Capítulo 584 - Aplicação
Theodora, que estava em silêncio na maior parte da discussão, entendeu o que Fernando queria fazer e ficou chocada.
“Líder, você quer dizer que… vamos roubar Soldados de outras tropas?”
Quando isso foi dito, todos ficaram chocados. Mesmo que fosse algo relativamente comum que algumas tropas fossem ocasionalmente recrutadas por outras, era algo pontual e voltado principalmente a disputa por talentos especiais. No entanto, recrutar Soldados normais ainda era um enorme tabu, já que os números-base de cada tropa era uma questão de sobrevivência no meio militar.
“Tenente, eu não acho que é uma boa ideia fazer isso. Nós temos chamado tanta atenção que muitas tropas já possuem algum rancor contra nós, se tentarmos ativamente roubar seus homens…” Damon argumentou, hesitante.
Como um veterano, ele sabia bem que mesmo que o exército fosse um lugar cruel e até mesmo hostil em alguns pontos, ainda havia algumas etiquetas de bom convívio que precisavam ser seguidas. Pessoas ou grupos que não seguiam isso, acabavam sendo ostracizados pela maioria.
Fernando sorriu fracamente ao ouvir isso.
“Não estamos roubando tropas de ninguém.” afirmou com confiança. “Apenas vamos espalhar as condições de trabalho do Batalhão Zero em Garância, bem como os benefícios que disponibilizamos e claro dizer que estamos com o recrutamento aberto para quem quiser se juntar a nós e tiver as qualificações para isso.”
“Senhor… Isso não é o mesmo que tentar roubar?” O velho homem indagou.
Se tudo que o Batalhão Zero oferece fosse anunciado publicamente, o Sargento desconfiava que haveria filas cheias de gente em frente ao prédio no mesmo dia! Até mesmo tropas leais de outros Batalhões e Brigadas poderiam ser tentadas a se juntarem, muitos menos simples Soldados.
No entanto, Fernando rapidamente negou.
“Se as tropas de outros Batalhões e Brigadas vierem até nós por vontade própria, que culpa eu tenho? Eles só podem se culpar por não pagarem o suficiente e não oferecerem condições de trabalho adequadas.” O jovem Tenente respondeu, com um leve sorriso.
Ao verem seu Líder sorrindo dessa forma, alguns dos Cabos novatos não puderam deixar de sentir um arrepio em suas espinhas, sentindo que a visão a sua frente não era algo natural.
No entanto, antes de mudar de assunto, a expressão levemente sorridente do Tenente logo desapareceu.
“Quanto ao próximo tópico… Como vocês sabem, sofremos muitas perdas nessa última noite, de amigos, companheiros e irmãos e eu sei que muitos de vocês ainda estão assimilando isso, já que não faz muito tempo que tivemos que enterrar muitos dos nossos. Porém, uma das pessoas que perdemos nessa última batalha tinha um papel crucial no Batalhão Zero e isso precisa ser tratado o quanto antes.” Quando Fernando disse isso, Lenny, que estava calado e cabisbaixo até agora, rapidamente ergueu seu olhar, ele sabia exatamente de quem ele estava falando.
Muitos também logo perceberam onde o rapaz queria chegar.
“O Oficial Trayan infelizmente não sobreviveu ao ataque dos Carniçais na última noite e com isso, o assunto quanto ao comando do Segundo Pelotão está em aberto, então eu gostaria…” Antes que Fernando pudesse concluir, Lenny ergueu a mão, interrompendo seu raciocínio.
“Tenente, com todo respeito, o corpo do Trayan mal esfriou. Realmente precisamos discutir isso agora?” O rapaz de olhos claros perguntou, olhando-o fixamente. Mesmo o medo e a hesitação que Lenny vinha demonstrando desde o incidente com Brakas, não poderiam ser vistos em seus olhos.
Ouvindo aquilo e notando a reação do Cabo, Fernando ficou em silêncio por um segundo, mas negou com a cabeça.
“Infelizmente não. Isso precisa ser definido agora.” declarou com uma expressão firme. “Eu sei o quão próximos vocês eram e eu realmente gostaria de te dar mais tempo, Cabo Lenny, em respeito a sua dor. Mas nós estamos no meio de um fronte de guerra e somos parte de um exército que é a ponta de lança dos Leões Dourados. Não podemos nos dar ao luxo de ter uma cadeia de comando desfalcada.”
Ouvindo aquilo, o rapaz baixinho, de olhos claros, mordeu levemente os lábios em frustração, mas assentiu. A verdade é que ele próprio sabia disso.
“Eu entendo… Me desculpe Tenente.”
Fernando suspirou internamente ao ver a expressão do rapaz, enquanto ele próprio apertou os punhos. Perder alguém que lhe era querido não era algo fácil e ele sabia muito bem disso.
Todos os outros na sala ficaram em silêncio sem se opor ao jovem Tenente, mesmo que estivessem relutantes em discutir isso nesse momento, sabiam que era algo que não poderia ser adiado. Se sofressem um novo ataque e não tivessem uma cadeia de comando bem definida, isso poderia causar sérios problemas a todo o Batalhão.
“Como eu ia dizendo, o Segundo Pelotão precisa de um novo Oficial. Depois de pensar muito a respeito, decidi que aquele que irei nomear para estar a frente será o Cabo Lenny.” Fernando anunciou diretamente, o que não surpreendeu muitas pessoas. Era algo esperado, já que a totalidade do Segundo Pelotão era formada por membros da antiga Guilda Valorosos, da qual Trayan e Lenny haviam sido Vice-Líderes. “Com a experiência dele como ex-Vice-Líder de uma Guilda e sua força, acredito que o Cabo Lenny tem as qualificações necessárias para a posição, mas se alguém tiver algo contra, gostaria de ouvir sua opinião.”
Mesmo sendo um Tenente e tendo as prerrogativas para nomeações diretas em tempos de guerra, Fernando ainda optou por escutar os demais. Afinal, ele havia acabado de nomear Karol diretamente e não queria que isso se tornasse um mal-hábito de sua parte.
Após um curto período de silêncio, com todos se entreolhando, no final, assim como era esperado, ninguém foi contra a indicação de Lenny. Mesmo que o rapaz tivesse tido um mal-entendido recente com a questão da Sopa Revitalizante, isso não era algo que afetava sua imagem ou competência. Além disso, tudo isso já havia sido esclarecido.
Mesmo Lance e Leo, que haviam tido uma briga com o mesmo anteriormente, não foram contra. Por mais que eles tivessem atributos semelhantes, quando lutaram contra Lenny, ficou claro que com sua experiência e o fato de ser um Usuário de Habilidades o tornavam ser mais do que capaz.
Na verdade, com a força dele, ninguém ali acharia estranho se ele até mesmo ocupasse o cargo de Sargento ou Subtenente, muito menos Oficial.
“Muito bem, então eu declaro que o Cabo, ou melhor, Oficial Lenny, estará a frente do Segundo Pelotão. A partir de agora, ele passará a ser chamado de Pelotão Valorosos. Por favor, faça seu melhor cuidando das suas tropas e do legado de Trayan.” Fernando declarou, com a voz seca em direção ao homem.
Lenny se levantou, com a mão no peito em sinal de respeito, seu olhar passando todos ao redor até parar em Fernando.
“Agradeço a confiança de todos. Farei o meu melhor Tenente, eu garanto.” afirmou, com um olhar resoluto e o rapaz pálido assentiu em resposta.
Após mais algumas discussões sobre os Pelotões e sobre como seria feito o tal “recrutamento”, de forma que não ficasse tão evidenciado o objetivo deles, Fernando sentiu que não havia mais assuntos públicos a serem discutidos.
“Reunião encerrada.” O jovem Tenente falou, com uma expressão séria. Logo alguns começaram a se levantar, preparando-se para sair, mas foram interrompidos por suas próximas palavras. “Esperem, vou listar alguns nomes e preciso que essas pessoas fiquem para discutir algo. Os nomes que não forem chamados podem sair, o restante aguarde.”
