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    A sala de jantar era magnífica. Vitrais imensos decoravam as paredes laterais, retratando cenas que pareciam mover-se sutilmente se olhadas por tempo demais, florestas eternas, caçadas, celebrações. No centro, uma mesa comprida o suficiente para quase sumir na distância. Estava coberta por uma toalha de linho tão branca que parecia recém-tecida, talvez por alguma criatura que nunca vira o sol. Talheres de prata reluziam sob a luz amena de candelabros suspensos, e as taças de cristal cintilavam como se contivessem pequenos pedaços de estrelas. Arranjos de flores desconhecidas perfumavam o ar, embora não conseguisse localizar nenhum aroma específico. Era como se apenas sugerissem o perfume, sem entregá-lo de fato.

    Na outra extremidade da mesa, oposta ao assento real, uma única cadeira destoava de todo o conjunto. Era de madeira escura, com estofado negro, e mesmo à distância era possível perceber a camada de poeira fina sobre o encosto. Pratos e copos estavam dispostos à sua frente, estavam sujos, abandonados, como se ninguém tivesse mexido naquilo desde seu último uso. E isso, por si só, era perturbador.

    A rainha Titania seguiu até a ponta da mesa e, com naturalidade, me puxou pelo braço, indicando que eu me sentasse à sua direita. Um gesto simples, mas que me colocou sob a atenção de todos. Mina se acomodou à minha frente, Lock ao meu lado. Os demais se distribuíram em silêncio, como se seus lugares estivessem determinados havia décadas, seguindo uma ordem invisível.

    Quando a rainha se sentou, todos a imitaram. O burburinho de vozes voltou quase imediatamente, desta vez mais leve. Serviçais surgiram como se brotassem das paredes, trazendo bandejas com entradas delicadas, bebidas cintilantes em tons impossíveis. O clima era festivo, quase íntimo. As conversas fluíam, risadas surgiam aqui e ali. Por um momento, me permiti relaxar. Falei com Lock, com Mina, até mesmo troquei palavras com a própria rainha. Respondi a perguntas esparsas dos nobres ao redor, que se revezavam entre a curiosidade e o receio.

    Então, um som estranho invadiu o salão. Galope. Primeiro distante, depois cada vez mais nítido. Forte. Tão real e pesado que abafou até os músicos, como se cada batida de casco ecoasse dentro do peito. O silêncio caiu como um feitiço. Mina parou de mastigar. Quase cuspiu o vinho. A rainha empalideceu de súbito. Seus ombros tremeram, e um sussurro escapou de seus lábios, quase sem som:

    — Impossível…

    Outros à mesa repetiram a palavra. Um murmúrio coletivo. Medo puro, disfarçado de incredulidade.

    — O quê… — comecei a perguntar, mas as portas duplas se escancararam com violência, como se algo por trás delas não precisasse pedir licença para existir.

    Me movi por reflexo, pronto para me levantar. Mas a mão de Lock, firme como ferro no meu antebraço, me impediu. Seu olhar dizia tudo: não se mexa.

    Entrou então um enorme cervo negro, com os cascos ainda úmidos de lama. Montado sobre ele, um homem. Ou algo parecido. Usava um manto escuro, que oscilava entre sombras, e um elmo ornado com chifres de veado. Seu rosto, quando revelou-se, era branco como ossos polidos, olhos tão negros que pareciam absorver a luz. Tinha uma beleza estranha, quase irreal. Bela como uma estátua que você só percebe ser monstruosa quando já é tarde demais.

    Apeou com a naturalidade de quem conhecia aquele lugar. Retirou o elmo e o lançou a um servo próximo com desdém. Suas botas deixavam um rastro de barro frio no chão impecável, seguindo as pegadas do cervo.

    — Ora, ora… — disse ele, com a voz arrastada, carregada de ironia — Depois de tanto tempo longe de casa, é assim que sou recepcionado?

    Caminhou até a cadeira negra, a mesma que me intrigara antes. Sentou-se sem cerimônia, escorado, pernas abertas, como se o salão fosse seu e todos os presentes, meros figurantes. Pegou uma taça suja, virou-a sobre a toalha. Nada caiu. A borra no fundo já havia secado há muito tempo. Ainda assim, ergueu a taça para um dos servos com uma lentidão que parecia provocação.

    O servo hesitou, mas se aproximou com passos vacilantes. O líquido foi servido sob tremores visíveis. O homem girou a taça entre os dedos, aspirou o aroma e bebeu num único gole.

    — Ahhh… — exclamou com um prazer que, por mais genuíno que parecesse, só aumentava o desconforto.

    Então, apoiou o cotovelo na mesa, a mão no queixo. Os olhos fixos em mim.

    — Agora me diga… quem é você?

    Engoli em seco. Havia algo na postura dele, uma arrogância ancestral, um domínio absoluto do espaço, que me provocava. Uma parte de mim queria desafiá-lo ali mesmo, recusar ser intimidado. Mas outra parte, mais prudente, lembrava de cada aviso, cada regra velada que já havia escutado desde minha chegada. Respirei fundo e preparei uma resposta contida, educada.

    Não tive tempo.

    Titania se levantou antes que eu dissesse qualquer coisa. Sua voz era firme, mas havia nela uma urgência quase maternal.

    — Leve Lior daqui. Não quero encrenca.

    Mina, sentada à minha frente, hesitou por um segundo, depois se levantou também. Fez uma mesura mínima para o recém-chegado — respeitosa, mas distante — e contornou com elegância a cadeira da mãe, vindo até mim.

    — Vamos — murmurou, com um tom que não deixava espaço para discussão.

    Me levantei. Tentei não parecer tenso demais. Mas antes que pudéssemos dar mais de dois passos, a voz dele nos cortou como uma lâmina afiada.

    — Titania… eu quero falar com o convidado. Vai me negar isso? Vai negar isso ao seu esposo?

    O salão congelou.

    Mina parou, a mão ainda em meu braço, como se não soubesse se devia soltar ou apertar mais forte. Seu olhar buscava o da mãe, pedindo uma direção que não vinha.

    Titania não respondeu de imediato. Seus dedos se fecharam sobre o braço do trono com força, e vi em seus olhos o desgaste de séculos acumulados. Então ela respondeu, a voz pesada.

    — Tuathu, não quero encrenca. Não hoje. Estivemos à beira do desaparecimento… e Lior nos ajudou muito.

    — Você me interpreta errado, como sempre — respondeu ele, se acomodando melhor na cadeira escura. — Não quero confusão. Pelo contrário. Eu também devo a ele. Como acha que voltei? Como acha que a caçada chegou até aqui?

    O silêncio que se seguiu foi mais denso que o anterior. Titania franziu o cenho, e sua voz, ao sair, veio num sussurro de incredulidade:

    — A caçada…? Como?

    Tuathu apoiou os braços na mesa e encarou a todos, os olhos varrendo rostos que se desviavam do dele.

    — E é isso que quero entender. Estávamos presos. Eu e a caçada, selados no núcleo de outro Guardião. E então, de repente… uma ligação. Um chamado. Um fio de realidade se estendeu até aqui — ele fez um gesto vago com a mão — e nós seguimos. Um salto de fé, um rasgo na prisão. E caímos aqui. No coração da Corte.

    Seu olhar voltou para mim. Um sorriso estranho brincava em seu rosto, entre o divertimento e a reverência perversa.

    — Estamos mais perto da liberdade do que jamais estivemos… e eu pretendo descobrir o porquê.

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