Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 64 — O Mestre das Favelas
A rampa de cristal descia silenciosamente, levando todos para fora do escritório. Flügel, ainda processando a súbita e violenta crise de tosse do Mestre da Torre, lançava olhares discretos para o homem ao seu lado. A imagem de Siegmeyer, frágil e curvado pela tosse, contrastava drasticamente com a aura de poder inquestionável que ele exalava momentos antes.
A cura de Thalion, rápida e eficaz, apenas adicionava mais uma camada de mistério à figura do Mestre. Por que não usar uma magia de alto nível? Só havia duas possibilidades: a primeira era que ele possuía uma doença incurável pela mana, e a segunda era que ele já nasceu assim, tornando impossível para uma magia de cura restaurar seu corpo, pois a magia de cura restaura o corpo ao que era antes.
Seria realmente uma doença, ou uma fachada elaborada? A mente de Flügel girava, tentando conciliar a fragilidade recém-revelada com a figura imponente que todos esperavam de um Mestre da Torre.
O silêncio se instalou entre todos enquanto eles esperavam que a rampa os levasse para o andar — Salão Cartográfico — Flügel apertou o formulário em suas mãos, a caligrafia perfeita de Siegmeyer parecendo zombar de sua confusão. Patenteamento de magia… um conceito estranho, mas que fazia sentido. Proteger suas criações.
Ele se viu imaginando um nome para sua magia negra, algo que capturasse a essência da desintegração e do consumo de mana. ‘Aniquilação de Mana’? ‘Corrosão’? As palavras dançavam em sua mente, cada uma carregando um peso de destruição e poder.
Ao chegarem ao destino que a rampa os levava, um vasto salão circular se revelou. As paredes eram revestidas de estantes de ébano repletas de pergaminhos e mapas de todos os cantos do mundo conhecido e até rascunhos de lugares inexplorados.
O cheiro de papel antigo, tinta e algo que lembrava levemente o orvalho da manhã preenchia o ar, uma fragrância que evocava anos, talvez séculos, de conhecimento acumulado. Vendo o tamanho do salão, Flügel se perguntou como ele era tão grande, sendo que a torre era feita de pequenas alcovas para serem usadas como andares. A arquitetura interna parecia desafiar a lógica externa do edifício.
No centro do salão, uma enorme mesa redonda de carvalho maciço servia de base para um globo mágico flutuante, que pulsava com uma luz suave e constante. O globo escaneava o perímetro ao redor da Torre, projetando um mapa tridimensional atualizado de Tournand sobre a superfície polida da mesa.
Isso permitia que os magos soubessem de qualquer nova alteração na geografia do reino, desde o surgimento de um novo riacho até o avanço de uma floresta ou a construção de uma nova estrada. Era uma maravilha da engenharia mágica, uma testemunha silenciosa das mudanças contínuas do mundo.
O ambiente era pontilhado por outras mesas menores, onde aprendizes e mestres examinavam mapas com lupas e marcavam pontos com penas e tinta. O leve rabiscar de folhas, o murmúrio baixo de discussões e o virar ocasional de páginas criavam uma sinfonia suave, uma atmosfera de sabedoria e pesquisa geográfica profunda. Era claramente o centro da inteligência estratégica e territorial da Torre, onde decisões cruciais sobre fronteiras, recursos e movimentação de tropas eram tomadas com base em informações precisas e em tempo real.
Chegando perto da mesa grande de carvalho maciço, Flügel ficou impressionado com o mapa sobre a mesa. Ele parecia ser igual aos hologramas que Flügel via em sua vida passada, em jogos e filmes com temas futuristas. A projeção era tão nítida, tão tridimensional, que ele quase esperou poder tocar nas montanhas e rios que flutuavam diante de seus olhos. Os detalhes eram incríveis, desde as copas das árvores nas florestas até as construções no reino.
Por um momento, ele pensou que a Torre dos Magos tinha uma tecnologia além até mesmo do mundo em sua vida passada, mas não. A cada respiração sua ele sentia a mana mundial entrando em seu nariz. Desde que ele entrou na Torre, ele percebeu que dentro dela ele conseguia absorver mais mana do que o normal.
Era como aqueles lugares com mana concentrada na floresta, mas nessa sala era diferente. Ele sentia que estava absorvendo no mínimo três vezes a mais de mana do que quando entrou na torre. Era uma sensação inebriante, como se seus poros estivessem sedentos por aquela energia, e ela fosse absorvida sem qualquer esforço. Seus músculos formigavam levemente, e uma sensação de poder sutil, mas crescente, percorria suas veias.
— O que é isso? — Flügel perguntou, sua voz um pouco rouca pela admiração, enquanto andava ao redor do mapa, olhando cada ponto, fascinado pela forma como pequenas nuvens se moviam lentamente sobre as cadeias de montanhas e como os rios serpenteavam de forma tão realista.
