Índice de Capítulo

    Voltamos para a cidade, aquela que repousava dentro oceano de Lock. Atravessamos lentamente o fluxo onírico de mana, as águas reluziam sob o sol de mana de Lock. O caminho parecia mais longo desta vez. Talvez pelo cansaço. Talvez pela sombra de tudo que havíamos enfrentado. Eu estava quase sem energia, e Mina gemia discretamente ao bater de suas asas, com o braço pressionado contra as costelas.

    Enquanto voávamos, avistei ao longe a silhueta serena da cidade, com suas cúpulas translúcidas e suas pontes curvas, fundidas à paisagem como se tivessem brotado dela. Olhei para Mina, e apontei com o queixo:

    — Como é o nome dela?

    — Estrela do Outono — respondeu, com a voz baixa, um pouco perdida nos próprios pensamentos. — O nome mudou, sabe? Já se chamou Luz do Verão. E estamos indo para o inverno. Isso me entristece um pouco.

    — Também fico triste — disse Lock, sem levantar os olhos. — Lior talvez não saiba, mas a força da imaginação era, ou foi, tudo no mundo feérico. A paisagem, os nomes, até o tempo respondia ao nosso estado de espírito. Agora… estamos desanimados. Por isso o inverno vem. E eu ainda não sei como retirar a cidade de dentro de mim. Só posso esperar que algum dos outros Guardiões tenha descoberto essa resposta.

    Fiquei em silêncio. Não havia muito o que dizer. Aquilo tudo tinha um peso difícil de ignorar, uma melancolia que parecia permear cada esquina da cidade. Era uma tristeza antiga, como algo que se instala devagar, durante séculos, e quando se nota, já virou parte da estrutura.

    Por fim, alcançamos o Palácio.

    Desta vez, ele parecia diferente. Havia um brilho constante em suas paredes curvas, como se tivesse despertado de um sono profundo. O vitral quebrado, que eu lembrava com nitidez, estava agora completamente restaurado, reluzindo com reflexos dourados e verdes. uma entrada na abóbada se abriu diante de nós, e entramos direto pela sala do trono, como na primeira vez.

    O interior também estava igual, e, ao mesmo tempo, não estava. A mesma arquitetura orgânica, com colunas esculpidas como dedos esguios e delicados, o teto abobadado como o céu de uma caverna de cristal. Mas havia mais luz. E, talvez, mais vida.

    A rainha estava lá, sentada em seu trono. Assim que nos avistou pela janela de vidro, ergueu-se com um sorriso largo no rosto, que não escondia o alívio.

    — Conseguiram. Que bom.

    Lock e Mina pousaram primeiro e se ajoelharam. Eu apenas fiz uma mesura com a cabeça, ainda sem saber ao certo qual o protocolo adequado.

    — Sim, minha rainha — disse Lock. — Conseguimos… graças a Lior, e à princesa.

    Titania desceu um degrau do trono, o vestido ondulando como uma névoa translúcida.

    — Não preciso dizer nada sobre sua imprudência, não é mesmo, Guardião Lockmead?

    Ele baixou o olhar. Havia um incômodo real em seu semblante.

    — Bem… eu…

    — Não se aflija. — Ela cortou com a voz firme. — Você colocou todos nós em risco. Se seu oceano de mana tivesse colapsado, morreríamos todos. E desta vez, de forma definitiva.

    Lock parecia procurar um buraco para desaparecer. Eu me adiantei um passo, tentando suavizar o momento.

    — Se Vossa Majestade me permite… sei que Lock às vezes age por impulso, mas não há malícia em suas escolhas. Ele aceitou carregar esta cidade dentro de si. Como Guardião. Vi com meus próprios olhos o quanto se esforça para proteger tudo isso. É um fardo imenso. E a solidão das pesquisas, do combate ao Vazio, não é fácil de suportar.

    Os dois me encararam. Titania com um olhar avaliador, quase curioso. Lock com uma gratidão silenciosa, um leve movimento de cabeça que dizia mais do que qualquer palavra.

    — Desculpe, Lior — disse a rainha, por fim. — Esqueci que estava conosco. Quero saber mais sobre você. É natural que tenhamos curiosidade sobre o primeiro visitante que temos em muito, muito tempo.

    Ela se virou para a filha.

    — Mina, organize um jantar em homenagem a Lior. Peça que preparem um aposento para ele se banhar e trocar de roupa.

    — Agradeço pela hospitalidade, mas… precisamos voltar. O tempo corre contra nós — retruquei, por instinto.

    Lock riu baixinho, balançando a cabeça.

    — Calma, Lior. Aqui dentro o tempo escorre de outro jeito. Lá fora, passaram-se apenas alguns minutos desde que entramos. Mesmo que fiquemos aqui uma semana inteira, o mundo exterior ainda estará no mesmo ponto.

