Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 39 — O Peso do Silêncio
Eu cantarolava enquanto moldava um pão de mel, as mãos imersas na massa morna e viscosamente doce, um gesto que tentava ancorar-me a uma normalidade que se desfazia como açúcar na chuva.
O perfume cálido da canela entrelaçava-se ao aroma robusto do café recém-coado, impregnando o ar com uma promessa de lar que, por anos, nos fora negada — um luxo distante nos tempos de fogareiros precários em quartos úmidos e esquecidos.
Olhei pela janela, onde a luz matinal banhara o jardim que Aragi insistira em cultivar.
— Rosas — disse ele, com um sorriso que carregava mais esperança do que eu podia sustentar — para combinar com teus olhos.
Aquele comentário, junto àquele olhar impossivelmente apaixonado, me fizeram corar.
Mas minhas rosas ainda se recusavam a desabrochar, suas hastes frágeis e espinhosas como um espelho da inquietude que me habitava.
Havia se passado três meses desde que Flügel retornara daquela primeira missão, um feito que o exército de Tournand celebrava como um marco de bravura. Eu, sua mãe, via além das medalhas e dos soldos que nos ergueram desta casa de alvenaria.
Via o que ninguém mais parecia enxergar: a mente de meu filho, outrora um céu aberto de sonhos e risos, tornara-se um terreno devastado, marcado por um trauma que eu não podia nomear. Ele não falava sobre o que aconteceu na floresta, talvez simplesmente não pudesse, mas eu sentia o fardo que o curvava. Um peso que se revelava em cada olhar vazio, em cada respiração que lhe custava mais do que deveria.
Os pesadelos que ele teve no primeiro mês foram os primeiros indícios, intrusos impiedosos que roubavam-lhe o repouso merecido. Quase todas as noites, eu era arrancada do sono por seus gritos, sons roucos, carregados de angústia, que atravessavam as paredes finas e faziam meu coração falhar por um instante.
Descer as escadas em silêncio, sentindo o assoalho frio sob os pés descalços, e encontrar ele encolhido no canto do quarto, com os joelhos puxados contra o peito, os cabelos molhados de suor e o rosto pálido, como se estivesse vendo um horror que eu não podia imaginar. Aquela cena, com Nytheris ao seu lado, tinha se tornado dolorosamente comum.
Eu não acreditava que fossem apenas pesadelos. Algo ocorreunaquela missão, algo tão terrível que deixou cicatrizes em sua alma, visíveis nos gestos que ele não conseguia esconder.
Suas mãos tremiam ao segurar uma colher, como se temesse que ela se transformasse em arma. Ele recuava perante sombras escuras, um movimento instintivo de um medo que eu não compreendia.
Certa tarde, enquanto eu varria o quintal, ele surgiu da porta dos fundos, com os olhos fixos no horizonte além das árvores.
— O que você vê, meu filho? — perguntei, a vassoura parada em minhas mãos.
Ele hesitou, os lábios entreabertos, antes de sussurrar: — Nada.
Mas o nada que ele encarava era um vazio faminto, e eu temia que, a cada dia, ele se perdesse mais dentro dele.
O que enfrentou na floresta? Um monstro, como disse? Ou algo pior, algo que o quebrou de uma forma que eu não podia consertar? Pensamentos como esses enchiam minha mente todos os dias.
O silêncio era outro sintoma. Uma muralha que ele ergueu entre ele e o mundo. Flügel sempre foi um menino de palavras fluidas, de histórias que enchiam nossas noites de risos e maravilhas, mas agora suas frases eram curtas, cortantes, como se cada sílaba fosse uma batalha.
Quando Elijah o cercava com perguntas infantis: — Você lutou com um ogro? Viu um fantasma? —, ele forçava um sorriso pálido e desviava o assunto com uma habilidade que me doía.
Com Mael, que o cutucava com sarcasmos sobre sua ausência, ele apenas baixava os olhos, engolindo respostas que eu sabia que queria gritar. Numa noite, após um jantar em que mal tocara na sopa, puxei-o para o canto da cozinha.
— Você pode falar comigo, meu filho — disse, segurando suas mãos, agora sempre inquietas.
Ele hesitou, os olhos marejados, os lábios entreabertos como se uma verdade lutasse para escapar. Fechou-os com força, e um tremor percorreu seu corpo, estremecendo-o.
— Não posso, mãe — sussurrou, e havia tanto pavor naquela frase que meu coração se apertou. Não podo falar sobre o quê? Sobre o que o assombrava? Sobre o que o fazia acordar gritando, como se algo o arrancasse deste mundo?
Eu não sabia o que ele tinha enfrentado, mas via os destroços que aquilo deixou em sua mente. Ele tornou-se um estranho em sua própria pele.
Será que foi o monstro que mencionou, com sua máscara de osso e runas sinistras? Ou algo mais profundo, algo que o prendeu em um silêncio tão absoluto que o isolava até de mim?
Ele já não era o Flügel que sorria com os irmãos, o menino cujos olhos brilhavam com a promessa de um futuro. Tornou-se um sobrevivente assombrado, cujas pupilas refletiam um terror que eu não podia alcançar, como se ele trouxesse para casa o próprio abismo.
Dois meses antes, disse que iria ao quartel do exército e que lá o tratariam. E realmente, seus pesadelos diminuíram, pelo menos os piores. Ainda assim, ele massageava constantemente as têmporas, embora não reclamasse de dor, eu vi que algo estava estranho.
Seu apetite aumentou muito. Comia quase o dobro do que costumava, e eu achava que isso seria bom diante de tudo que acontecera. No segundo mês, porém, isso piorou: ele passava a reclamar abertamente de dores por todo o corpo. Talvez, por não conseguir esconder o sofrimento, decidiu não tentar.
Perguntei o que houve, e ele sempre alegava serem apenas dores musculares. Mesmo assim, não tirava um único dia de descanso de seus treinos com Nytheris ou de sua corrida matinal.
Mas as dores… essas me preocupavam mais do que eu admitia. Ele dizia serem apenas efeitos dos treinos intensos com Nytheris e com mestre Álvaro, mas eu conhecia meu filho. A forma como apertava as têmporas, os punhos cerrados quando achava que ninguém olhava, o jeito como estremecia ao erguer-se após o jantar, não eram apenas músculos protestando.
Era algo mais profundo, como se seu corpo lutasse contra algo que nem ele entendia.
E, ainda assim, recusava-se a parar.
— Preciso ficar mais forte, mãe — disse ele uma vez, com determinação que beirava o desespero. Mais forte para quê? Para enfrentar o que o assombrava? Ou para fugir dele?
Naquela manhã, enquanto o pão de mel assava e o café perfumava o ar, ouvi os passos leves de Elijah descendo as escadas, seguidos pelo arrastar ressentido de Mael. O aroma doce preenchia a casa, mas minha mente estava com Flügel, perdido em algum lugar entre a base de Tournand e os recessos de uma alma que eu temia estar se desfazendo.
Eu queria acreditar que ele voltaria para nós, não apenas em corpo, mas em espírito, livre do que o estava consumindo.
Mas, enquanto minhas rosas permaneciam cerradas em botões teimosos, eu temia que o mesmo destino aguardasse meu filho: uma vida sufocada por sombras que eu não podia dissipar, um trauma que o devorava em silêncio.
— Eu não deveria ter permitido que ele entrasse para o exército — essas palavras repetiam sem parar em minha mente.
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