Índice de Capítulo

    Refizemos nossos passos em silêncio, sem pressa. As nuvens haviam coberto a lua por completo, mergulhando o mundo em uma penumbra opaca, como se o próprio céu refletisse o peso do que havíamos testemunhado. O ar estava denso, úmido, e o cheiro da terra molhada indicava que em breve voltaria a chover. Eu e Lock voltávamos para o ponto onde tudo começara, a entrada secreta que levava ao laboratório oculto.

    Embora só tivessem se passado algumas horas, para nós a sensação era de dias. Desde o jantar no palácio das fadas até ali, tudo parecia distorcido, esticado por uma linha do tempo que já não obedecia às regras comuns. Tanta informação, tantas emoções, lembranças alheias, teorias perturbadoras… o tempo havia se dobrado sobre si mesmo.

    — Vou começar a montar a máquina de leitura dos cristais agora mesmo — disse Lock, quebrando o silêncio com sua voz prática, mas carregada de preocupação. Ele me lançou um olhar de lado, avaliando meu estado como um médico silencioso. — Acho que você deve ir pra casa, tomar um banho… ver se suas garotas estão bem. Esquece esse assunto por agora. Você não é Mahteal, Lior.

    Fiquei em silêncio por alguns segundos. Mas não era preciso responder com palavras. Lock já sabia. Ele sempre sabia. Perceptivo como poucos, era óbvio que havia lido os sinais em minha expressão, no modo como me movia, na forma como meus olhos se perdiam no vazio entre um passo e outro. Ele havia entendido, sem que eu dissesse nada, o quanto aquelas visões haviam me atingido.

    Assenti lentamente, sem protestar. Me despedi com um aceno contido, e deixei o laboratório pela mesma porta por onde entráramos. Já era quase manhã. O céu começava a clarear, ainda tímido, atrás das nuvens densas. Os guardas postados na entrada do palácio pareceram surpresos ao me ver. Não era comum alguém sair a essa hora, mesmo com permissão especial.

    — Muito serviço no laboratório… — murmurei, oferecendo a desculpa mais simples e aceitável possível, antes que fizessem perguntas. Nenhum deles insistiu. Apenas assentiram, respeitosos, e me deixaram passar.

    Caminhei pelas ruas ainda vazias, com o coração pesado e os pensamentos em turbilhão. Cada passo ecoava como se arrastasse junto as dúvidas e revelações da noite. Muitas das verdades que eu tinha como sólidas agora pareciam frágeis, rachadas. Que outras surpresas as gravações de Malena ainda guardavam? Quão fundo eu estava disposto a mergulhar nisso?

    Cheguei em casa envolto nesse nevoeiro mental. A escuridão silenciosa do interior foi um alívio. Todos dormiam. A casa estava quieta, acolhedora na sua familiaridade. Passei discretamente pelo quarto onde Claire repousava. Ela ainda dormia, profundamente, o corpo ainda se recuperando do veneno. Sua respiração era estável, tranquila. Fiquei parado por um instante à porta, observando-a. Torcendo, em silêncio, para que acordasse em breve.

    No meu quarto, entrei sem fazer barulho. Nix estava ali, encolhida sob os lençóis, ressoando um sono calmo. Havia uma paz tão serena em seu rosto que me senti invadido por um sentimento de culpa. Como se meu retorno fosse trazer para aquele espaço seguro os fantasmas de uma história que não era nossa. Fiquei ali parado por alguns segundos, só observando. Seu rosto, suas mãos, a respiração suave. A luz fraca que entrava pela fresta da janela desenhava sua silhueta de maneira quase onírica.

    Comecei a tirar a roupa suja do dia, e da noite, com movimentos lentos, quase rituais. Cada peça que largava no chão parecia carregar um pouco do peso que me sufocava. Quando finalmente me deitei, procurei seu corpo com cuidado, me aninhando ao seu lado. Nix murmurou algo ininteligível e, meio dormindo, se aconchegou em mim, como se já estivesse esperando por esse gesto.

    Aquele calor humano me atingiu com força. Era simples, era real. Quase chorei. Minha mente, no entanto, ainda estava tomada pelas imagens de Malena. O rosto dela, a voz, os olhos vermelhos de cansaço, as palavras sussurradas sobre deuses e avatares… Mahteal a amava com uma devoção absoluta. Uma parte de mim, que eu não queria reconhecer, compreendia isso bem demais. Como se eu mesmo tivesse sentido aquele tipo de amor. Ou ainda sentisse.