    — Nesse caso… — soltei o ar devagar. — Não me oponho, então.

    Ficamos ali por mais algum tempo. Mina saiu e retornou alguns minutos depois, acompanhada de um serviçal. Era impossível não notá-lo: uma figura imensa, pele de um tom arroxeado e um único chifre escuro que nascia do lado direito da testa. Ele era quase dois palmos mais alto do que eu. Um verdadeiro armário.

    — Este é Ghall. Vai te acompanhar, Lior — disse Mina.

    — Por aqui, senhor — falou ele, com uma voz absurdamente suave para o tamanho que tinha.

    Segui Ghall por corredores amplos e silenciosos, adornados com tapeçarias de fios cintilantes e esculturas que pareciam pulsar com energia viva. Ele me conduziu até uma suíte espaçosa, cujo interior era decorado com uma elegância discreta, mas evidente. Havia uma cama com dossel de tecido translúcido, móveis esculpidos em madeira clara, e uma lareira baixa com fogo azul.

    — No banho encontrará sabão, água morna e toalhas, além de outros itens de higiene. Este aposento é seu até o jantar. Fique à vontade.

    Ele apontou para uma pequena correntinha dourada, ao lado da porta.

    — Se precisar de mim, é só puxar. Estarei por perto.

    Com isso, me deixou ali. E pela primeira vez em muito tempo, senti que poderia descansar sem precisar olhar por cima do ombro.

    Banhei-me com calma, deixando que a água morna lavasse não só o suor e a poeira do caminho, mas também o peso que ainda carregava nos ombros. O sabão tinha um cheiro leve de flores que eu não reconhecia, e o vapor preenchia o ambiente como uma névoa encantada. Ao sair, encontrei sobre uma pedra lisa um robe de tecido finíssimo, tão leve que parecia feito de brisa. Vesti-o com certa relutância, me sentia um pouco deslocado naquele luxo silencioso, e retornei ao quarto.

    A cama me chamava com uma força que não consegui resistir. Deitei-me com o corpo ainda quente do banho, e antes mesmo de perceber, já estava dormindo.

    Acordei com um toque insistente no ombro.

    Pisquei algumas vezes até focar a visão. Lock estava ali, ajoelhado ao lado da cama, me encarando com a testa franzida e uma expressão preocupada.

    — Me conte tudo que aconteceu antes de você vir atrás de mim — disse ele sem rodeios. — Tudo. Principalmente as interações aqui no palácio.

    — Que foi? — perguntei, ainda meio grogue, tentando entender se aquilo era um sonho estranho ou mais um dos absurdos daquele mundo.

    — É importante. As leis das fadas são… diferentes das suas. Aqui, você não pode aceitar nenhum favor ou presente sem pagar o preço equivalente. Não é só uma tradição ou etiqueta. É uma força que molda a própria realidade. Se você aceitar algo sem compensar, pode acabar preso a isso. Ser escravizado. Ou pior: acabar dono de alguém sem querer.

    Sentei-me devagar na cama, o robe escorrendo dos ombros. Acordar com esse tipo de alerta não era exatamente tranquilizador.

    — Certo… bom, lutei com a Mina — comecei. — Depois, quando o núcleo dela entrou em colapso, eu ofereci minha mana para estabilizar tudo. Funcionou, aparentemente. E aí fui atrás de você.

    Lock coçou a nuca, resmungando algo inaudível.

    — Hum… droga. Isso é mais sério do que pensei. Você fez muito pelas fadas. Pela rainha. E não foi pouca coisa. Estabilizar o reino com sua mana? Você literalmente salvou a realidade deles. Um simples jantar e uma cama confortável não vão cobrir essa dívida.

    — Eu não quero nada — falei, erguendo as mãos. — Nem recompensa, nem pagamento. Fiz o que achei que devia.

    — Eu sei. Mas isso não importa aqui. A realidade… ela cobra. Alguém vai te dever. Ou você vai dever a alguém. E isso se manifesta. É um tipo de magia de vínculo, profunda. Primitiva, até. A reciprocidade é inevitável. Por isso preciso pensar em como reequilibrar as coisas antes que algo estranho aconteça. Pode agir normalmente no jantar. Até lá, terei uma solução.

    Ele se levantou e caminhou até a lareira. Eu já ia perguntar se ia sair pela porta quando ele pressionou uma pedra esculpida na lateral da base, e um painel se abriu silenciosamente. Por trás da lareira havia uma passagem secreta, estreita, mal iluminada. Ele se esgueirou por ela como se já conhecesse o caminho há séculos.

    Fiquei ali, sentado na cama, olhando para a parede que acabara de engolir Lock. O robe ainda escorria quente pelos meus braços.

    — Que maluquice — murmurei para mim mesmo, ainda tentando compreender os contornos invisíveis das regras daquele mundo.
     

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota