Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 43 — Céu cinza
Ninguém ousou romper a quietude opressiva que dominava a sala, todos imersos em reflexões sobre o cenário que, com os fatos expostos, parecia o mais provável.
Depois de um longo tempo, a tensão na sala era quase palpável, com todos imersos em pensamentos. Thalion soltou um suspiro, cortando a tensão e chamando toda a atenção para si, e então disse:
— Primeiro, não. Mesmo sendo graças às runas que eles explodem, ainda tem que haver uma fonte de energia para tal explosão ocorrer, então seria sim possível desabilitar essa explosão antes dela ocorrer.
Ele deu uma pausa em sua resposta e então continuou com uma voz profunda e com um novo peso. — É algo provável, mas… um Lich? A não ser que ele quisesse fazer de Tournand seu exército, matando todos e então levantando todo o reino como seu próprio exército, eu não vejo um porquê de ele começar diretamente esse plano contra um reino.
— O mais lógico seria começar por uma vila, formar um exército, mesmo que pequeno. Mas até agora não há relatos de nenhuma vila sendo erradicada — completou Garrick, seu rosto contorcido em uma carranca profunda.
E então a sala mergulhou numa calmaria pesada mais uma vez.
— Talvez ele tenha feito isso, mas não tenha erradicado toda a vila? — Flügel disse, quebrando a pausa constrangedora.
Todos, menos Nytheris, olharam para Flügel com rostos pasmos. Dellia caiu na gargalhada, rindo alto demais para o clima dentro da sala. — Você é engraçado, garoto! Um Lich dizimaria uma vila sem esforço algum! Você realmente fala sobre a possibilidade de ser um Lich sem nem mesmo conhecer a capacidade de poder de um?
Flügel sabia da capacidade de um Lich, apesar dos Lichs desse mundo não serem exatamente iguais aos dos icônicos seres imortais em seu antigo mundo. Ele passou bastante tempo na biblioteca das Eras lendo livros sobre lichs e até mesmo os que contavam meros mitos sobre esses seres.
Porém, não havia muito que pudesse ser levado como a verdade, e também o nível de poder variava de indivíduo para indivíduo.
Fazia com que sua busca por mais conhecimento sobre os lichs ficasse escassa em fontes para obter tal conhecimento. E também havia uma pontada de suspeita em Flügel sobre as capacidades desses seres, no fim das contas, ele conseguiu fugir de um Lich quando tinha só cinco anos e quando tinha um arsenal de magias limitado à sua própria criatividade.
— Se esse for o caso, seria melhor pedirmos ajuda até para o império, não podemos enfrentar um lich sozinhos, iremos sofrer muitas baixas — Borghen coçava sua barba rala enquanto refletia. — E não há realmente muitos que sobreviveriam antes de fazer algo considerável lutando contra um Lich.
— Melhor confirmarmos isso antes de pedirmos ajuda, pode ser que não seja um Lich também. Lichs são seres inteligentes, ele não começaria um ataque desses direto em um reino, a não ser que tivesse um motivo para estar vindo direto para o reino de Tournand — Garrick recostou-se em sua cadeira, claramente já cansado só de considerar tal hipótese.
— Temos algo mais a discutir? — A voz de Gundal ecoou levemente na sala. Garrick olhou para o homem e balançou a cabeça em sinal de afirmação.
— Conversaremos sobre as nossas posições amanhã e então vamos discutir sobre a nossa rota, assim como também tentaremos adivinhar o que faremos em situações extremas.
O cheiro de terra molhada já começava a subir das ruas de paralelepípedo, mesmo antes da primeira gota de chuva tocar o solo. O ar carregava um frio úmido, denso, que grudava na pele como uma camada invisível. As nuvens, pesadas e preguiçosas, formavam um manto cinzento sobre a cidade de Tournand, tornando o entardecer ainda mais escuro do que o normal.
Flügel estava cansado, não fisicamente, mas mentalmente. Toda aquela conversa cheia de tensão o desgastou mais do que diversos treinos exaustivos. Até Nytheris parecia exausto, mesmo não tendo acrescentado muito na discussão.
Flügel queria ir para a biblioteca das Eras para aproveitar o resto do dia para aprender com os livros, já que hoje era seu dia de folga, mas, como o clima não estava dos melhores, ele decidiu ir direto para casa.
— Mnh… — Ao pensar em casa, Flügel sentiu um gosto ruim em sua boca. Ele não queria voltar para lá, não era como se ele não gostasse de casa, estava longe disso, mas ver Sophia com aquela cara triste, Mael importunando-o com patadas ignorantes por estar chateado era o pior momento da maioria dos seus dias.
Ele sentiu aquele sentimento familiar de algo que pertencia a ele penetrar seu braço, aquela quentura reconfortante percorrendo seu corpo lhe trouxe um alívio instantâneo. Era Nytheris entrando em seu braço e descansando em seu peito, acima de seu coração, como sempre.
