Capítulo 71 - Reencontro de energias
[ 29 de abril de 1922, às 18:30 da noite. ]
O céu já cedia ao breu da noite estrelada enquanto Akemi atravessava o solitário Campo de Treinamento 3. “Esse lugar me passa uma sensação estranha de abandono. A entrada estava escancarada, sem guardas ou sequer alunos. É mesmo correto estar aqui? E cá entre nós, onde foi parar aqueles oficiais que brotavam até do nada no meu primeiro dia…? Droga, eu poderia simplesmente dar meia-volta, mas promessa é promessa.”
Incapazes de acalmar o latejar dos músculos, pensamentos predominavam.
“Mas quem dera não passar tardes sendo torturado por um ogro que só usa calças. Me esforcei tanto hoje que precisei usar outra troca dessa roupa de treino colada até os ossos… Pelos menos deu pra sobreviver.”
A mão no ombro rígido revelava o sentimento de dor no corpo, mas no meio da exaustão, outra memória recente: uma companheira, por mais que fosse uma energia ambulante, foi essencial naquela tarde.
“Devo muito à Nikko. Ela esteve ao meu lado o tempo todo ensinando, corrigindo, puxando meu ritmo sempre que eu quase desabava. O controle da respiração fez a diferença, e pela primeira vez, superei os exercícios físicos impostos por aquele maldito major sem que eu perdesse a consciencia, isso já é uma vitória… Mas sério! Como um militar pode ser tão petulante?!”
“— AUMENTE O RITMO, ZERO UM! MAIS DEZ!” As ordens ríspidas de Yura eram recordadas como se tivessem enraizadas na mente. O major secou a garganta só com gritos direcionados aos alunos da Turma 1F, com destaque aos irmãos Yamamoto, dois gêmeos “robustos” que exercitaram-se abaixo de xingamentos e apelidos duros enquanto eram vistos como um desafio: “— DOIS CORPOS PRESOS À GORDURA QUE ATRASA A VIDA DE UM MILITAR! RÁ! COMIGO, OS TRANSFORMAREI EM LEEEENDAAAAS…!!! Mas preciso da colaboração dos senhores, né? He he he… MAIS – DEZ – FLEXÕÕÕÕES!!!”
Apesar de tantas motivações disfarçadas de menosprezo, a performance da maioria da turma foi surpreendente, com direito a sorrisos delirantes perante as ordens seguidas.
“Nihara parecia faminto por aprovação, é estranho pensar que ele foi previamente dispensado em um outro dia, e hoje, estava entre nós como um leão”, Olhos no céu trouxeram reflexões sobre detalhes de outrora. “Mas diferente dele, Miya não apareceu o dia todo. Talvez por causa de algum compromisso. De qualquer forma, ela me espera naquele dojô agora, e sendo sincero, não faço a mínima ideia do que esperar daquela garota…”
Pernas continuavam bambeando a cada passo; as palavras do major desapareceram sob o silêncio irregular do campo.
O dojô já estava logo à frente. Antes do primeiro degrau, nenhum som, somente o tilintar dos grilos e o ranger distante de folhas arrastadas pelo vento.
Um suspiro tentou acalmar o nervosismo, e repentinamente, um calor aguçou-se. Os degraus da base de mármore esquentaram, transferindo uma vibração morna que se espalhava pelo chão e subia das solas dos pés ao joelho. Acima, a entrada deixava escapar uma claridade sutil e calorosa.
Consequentemente, o clima quente energizou os ânimos.
“Ela é pontual…”
No topo dos degraus, Akemi rapidamente esgueirou-se atrás do batente e inclinou-se lateralmente em um ângulo seguro para que espiasse com cautela.
Até que enxergou: o interior do dojô continha o brilho leve de tochas; o chão refletia ondas calorosas e delineava as frestas das madeiras com sombras trêmulas. No centro, Miya, vestida do mesmo uniforme de treino tomado por tons quentes, mantinha uma postura irrepreensível: uma mão fechada em punho pairava recuada; a outra estendida à frente usava a palma como escudo; uma coxa erguida deixava a canela como barreira; e os pés descalços estavam altamente preparados. A concentração era tanta que o único som que escapava era a respiração cadenciada.

De repente, um movimento tão rápido que quase a fez sumir: um pé bateu no chão e deu início a avanços incessantes de socos e chutes na mira de alvos imaginários. Direita, depois esquerda.
Fios de cabelos mesclados entre o rubro e o negro embelezavam as investidas sem chamas e nem centelhas, porém, o calor estava claramente presente, e além dele, havia outro detalhe que trazia intrigas a quem observava: o corpo da garota quase desaparecia no trajeto de cada golpe: pernas sumiam, braços evaporavam, o tronco desfocava, e só no instante final — quando o movimento completava seu ciclo —, era possível vê-la novamente, exatamente no ponto onde a técnica terminava.
A perfeição do compasso era tão inumana que Akemi só conseguia pensar em um único parâmetro comparável: Hikaru, o espadachim da aura luminosa. Mas com uma diferença: enquanto um literalmente desaparecia por completo na velocidade da luz, os movimentos da outra, embora acontecessem além da percepção, eram visíveis em um borrão.
A única semelhança era simples, qualquer reação de um oponente despreparado seria inútil…
Outro avanço, outro giro, outro golpe que explodiu no vazio e deixou o eco de uma palma aberta que atravessou a resistência do ar.
“Ela tá… treinando? Mas, é quase uma dança”, analisou Akemi, tão abismado que nem percebeu-se novamente hipnotizado por algo que jamais presenciara pessoalmente. Seu coração disparado impedia até mesmo a coragem de tentar chamar a garota, pois temia atrapalhá-la. Ainda assim, o fascínio era mais forte. “Esses movimentos… são tão teatrais. Como ela consegue ser tão letal e calma ao mesmo tempo?! Céus, se eu entrasse numa luta contra uma pessoa assim, nem meia piscada eu durava. Anota isso, Akemi: nunca irrite essa garota!” Enquanto divagava, seu corpo sabia exatamente o que aquilo representava. A própria aura elétrica o arrepiava, reagindo instintivamente à proximidade de técnicas que transbordavam calor.
Mas aquela admiração sorrateira não duraria por muito tempo.
Akemi segurou a respiração e sentiu os batimentos se acumularem na garganta quando Miya parou bruscamente. No fim do último golpe, o pé direito da garota voltou ao centro, os ombros recolheram-se, e as mãos, abaixadas e lentamente alinhadas ao quadril. Sem virar o olhar.
— Está atrasado.
A informação serviu como uma cobrança indireta.
Parcialmente escondido atrás do batente, Akemi arrepiou-se com pensamentos embaralhados entre desculpas e nervosismo. “E-ela já sabia?! Ah, é óbvio que ela sabia”, sem graça, ele se mostrou por completo e acenou. — O-olá! Hehe, boa noite. Como vai?
Miya olhou de canto. — Parece que você está acostumado a espiar os outros, não é?
O rubor de Akemi aumentou tão rápido que até suas orelhas começaram a queimar. — N-não! Jamais! Eu só tava… esperando, tipo, só observando- quer dizer, e-eu não sou esse tipo de estranho!
Miya sustentou aquele olhar sério por um tempo, até que de súbito, cedeu a um sorriso singelo. — Sei, sei. Vejo que está com sua roupa de treino. Como foram as tutorias do dia?
— O-o meu dia? Bem… acho que consegui o mínimo necessário.
Por algum motivo, a resposta pareceu arrancar algo que a garota tentava segurar.
— Pfft.
— Ei! Qual é a graça!?
— Hihi, nada, nada. Fico feliz em ver você tentando se adaptar a um estilo de vida diferente. — Miya cruzou os braços e aproximou-se dois passos. — Enfim. Daqui pra frente, vai precisar de muito mais do que o mínimo se quiser continuar.
— Como assim mais do que o mínimo!?
Ainda alegre, Miya acenou de leve como se empurrasse aquele nervosismo alheio de volta pro chão. — Calminha, não precisa surtar agora. Ainda estamos nos primeiros passos.