Quando o rapaz pálido disse isso, muitos se sentiram ansiosos, perguntando-se do que se tratava.
“Oficiais e acima ficam, quanto aos Cabos, vou nomear um a um.” Fernando disse, com uma expressão séria, varrendo seu olhar lentamente sob todos na sala, como se estivesse pensando em quais nomes chamar. “Lance, Emily, Leo, Ugo, Anane, Bianco, Cintia, Magnus e a Tesoureira Lina. Estes devem ficar, o restante de vocês podem sair.”
Alguns dos que não foram chamados, como Ragin, Keny e alguns outros, se entreolharam, então silenciosamente se levantaram, saindo da sala.
Muitos pareciam aliviados, acreditando que seja o que for, haviam escapado de problemas, enquanto outros estavam desconfiados e chateados. Afinal, toda a alta cúpula do Batalhão Zero havia ficado, com apenas alguns Cabos menos proeminentes ou novatos sendo dispensados.
Mesmo que o jovem pálido não tivesse dito nada, aqueles dispensados estavam cientes de que ainda não tinham a total confiança de seu Líder e por isso não participariam dessa próxima reunião.
Vendo os olhares descontentes de alguns dos Cabos que estavam saindo, Fernando suspirou. Ele imaginou que isso aconteceria.
Não tenho escolha, mesmo que seja desagradável, não posso correr mais riscos. Assim como o senhor Raul disse, não posso confiar indiscriminadamente em qualquer um.
Enquanto alguns estavam insatisfeitos de não ter seus nomes chamados, outros, como Lenny, Anane, Damon, Bianco e Magnus, que não serviam Fernando há tanto tempo ou que até então não tinham sua confiança, ficaram surpresos e encantados ao saberem que seu jovem Tenente estava os tratando da mesma forma que os membros mais antigos, que o seguiam desde o Esquadrão Zero.
Quando o último dos Cabos saiu, o jovem Tenente olhou na direção da porta.
“Theodora, Kelly.” disse.
Mesmo sem explicar nada, as duas mulheres imediatamente entenderam, quando a Medusa se encaminhou em direção à janela, observando o lado de fora com atenção, ao não notar nada de estranho nos arredores, a fechou.
“Tudo certo.” Theodora falou.
Kelly, por outro lado, aproximou-se da porta, tocando-a com a mão esquerda, fechando os olhos por alguns segundos. Como uma usuária inata de Magia de Vibração, que deriva da Magia de Som, mesmo que nunca tivesse aprendido nada sobre o Som, percebeu que conseguia entender alguns conceitos dessa magia progenitora. Usando seus ouvidos, enquanto captava os ruídos do outro lado, conseguia sentir todos os Cabos indo embora. Nenhum deles se atreveu a ficar para trás ou tentar ouvir a conversa.
“Está seguro, Líder.” A garota afirmou.
Vendo isso, Fernando assentiu. Em termos de detecção e ocultamento, as duas mulheres eram muito melhores que ele próprio. Se elas não estavam sentindo ninguém nas proximidades mesmo ao se concentrarem, deveria significar que a área estava segura.
“Muito bem, então vamos direto ao assunto. Como vocês devem saber, eu tenho muito mais inimigos do que gostaria…” O jovem Tenente falou, enquanto dava um leve suspiro. “Serei franco com todos vocês, se as coisas continuarem do jeito que estão, não tenho uma visão otimista sobre o futuro, mais precisamente, sobre o Batalhão Zero continuar a existir.”
Quando o rapaz disse isso, todos na sala ficaram surpresos e chocados.
“Senhor, se me permite, o que quer dizer com isso?” O velho Damon perguntou, relutante. “Mesmo que tenhamos sofrido algumas baixas, o núcleo do Batalhão Zero está praticamente intacto. Além disso, nós acumulamos muitas conquistas nas últimas batalhas, não entendo como a nossa existência estaria em risco”.
“Isso tem a ver com aquele tal de General Herin?” Lance perguntou, sem se conter.
Fernando balançou a cabeça, em negação.
“Está relacionado, mas não é apenas isso.”
Mesmo que Herin fosse uma séria ameaça, Fernando não sentia que o sujeito conseguiria mexer com eles tão facilmente. No entanto, depois do que presenciou na floresta naquela noite, seja o Rei Carniçal, o Necropto ou os Nômades Sombrios, todo o conceito de força ou estabilidade que ele tinha quanto a sobrevivência dele ou do Batalhão Zero agora pareciam não ser nada mais do que uma piada de mal gosto. Frente a essas monstruosidades, eles não passavam de nada além de formigas.
Além disso, mesmo que Herin ou seus outros inimigos individualmente não pudessem prejudicá-los no momento, se ele continuasse acumulando inimizades, sabia que isso logo se tornaria uma grande bola de neve, que algum dia iria explodir em seus rostos.
Nesse momento, Ilgner, que estava em silêncio, se intrometeu.
“Então, do que se trata, Tenente? Para reunir todos aqui, você deve ter algo em mente.”
O rapaz pálido suspirou levemente, então olhou para as pessoas naquela sala. Todos ali eram pessoas que ele mal conhecia a pouco mais de um ano, mas agora sentia que eles eram como sua família, ou melhor, eles de fato se tornaram sua família.
Mesmo que ele tivesse as lembranças do Fernando da Terra, ele sabia que aquelas não eram realmente suas memórias, mas sim do seu ‘eu’ original. Sendo assim, para ele, uma cópia nascida naquele mundo, o Batalhão Zero era verdadeiramente sua família e ele faria o que fosse necessário para protegê-los.
“Nós tivemos poucas baixas dessa vez porque somos um pouco fortes e tivemos alguma sorte, mas um Batalhão comum teria tido os mesmos resultados?” Fernando indagou.
Todos se entreolharam, em dúvidas. A verdade é que em relação a uma tropa comum, todos naquela sala sabiam que o Batalhão Zero era muito superior. A maioria dos Cabos tinha Status suficientes para ocupar posições mais altas.
Mas mesmo assim, eles ainda sofreram um número considerável de baixas. Se eles fossem um simples Batalhão, sequer teriam sobrevivido à missão de defesa do portão? A resposta para isso era, simplesmente, não!
“Atualmente todos aqui já ultrapassaram o limite máximo de Status que é possível se alcançar com Poções Incrementadoras Fauser e a maioria de vocês já estão no limite da Ivrat, mas isso não é suficiente. Se quisermos alcançar novas alturas, se quisermos garantir que não vamos perder mais irmãos, precisamos ficar mais fortes! E isso, é claro, inclui a mim mesmo.” Fernando falou, com sinceridade.
Desde a emboscada que sofreu pela Família Lopes, ele havia percebido que havia entrado em uma zona de conforto e mesmo que tivesse dedicado algum tempo ao treinamento depois do ocorrido, ainda sentia que não era o suficiente. Havia um sentimento de urgência o sufocando a todo momento e os perigos da última batalha fizeram essa sensação vinda do fundo do seu peito gritar ainda mais alto.
“Com a força atual do nosso Batalhão, não me sinto confiante de que sobreviveremos até o fim dessa guerra, ou pelo menos não com a maioria de nós…” Fernando disse, com a voz rouca. Mesmo que ele não dissesse diretamente, estava claro o significado.
O Batalhão Zero ainda existiria em nome, mas se continuassem a sofrer baixas dessa forma, em um ou dois anos, os membros daquela sala seriam completamente diferentes dos atuais desse momento e isso era algo que ele não queria.
“Serei direto com vocês. Dentro de cerca de três meses, planejo aplicar um pedido de promoção. Com isso planejo tornar o Batalhão Zero em uma Brigada Nomeada e para fazer isso, preciso da ajuda de todos.” Quando os presentes na sala ouviram aquilo, imediatamente ficaram perplexos e mal puderam raciocinar direito. “Então, antes de agir, tenho que ter certeza disso. Vocês me apoiarão nessa decisão?”

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