“Toda aquela tensão me deixou cansado, não quero caminhar hoje.”
“Tudo bem, faça uma boa escolha: vamos para casa ou para a biblioteca?” Flügel perguntou, enquanto olhava para o céu cinza, que consigo trazia o presságio de chuva e lembranças daquela madrugada assustadora onde ele encontrou o Lich.
Nytheris sabia do desconforto que Flügel sentia ao ser confrontado ou apenas de ver o quanto sua presença pesava na atmosfera de qualquer conversa quando estava em casa. Mas, naquele momento, ele apenas permaneceu em silêncio, aquecendo o peito de Flügel como se dissesse, sem palavras, que estava ali para o que viesse.
E ele não sabia disso graças à sua capacidade de sentir as emoções de Flügel, e sim por ter começado a aprender a perceber o quão desconfortável Flügel ficava com suas feições, desviadas de olhares e até mesmo nas mínimas mudanças de tom em sua voz. Tendo isso em mente, Nytheris escolheu a opção mais confortável para Flügel, apesar de não ser a mais sensata.
“Vamos para a biblioteca, quero ler alguns livros também. É bom ler com clima de chuva.” Sua voz reverberou na mente de Flügel. Sua voz diretamente dentro de sua cabeça era como um bálsamo para a sua alma, a sensação de só ele escutar a voz de Nytheris era como voltar para os tempos de quando ninguém sabia da existência de seu familiar.
Quando ele passava o tempo todo tendo conversas a sós com ele, ou simplesmente treinando enquanto aquela presença constante o assistia em silêncio.
“Tudo bem, o que você pretende ler? Ainda não tenho ideia do que eu irei ler… talvez eu peça uma recomendação para Grenhard,” Flügel comentou enquanto caminhava sob as densas nuvens cinzentas em direção à academia Aera Veyris, com sérios pensamentos de ir voando com medo de começar a chover antes de ele chegar ao seu destino.
“Eu também não sei o que ler, mas lá eu encontrarei algo” respondeu Nytheris, enquanto começava a pensar sobre qual livro ele iria ler.
— Certo, eu vou voando… — murmurou Flügel. Ele decidiu que não daria sorte ao azar e iria logo voando, que seria mais fácil e prático.
Sem nem mudar sua expressão, seu corpo levitou suavemente.
A força da gravidade que antes o arrastava para o chão como correntes invisíveis agora obedecia ao seu comando como uma fera domesticada. Flügel ergueu-se do solo com uma facilidade que teria feito seu eu de anos atrás sentir inveja.
Naquela época, voar era um esforço constante, exigindo concentração absoluta e o grande gasto de mana por usar dois elementos ao mesmo tempo. Agora, bastava um pensamento e seu gasto de mana era bem menor.
O frio úmido da atmosfera imediatamente o envolveu. O ar cortava seu rosto como lâminas de seda gélida, e as primeiras gotículas de chuva tocaram sua pele antes mesmo que ele ganhasse altura suficiente para sobrevoar os telhados da cidade.
A pressão nos ouvidos era quase imperceptível, fruto de uma manipulação sutil da densidade ao seu redor. Flügel não apenas anulava a gravidade que o prendia ao chão, mas moldava o ar em sua volta para reduzir a resistência, fazendo seu corpo deslizar como se estivesse nadando por um mar invisível.
Ele usava pequenas variações no campo gravitacional à sua volta para corrigir o curso com precisão, sem precisar apelar para magia de vento como fazia antigamente.
Cada impulso, cada subida ou descida era resultado de um ajuste calculado. Não havia mais aquele desconforto na barriga que sentia nas primeiras vezes, aquela sensação de queda livre mal controlada. Era como andar… ou até mais natural que andar.
Flügel atravessou os céus cinzentos como uma sombra, desviando com facilidade de fios de roupa estendidos entre casas, de torres e de chaminés fumegantes. As ruas de Tournand pareciam um emaranhado de veias sob seus pés, as pessoas caminhando apressadas tentando fugir da chuva iminente.
Enquanto voava com maestria, Flügel lançou um olhar de soslaio ao majestoso castelo onde o rei de Tournand residia. Ele se perguntava que tipo de pessoa seria o rei, já que pouco se ouvia sobre ele.
A família real, por inteiro, era envolta em mistério, como se uma cortina de segredos os isolasse do restante do reino. Por um momento, seus pensamentos vagaram, tentando imaginar que intenções ou segredos poderiam estar escondidos além daquelas muralhas imponentes. Seria o rei um aliado em potencial contra a ameaça do Lich, ou apenas mais uma peça no tabuleiro de incertezas que Tournand se tornara?
Com a chuva começando a cair em gotas esparsas, Flügel acelerou, direcionando-se à biblioteca da Academia Aera Veyris. A promessa de conhecimento, mesmo que escassa sobre os Lichs, era um conforto em meio às dúvidas que pesavam em sua mente.

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