— Ok, mas… o que planeja?
A garota recuou as mãos para trás da cintura e apontou com o inclinar da cabeça. — Tá vendo aquilo ali?
— Aquele negócio de madeira?
Seguindo a direção do gesto, era possível ver algo sob a luz das tochas: no limite entre a penumbra e o dourado do ambiente, havia uma estrutura de madeira composta por um tronco cilíndrico, três braços curtos dispostos em ângulos diferentes, e na parte inferior, uma haste que simulava uma perna. A superfície parecia envelhecida pelo uso, cheia de marcas e leves rachaduras: cicatrizes de incontáveis treinamentos.
— É só um bonequinho de madeira. Vem, vamos começar por ali.
Antes de seguir a garota, Akemi respirou fundo. Seu corpo hesitava pois já sabia que aquele momento exigiria dele…
Na parede atrás do boneco, sombras trêmulas aguardavam reações do rapaz que, imóvel, encarava aquele cilindro de madeira com braços como se estivesse diante de uma entidade ancestral.
Olhos inseguros subiam e desciam no intuito de entender cada ângulo do desconhecido.
— Iremos realmente iniciar com isso?
Ao lado, Miya permaneceu em silêncio por alguns segundos, avaliando a pergunta. — Confesso que normalmente não se deve começar pelo boneco.
— O que quer dizer com isso?
— A antecipação de um golpe só faz sentido quando ela é validada, e isso só pode ocorrer quando existe um oponente vivo. O boneco serve apenas para consolidar o que você entendeu de um confronto real. O treino começa no corpo de alguém, depois da aprovação, você o traz para um objeto inanimado, não o contrário.
— Entendi, mas o que devo fazer agora?
— Um único e simples soco.
— … Hã!?
— Só isso. Um soco nele.
— E-e-espera aí, um soco? Assim? Tipo… pá!?
— Exato. Não se preocupe muito com a forma, só quero ver como você agiria naturalmente.
— Tá bom, um soco — Akemi respirou fundo, bateu as mãos nas laterais da calça e ajeitou a postura. “Eu acho que consigo fazer isso.”
Ele se posicionou, ou, pelo menos, tentou.
Pernas tortas, quadril desalinhado, ombros tensos e mãos armadas de forma tão estranha que remeteram a maneira de segurar uma xícara.
“Caramba, que vergonha! Não olha, Miya, finge que não tá vendo!”
E enfim, bateu um punho à frente.
Pok!
O soco foi tão desconfortável quanto a careta feita logo após.
— Ai, ai, ai! — Irritado, Akemi sacudiu a mão. — Isso é mais rígido do que eu pensei!
Sem muitas reações, Miya se manteve composta. — Certo, esquece o soco por enquanto. Vamos testar outra coisa. Agora, quero ver como você pensa um chute.
— Tá beleza! Chute.
Dois passos para trás, punhos e olhos fechados.
“Certo, preciso me dedicar um pouco mais. Posso fazer melhor dessa vez, é só pensar direito! Como nos livros! Use a imaginação!” Akemi respirou novamente e, pela primeira vez, não cometeu nenhuma aberração biomecânica. Seu corpo lateralizou-se em relação ao boneco, e com os pés levemente afastados, uma guarda tímida ergueu-se na frente do peito. “Ok, até que tá… decente, eu acho.”
Enquanto os segundos se passavam, a concentração aumentava. Dentes foram trincados, e então…
— Raah! — O calçado preto subiu e encontrou a lateral do boneco.
Tum!
O boneco balançou, rangeu, e girou uma das hastes lentamente antes de se estabilizar.
— Oh — Akemi piscou rápido, meio chocado — até que esse foi… legal?
Miya cruzou os braços. — Hm, parece que temos um caminho.
— Um… caminho?
— Eu já tinha pensado em investir nas suas pernas como referência principal.
— Então você usará minhas pernas pra me ensinar a lutar!?
Antes que qualquer empolgação tomasse forma demais, uma seriedade na voz esmagou qualquer expectativa.
— Não. Não te ensinarei a lutar.
— … Eu… não entendi.
— O que te ensinarei não é “luta” como você está pensando. É arte marcial.
— É curioso ouvir isso de você após te ver distribuindo golpes no vento.
— E é exatamente por isso que precisamos esclarecer isso desde já — Miya deu dois passos à frente, uma sombra cobriu parcialmente o topo de seu rosto. — Luta… é só… luta. É disputa, imposição, não vitória sobre alguém… — Após uma pausa, ela se aproximou um pouco mais e seu rosto voltou à pouca luz. — Já a arte marcial, é um processo. É sobre construção e transformação. Quando você encontra dentro de si uma técnica que transcende a própria aura. É um processo tão profundo que às vezes pode até negá-la.
— Negar…? Negar aura!?
— Sim, isso você aprende com o tempo — Miya passou a caminhar ao redor do boneco, circundando lentamente em uma única vez. — Por enquanto, entenda que, juntos, exploraremos a beleza de ensinar, sem ensinar. O professor excepcional não busca ensinar, mas sim, levar o aluno a aprender. Assim, uma arte marcial bem aplicada pode gerar uma vitória, sem lutar.
No término da explicação, a garota parou ao lado do boneco e, convencida, encarou o outro.
“Uma arte marcial bem aplicada gera uma vitória sem lutar”, após segundos de reflexão, Akemi apertou os punhos, animado. — Compreendi perfeitamente! Como vamos continuar?
— Negativo, você ainda não compreendeu nada do que quero dizer. Aliás, nosso treino por hoje é só.
— …
— Hihihi… por favor, não fique chateado — com passos leves, Miya se aproximava — não pense que sessões de treino entre mestre e discípulo simplesmente aconteçam. Para que haja progresso de verdade, é preciso uma bela conexão — perto o bastante, ela colocou as duas mãos nos ombros alheios — e, olha, sem querer te desanimar, ainda estamos um pouco longe do ponto ideal.
Akemi murchou. — Pelo menos tivemos uma iniciativa. Pra mim isso vale.
Miya levou ambas as mãos à cintura e ajeitou a postura. — Se serve de consolo, prometo que farei de tudo pra que você consiga aprender o caminho certo.
Aquelas palavras, ditas de forma tão segura, fizeram o coração do rapaz dar uma leve acalentada que não tinha a ver com a temperatura ambiente; no entanto, bastou um segundo para que surgisse uma nova confusão. Suas sobrancelhas se juntaram devagar enquanto uma dúvida insistente começava a pressionar o interior do peito.
“Mas… por quê exatamente?”
Por mais que confiasse na promessa feita entre os dois, aquilo ainda parecia desconexo em sua cabeça, afinal, Miya claramente apontava sinais de agenda cheia, então, por que, entre tudo, escolhera justamente a proximidade de um inexperiente no mundo áurico? Não seria um atraso? Um fardo sem sentido?
Mesmo assim, o nó na garganta foi ignorado.
— Certo, se é assim, continuarei me esforçando!
— Hihi, prometo evoluirmos juntos — orgulhosa do que viu, Miya direcionou os olhos à saída do dojô e apontou para o primeiro degrau de mármore antecessor da descida. — Vamos nos sentar ali.
— Nos degraus? A céu aberto!?
— Imagino ser legal pra uma breve conversa — Miya partiu ao local.
— M-mas e se nos verem?
— Ninguém me enxerga sem que seja enxergado antes.
— … Okay.
Embora meio perdido, Akemi não tinha outra escolha a não ser acompanhá-la.
Ambos sentaram-se lado a lado.
De postura elegante, Miya observava o horizonte estrelado. Sua busca era por palavras além do visível.
Akemi, por sua vez, deixava as pernas afastadas, e para sustentar as costas inclinadas, apoiava as mãos na superfície de mármore. Seus pés batiam no degrau enquanto seus olhos fugiam de um lado para o outro — sinais escancarados da ansiedade que o corroía diante da iminente revelação de segredos.
Naquele momento, o silêncio durou tempo suficiente para que Akemi começasse a se perguntar sobre o que Miya falaria…
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