confusos, gostaria que esclarecesse como exatamente tudo aconteceu e como o Necropto foi morto. Com sua capacidade, lidar com um Mago Negro desse nível não deveria ser um problema, certo?”

Quando essas palavras foram ditas, todos imediatamente se voltaram para o sujeito gigante, que mal parecia caber na cadeira.

“Não há confusão alguma. Tudo aconteceu exatamente como eu indiquei no relatório.” afirmou, cruzando os braços e se reclinando para trás, parecendo despreocupado.

Vendo a ação insolente e relaxada do homem mesmo após uma falha como essa, Herin ficou irritado.

“Você só tinha um trabalho! Um único! Eu tive que lidar com um maldito Rei Carniçal sozinho, então como exatamente você não conseguiu pegar um inseto como esse?! Você sabe que sua indicação a General pode ser comprometida por esse erro idiota?”

Em resposta a voz exaltada e afrontosa do sujeito de barba negra, Oliver apenas o encarou de forma calma, como se sentisse que não valia a pena respondê-lo. Então moveu o pulso, jogando uma esfera negra sobre a mesa.

“Não sei bem o que é isso, mas o Necropto estava usando, acredito que seja algum tipo de item de incremento. Eu nunca lidei por mim mesmo com um Mago Negro desse nível, mas sua força não era nada simples. Um Major comum certamente teria morrido em suas mãos sem poder fazer muito a respeito.”

Assim que Pagliuca viu a esfera negra, seus olhos se arregalaram de surpresa.

“Que monte de besteiras você está falando…” Herin estava prestes a criticá-lo, mas foi interrompida pelo General negro.

“O Major Oliver está dizendo a verdade.” afirmou, pegando a esfera e olhando-a de perto.

“O que quer dizer?” O General da longa barba perguntou, franzindo o cenho.

“Esse é um Fragmento da Morte, uma gema forjada do mais puro Mana Corrompido de um Necromante. E pela sensação que essa coisa transmite, o dono disso deve ser alguém poderoso… Não me admira que o Major tenha falhado. Usando algo assim, mesmo um simples Necropto pode se tornar uma ameaça, agora faz sentido que ele pudesse controlar tantas Criaturas das Trevas.”

Quando todos ouviram isso, ficaram surpresos.

“Você tem certeza disso, General Pagliuca? Já ouvi falar a respeito de Fragmentos da Morte, mas nunca vi um por mim mesmo. Porém, até onde sei, um Fragmento só existe enquanto seu dono estiver vivo e se desfaz em sua morte, o dono nunca se afasta desse item. Por que um Necromante permitiria que um Necropto tivesse a posse de seu bem mais valioso?” Wayne perguntou.

“Eu tenho certeza quanto ao item, já o motivo dele o possuir, não tenho como saber. Talvez o Major Oliver tenha ouvido algo da boca do Necropto em seus momentos finais. Presumo que você tenha sido obrigado a matá-lo devido ao uso desse item problemático.” Pagliuca falou.

Oliver ficou em silêncio por um segundo, mas logo negou.

“Eu não ouvi nada da boca do Necropto. Além disso, não inclui isso em meu relatório inicial, já que eu estava apurando os fatos, mas o responsável pela morte do Mago Negro não fui eu.”

Todos os Generais ficaram sem palavras ao ouvirem isso.

“O que quer dizer com isso, Major Oliver? Se não foi você, quem foi?” Wayne perguntou, mas logo lembrou-se de algo. “Ouvi que se encontrou com o Major Silvester, pode ser que tenha sido ele? Mas não entendo, por que você omitiria esse fato?”

Apesar da enxurrada de perguntas, Oliver não se abalou.

“Esse não é o caso, Comandante Wayne. Não fui eu e nem o Major Silvester quem causou a morte do Necropto. A pessoa responsável por isso é… O Tenente do Batalhão Zero, Fernando Nobrega.”

Quando essas palavras foram ditas, a sala caiu em um silêncio absoluto.