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    Me levantei e me troquei. Resolvi não dar muita bola para as palavras de Lock. Afinal, eram coisas que eu já tinha feito. Nada poderia mudar o passado.

    Olhando por uma das janelas altas do quarto, perdi-me na paisagem. A cidade se erguia sobre as águas do oceano de mana como se flutuasse, sustentada por uma antiga pilastra descomunal de pedra. Torres delicadas de pedra cintilante se curvavam, esguias, como se crescendo em direção ao céu, e as ruas, largas passarelas de pedra branca, se estendiam por entre jardins suspensos e canais serenos onde criaturas coloridas e desconhecidas deslizavam sob a superfície.

    Pensei em Nix, Claire, Selune. Imaginei o brilho nos olhos delas ao verem algo assim. Nix querendo tocar tudo com os dedos, explorar cada sombra; Claire analisando os padrões e estruturas, já pensando em como usar aquilo; Selune parada, em silêncio, absorvendo cada detalhe como se quisesse guardá-lo inteiro na memória.

    Mas a beleza da paisagem logo cedeu lugar ao peso nos meus ombros. O medo do futuro voltava. Medo de deixar de ser quem sou. Medo do que nos espera. O vazio, os deuses, as intrigas imperiais. Eu era oficialmente um inimigo de Annabela agora, e isso não era pouca coisa.

    A resposta para tudo isso parecia óbvia na minha mente: poder.

    O caminho à frente só se abriria se eu acumulasse mais poder. Poder suficiente para que nenhum inimigo ousasse me enfrentar. Para que eu pudesse proteger os meus. Para que eu tivesse alguma chance de vencer um deus.

    Mas como alcançar isso sem me perder no processo? Como não arrastar comigo quem confia em mim? Já tinha achado, por um tempo, que o conhecimento de Mahteal bastaria. Que ao entender o mundo como ele entendia, me tornaria incomparável. Mas agora eu sabia, era forte, sim, mais forte do que jamais tinha sido… e ainda assim, algo faltava. E embora eu tivesse algumas suspeitas do que fosse, nada era certo ainda.

    Um leve toque na porta me tirou dos pensamentos.

    Ghall estava me esperando do lado de fora.

    — O jantar será servido em breve, senhor. Posso lhe acompanhar até a recepção?

    Assenti em silêncio, e fui atrás de suas costas largas. Ele me conduziu por corredores decorados com tapeçarias que dançavam mesmo sem vento, até um grande salão onde sofás circulares e mesas baixas formavam ilhas de conversa. Garrafas de cristal cheias de um líquido azulado brilhavam à luz suave das luminárias flutuantes. Criaturas de toda sorte conversavam animadamente. Músicos tocavam instrumentos que nunca tinha visto, e as notas que saíam deles pareciam feitas de luz, etéreas, diáfanas, quase irreais.

    Mina me viu e se aproximou com um sorriso leve. Usava um vestido de várias cores que, de algum modo, combinavam entre si como se tivessem sido tecidas com intenção.

    — Obrigado, sit Ghall. Eu assumo daqui — disse ela com gentileza.

    Ghall se afastou com uma leve inclinação.

    — Muito interessante esse tecido — comentei, mais para quebrar o clima do que por real curiosidade. — Nunca vi nada assim.

    — É feito de fio de teia de seda — respondeu Mina, entrelaçando os braços nos meus, sem nenhuma malícia. Era um gesto natural. — Venha, vou lhe apresentar algumas pessoas da corte. E explicar algumas coisas do nosso mundo, que talvez seja bom você saber.

    Deixei que ela me conduzisse. Paramos primeiro junto a uma mesa onde duas taças já estavam prontas.

    — Isso é Vlahbakt, álcool de fada, na língua antiga. Cada um sente um gosto diferente ao beber. É tradição servi-lo logo ao início das recepções. Significa que não desejamos mal aos nossos convidados. Não aceitar a taça… bem, seria como cuspir na hospitalidade da casa — explicou ela, antes de virar a sua dose de uma vez.