    Fechei os olhos, e mergulhei o rosto nos cabelos de Nix, aspirando seu perfume com uma urgência silenciosa. Era uma tentativa de me reconectar comigo mesmo. De deixar Mahteal e Malena no passado de onde pertenciam, de voltar aos meus próprios sentimentos, às minhas escolhas. Ao que era concreto, vivo e presente.

    Nix, ainda dormindo, se virou levemente e encostou o corpo ao meu. Senti seu calor, sua pele contra a minha. A abracei com força, como se precisasse me ancorar nela para não me perder em meio a tantas memórias que não eram minhas.

    Meus batimentos começaram a desacelerar. A respiração ficou mais ritmada. Finalmente, a tensão que havia me acompanhado desde o laboratório começou a se dissolver. Adormeci ali, no calor do corpo de Nix, mas os sonhos que me aguardavam não seriam leves. Vieram tingidos de vermelho. De cabelos vermelhos. De lembranças que não eram minhas… mas que pareciam, de alguma forma, pertencer a mim.

    Assim que Nix se mexeu, puxando os lençóis de lado com um gesto preguiçoso para se levantar, acabei acordando também. Ainda meio perdido entre o mundo dos sonhos e a realidade, abri os olhos e a vi ali, olhando para mim com aquele sorriso calmo que sempre me fazia lembrar de onde eu estava. E, mais importante, de quem eu era. Bastou aquele sorriso para dissolver o resto das dúvidas que ainda me agarravam como névoa persistente. Eu era Lior. E fosse o que fosse Mahteal — um eco, uma memória, uma sombra projetada através do tempo e da alma —, sua loucura não era minha.

    — Bom dia, meu querido — disse ela, com voz suave, arrastada pelo calor da manhã.

    Me aproximei, enlaçando seu corpo por instinto, e a beijei com ternura.

    — Bom dia — respondi, com a voz ainda rouca de sono, mas cheio de uma paz que já fazia tempo que não sentia.

    Por um breve instante, o quarto se tornou um mundo à parte. Isolado. Uma bolha de calor, carinho e silêncio reconfortante. Um segundo depois, o destino se lembrou de que não costumava nos dar folgas por muito tempo. Uma batida apressada, nervosa e sem cerimônia interrompeu o momento. A porta se abriu antes que alguém pudesse responder, e a cabeça de Alana surgiu por entre a fresta, o sorriso dela iluminando o corredor.

    — Claire acordou.

    Nix não precisou ouvir duas vezes. Ainda em roupas de baixo, ela saltou da cama como se tivesse levado um choque. Seus pés mal tocaram o chão enquanto corria para fora do quarto. A energia dela era como uma explosão de alívio e ansiedade. Vesti as calças rapidamente, nem mesmo me preocupando com camisa ou aparência, e fui atrás.

    Chegando ao quarto, encontrei uma cena que parecia saída de um sonho bom. Claire estava acordada, recostada com as costas contra o travesseiro empilhado, o corpo ainda frágil, mas os olhos vivos. Nas mãos, uma xícara fumegante, o cheiro indicava chá de alguma erva calmante. As garotas estavam todas ali. Nix, Alana, Pandora, Niana, e até mesmo minha governanta, reunidas ao redor dela como abelhas ao redor da flor recém-aberta. Riam, falavam sobre coisas simples. O som leve das vozes era como música de fundo para a esperança.

    Nix, completamente tomada pela emoção, esqueceu por completo que Claire estivera inconsciente até poucas horas antes. Atirou-se sobre ela em um abraço apertado, envolvendo-a com força e sem nenhum cuidado com sua própria aparência ou pudor.

    — Tive tanto medo — sussurrou ela, a voz embargada. — Você me assustou pra valer…

    Claire sorriu. Um daqueles sorrisos suaves que só ela sabia dar. Fez um cafuné nos cabelos de Nix, acariciando com delicadeza.

    — Eu estou bem agora… calma, Nix. Ainda vou ser sua irmã por um bom tempo…

    Mas então, num gesto quase imperceptível, ela se endireitou. Os ombros se ergueram, a coluna ficou reta. O sorriso sumiu, e seus olhos me buscaram no meio do grupo. Fitaram os meus com algo mais grave, mais denso.

    — Vou, não vou? — perguntou, a voz firme, ainda que embargada por algo mais fundo. — Não lembro de nada do meu duelo…

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota