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    [ Quarto 1 da Turma 1F – 20h08 da noite. ]

    A maçaneta girou num clique. A porta rangeu para dentro e revelou o quarto vazio engolido por uma penumbra discreta sobre a escrivaninha ainda resistia à escuridão da noite.

    Akemi entrou e fechou a porta atrás de si.

    Não havia ninguém, nenhum som ou vestígio de vida.

    “Cadê todo mundo? Será que estão espalhados por aí? Ou já estão em seus alojamentos?”

    A respiração saía leve, mas o incômodo crescia no peito como uma picada invisível que não se deixava esquecer.

    A conversa com Miya morava em sua mente: palavras confusas, sinais pela metade. O calor do dojo não havia ido embora por completo.

    “Não entendi nada do que aconteceu lá… Aquela forma de fogo… A ideia de que Masaru mentiu para mim… Afinal, Miya queria me testar ou tentar dizer algo entrelinhas?”

    Dedos passados pelo cabelo afastaram a franja da testa levemente suada. Pequenos espasmos elétricos vibravam pelo corpo, imperceptíveis à primeira vista, mas constantes o bastante para lembrar que algo dentro dele havia sido mexido.

    Tentando achar algum indício de presença, o jovem observava os arredores, mas só encontrou as cobertas mal ajeitadas de Nikko, e um dos armários entreaberto. Nada demais.

    Foi então que toques contra o vidro atraíram a atenção: Tec tec.

    Akemi parou, e com todo o cuidado do mundo, girou rosto em direção à janela que tomava quase toda a parede do quarto.

    E lá estava. Imóvel, quase como uma escultura trazida por um pesadelo bonito demais pra ser ignorado.

    Uma falcoruja.

    A criatura pousada com as garras fechadas sobre o espaço no exterior da janela, estava banhada pela luz opaca da lua crescente, cujos contornos prateados destacavam as penas largas e pesadas do animal de porte alto e orgulho digno de uma postura nobre e asas dobradas como mantos escuros de realeza. Penas longas desciam do topo de sua cabeça até o rabo grosso, em um degradê entre tons escuros de bronze, preto e um raro violeta no pescoço.

    Pupilas grandes, de um âmbar vívido e brilhante, encaravam com uma intensidade tão calma quanto ameaçadora.

    No bico, uma carta.

    Já voltando ao interior da janela, Akemi não se mexia. Seus pés haviam pregado no chão.

    — …

    Entretanto, Akemi não sentia medo, não sentia nada além de um encantamento que o mantinha estático diante do que em sua visão parecia um emissário de outra dimensão.

    Sem ruído, a ave curvou-se devagar, enfiou a ponta do bico pela fresta inferior da janela — um pequeno vão entre a moldura e o chão — e deixou a carta passar até lentamente cair sobre a escrivaninha.

    Logo após, ergueu-se novamente, encarando o jovem por mais dois longos segundos.

    Então, abriu as asas… e voou.

    O som do vento desviado foi abafado pelo vidro da janela, mas os olhos de Akemi o seguiram até ele desaparecer por entre os prédios altos da ala leste da ASA.

    Conclusão: uma carta foi entregue, e pela primeira vez em vários segundos, Akemi respirou.

    A carta meio amarronzada era pequena, selada com cera vermelha, sem marcações.

    “… Então isso é pra mim”, pensou o garoto quando se aproximou.

    Ao tocar no envelope, um leve choque percorreu sua mão.

    Um suspiro fundo; um aperto no selo, porém, nenhuma abertura. Não ainda.

    Akemi sentou-se na beirada de sua cama, encarando o envelope e esperando que ele dissesse algo por conta própria.

    Por fim, ele abriu…

    “Querido neto,

    Receber suas palavras em carta é enfrentar um vendaval de emoções. Por um lado, há uma surpresa, algo que, mesmo relutante, reconheço como um feito. Por outro, a preocupação persiste: uma sombra que paira sobre meu coração.

    Ao longo dos anos, tenho expressado minha apreensão quanto à sua decisão de seguir esse caminho. Minhas palavras talvez tenham soado como uma resistência despropositada. Ainda assim, a vida tem seu próprio curso, e as escolhas que fazemos moldam nosso destino.

    É difícil aceitar que você agora caminha por uma estrada que eu tanto desejei que evitasse. A academia é um lugar de desafios intensos e adversidades que testarão mais do que habilidades, sua resistência emocional é o dom mais importante agora. Oro para que encontre força e sabedoria para enfrentar o que irá surgir em seu caminho.

    Fico impressionado ao saber que encontrou apoio de uma Miyazaki. Reconheço a representação que eles possuem, mas não os conheço pessoalmente, então, tome cuidado com quem você se relaciona.

    Sobre seus poderes áuricos no qual despertou, torço para que você possa lidar com uma condição tão única e, aparentemente, perigosa. Neste mundo, sabemos que possuir habilidades que nos diferem tanto dos ‘não poderosos’ requer uma tremenda maturidade. Contudo, imagino que você adquiriu uma certa responsabilidade — virtude que sempre procurei em ti, mas não esperava que a sua coragem inusitada e força de vontade pudesse ultrapassar os limites que pensei e o levar até onde desejava.

    De qualquer forma, mantenha os bons valores como seus guias, pois são eles que verdadeiramente moldarão o homem que você se tornará.

    Por aqui, os dias seguem com lentidão. A casa parece maior quando não há passos além dos meus ecoando pelos cômodos. Tenho me virado como posso: cozinho o que dá, cuido do jardim, varro quando lembro, e às vezes deixo a janela aberta só para escutar algo que lembre o silêncio. Seu quarto permanece intocado, e nas manhãs, ainda levo uma xícara a mais à mesa sem perceber.

    Na usina, os ventos estão calmos. Após o incidente envolvendo o protótipo de turbina a gás, os conselheiros chegaram à conclusão inevitável: o dispositivo que se encontrava irrecuperável, inviável, e potencialmente catastrófico, foi oficialmente descartado. A falha estrutural era mais profunda do que havíamos previsto, e qualquer tentativa de reparo aumentaria os riscos de uma nova pane no sistema central.

    Devo informar que uma investigação interna avança com dificuldade. Ainda não sabemos quem deixou a porta da sala de protótipos aberta, algo que jamais deveria ter acontecido. Não há registros, confissões ou sequer erros visíveis nos sistemas de segurança, é como se o descuido tivesse sido deliberadamente apagado, uma possibilidade que me mantém acordado.

    Quanto a Samir, o responsável por ter solicitado sua presença naquele fatídico fim de tarde, ele recebeu sanções no salário deste mês. Não houve demissão, a comissão entendeu que sua ação foi imprudente, mas não mal-intencionada, afinal, sabemos das dificuldades no qual o mesmo passa. Ele está bem de saúde, ao menos. Parece abatido, mas segue comparecendo ao trabalho com mais pontualidade que nunca, e inclusive, está bastante surpreendido por saber do paradeiro daquele garoto franzino que admirava seus músculos.

    Termino dizendo que, embora a distância entre nós agora seja alta, quero que saiba que minha preocupação é uma expressão de amor. Esta carta é escrita com um coração pesaroso, mas também com uma aceitação inevitável da mudança que a vida nos impõe até mesmo nos estágios finais da nossa jornada.

    O tempo, meu neto, é um mestre implacável que nos ensina lições que só compreendemos com a idade. Sei que você enfrentará desafios, mas espero que cada obstáculo no caminho sejam pedras que serão empilhadas visando o seu crescimento.

    Mantenha-se forte. Acima de tudo, seja fiel a si mesmo.

    Estarei aqui, aguardando um dia em que nossos caminhos se cruzarão novamente.

    Com amor e uma saudade antecipada,

    Isao Aburaya.”

    — … Eu irei orgulhá-lo…

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