    Peguei a minha e bebi. Senti um calor na garganta, um ardor suave no fundo da língua. O gosto que veio era inusitado.

    — Fumaça — murmurei, surpreso, o que arrancou uma risada baixa de Mina.

    Antes que pudéssemos circular pelo salão, ela parou e falou com mais seriedade:

    — Nossa corte é composta por várias raças feéricas. Todos os que fazem parte dela são chamados de raças elevadas. Há os boggars, como Lock; os pooka, como aqueles ali — com características animais; os sátiros, os trolls como sit Ghall, os nockers — não encare os nockers — e nós, os Sidhe. Somos considerados os mais elevados entre eles.

    Fez uma pausa e seu tom mudou.

    — Existe também outra corte. A Corte Sombria. Seu líder é o Senhor da Caçada Selvagem, Tuathu. Entre eles há goblins, redcaps, ogros, hags… e Sidhe também. Nem todos os nossos permanecem sob esta luz.

    Mina trocou cumprimentos com algumas figuras antes de se virar para mim de novo.

    — Vamos? Estão todos ansiosos para conhecer você. É o único forasteiro que tivemos em muito tempo.

    Antes de começarmos a andar, Mina parou. O sorriso ainda estava em seus lábios, mas seus olhos… seus olhos diziam outra coisa. Não era exatamente uma mudança brusca, apenas um leve desvio na expressão, como um sussurro que só os atentos perceberiam.

    — Não aceite desafios — disse ela, num tom leve, como quem fala de algo corriqueiro. — Não aceite presentes. Não coma do prato de ninguém. E, por favor, não prometa nada.

    Fiquei parado por um segundo, tentando entender se ela estava brincando ou se aquilo era sério. Mas havia um peso contido em cada uma das palavras. Um eco estranho, como se o próprio espaço ao nosso redor tivesse prestado atenção naquele aviso.

    Sem mais explicações, ela voltou a sorrir e me puxou gentilmente pelo braço, me guiando entre duques, marquesas, lordes e damas cujos nomes e formas pareciam saídos de um sonho antigo, ou de um pesadelo elegante. Alguns eram belos de forma inumana, outros monstruosos com uma estranha graça. Todos fascinantes.

    Depois de algumas apresentações breves e trocas de palavras formais, uma voz cristalina ecoou pelo salão, cortando as conversas como uma lâmina de vidro:

    — Sua Majestade, Rainha Titania.

    As portas duplas se abriram com um movimento preciso e silencioso, revelando a figura da rainha. Ela entrou com a postura de quem está acostumada a ser o centro de tudo, acompanhada de Lock, vestido com uma roupa formal que destoava tanto de sua personalidade que tive que conter uma risada.

    Como se obedecessem a um impulso único, todos se ajoelharam. Mina fez o mesmo ao meu lado. Mantive a etiqueta que vinha usando desde minha chegada: uma mesura respeitosa, de meio corpo.

    A rainha caminhou até mim, seus passos leves como se o chão se moldasse para recebê-la. E, surpreendentemente, devolveu-me a mesura na mesma medida.

    — Mais uma vez, obrigada — disse ela. — Sem querer, você salvou todos nós.

    A simplicidade do gesto dela me jogou no centro de todas as atenções. Senti o calor subir ao rosto. Vários olhares se voltaram para mim, tentando me avaliar, decifrar, pesar o que agora representava. Não era mais apenas um estranho curioso, era alguém com influência, mesmo que não compreendida por todos.

    Logo após a fala da rainha, as portas da sala de jantar se abriram. Um aroma delicado e perfumado escapou de lá, carregado com especiarias que eu não saberia nomear.

    Mina apareceu rapidamente ao meu lado, trazendo uma taça de Vlahbakt. A rainha a pegou com um gesto fluido e virou o conteúdo de uma só vez.

    — Obrigada, filha — disse ela, e em seguida voltou-se para mim com um sorriso leve, quase cúmplice, dando leves tapinhas no meu braço, que ela ainda segurava. — Vamos jantar?

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