— Esse artefato usa a mana da Torre como energia, e então ele escaneia uma grande área ao redor da torre, criando esse mapa atualizado — Siegmeyer explicou, sua voz retornando ao tom calmo e autoritário de sempre, como se a crise de tosse nunca tivesse acontecido. Ele gesticulou em direção ao globo flutuante, que parecia a fonte de toda aquela energia.
—Quem criou ele? — Flügel não acreditava que tal artefato existia. Mesmo não sendo um artefato ofensivo, a grandiosidade do que ele faz, o seu alcance e com quanta mana ele consegue usar de uma única vez eram assombrosos. O criador desse artefato, sem dúvida, era um lendário ferreiro mágico, ou talvez um arquiteto mágico de proporções divinas.
— Ninguém sabe. Talvez tenha sido o mesmo criador da Torre, o que é o mais provável. Esse artefato está aqui desde sempre — Siegmeyer olhou para a bola brilhante no meio do mapa, localizada exatamente sobre onde ficaria a Torre dos Magos, como se fosse o coração do próprio reino. — Bom, aponte para o local em que você usou a magia.
Flügel teve que caminhar para o outro lado da mesa para encontrar o portão menor de Tournand, o local de onde haviam partido em sua expedição. Ele fechou os olhos por um instante, visualizando o caminho tortuoso pela floresta, o ponto exato onde a magia de desintegração havia sido lançada. Lembrou-se do cheiro de terra e folhas secas, do som dos galhos quebrando sob seus pés. Lembrando com certa dificuldade, mas com uma clareza que só o perigo pode proporcionar, ele apontou para o lugar na floresta. — Aqui.
Siegmeyer gravou na mente o local. Ele caminhou até uma estante próxima, onde mapas menores e enrolados esperavam. Com um movimento rápido e preciso, pegou um mapa de Tournand e, com uma pena fina e um tinteiro, marcou no mapa o local exato que Flügel lhe apontou. Era uma linha tênue, mas que representava um problema grave e urgente.
— Ótimo — Ele disse, enrolando o mapa com cuidado e prendendo-o com um pequeno cordão. — Por hoje você pode ir embora, mas amanhã, antes do amanhecer, esteja aqui. E traga o formulário preenchido. Amanhã iremos até o local para ver o quão ruim a situação já está. — Havia uma seriedade em sua voz que não admitia contestação, um lembrete sutil de sua autoridade.
Flügel concordou com a cabeça, segurou a sua vontade de pedir para ver livros e permissão para pegar um. Ele não tinha tempo, pelo menos não por enquanto. A urgência da situação com sua magia negra era prioritária. Quando tudo se resolvesse, ele poderia vir aqui e tentar ler alguns livros, talvez até mesmo conseguir permissão para estudar os tomos mais antigos. A promessa era um farol em meio à incerteza.
Thalion se despediu de Siegmeyer com um aceno respeitoso, e os três subiram na rampa. E eles começaram a descer para o térreo da Torre.
— Eu pensei que ele seria mais rígido, e te puniria — Nytheris disse, deixando transparecer na sua voz a surpresa de que Siegmeyer não deu uma punição a Flügel, e sim apenas um aviso. Ele parecia genuinamente chocado, talvez acostumado com a reputação de severidade dos Mestres da Torre.
Thalion riu suavemente, um som acolhedor que ressoou no espaço da rampa. — Siegmeyer é um garoto de coração bom, ele pode parecer um pouco assustador por conta de seu cargo, mas ele tem um coração mole. Ainda mais com aqueles que vieram de favelas, igual ao Flügel.
— Mas por que? — perguntou Flügel, sua curiosidade aguçada. A ideia de um Mestre da Torre vindo de um passado tão humilde era quase inacreditável.
— Ele é um garoto das favelas e órfão. Então ele sabe das dificuldades que as pessoas passam lá. Ele viu a miséria, a fome, a falta de oportunidades. Isso o moldou, o fez valorizar a justiça e a compaixão. Sinceramente, é gratificante ver que temos uma pessoa tão boa sendo o Mestre da Torre dos Magos — Thalion explicou, seu tom carregado de admiração e carinho. Eles chegaram ao andar térreo, e Thalion não precisou sequer gesticular, a porta principal da Torre se abriu silenciosamente, revelando a luz do dia lá fora.
— Como ele virou o mestre da torre vindo das favelas? Quem o ensinou magia? — Flügel estava genuinamente impressionado. A hierarquia da magia era rígida, e ascender de um ambiente tão desfavorecido ao posto mais alto da Torre era uma façanha quase mítica.
— Hm… Siegmeyer foi ensinado por mim! — Thalion disse com um sorriso largo, estufando o peito orgulhoso. Seus olhos brilhavam com o mesmo entusiasmo que ele demonstrava quando começava a falar sobre os feitos e o legado de Aelara Veyris, a lendária maga de Tournand. O ar se encheu de uma leve tensão, não de raiva, mas de um orgulho que beirava a vaidade, tornando o silêncio de Nytheris quase palpável.
A revelação era um choque para Flügel, um novo elo inesperado entre ele e o poderoso Mestre da Torre. Thalion era uma figura importante, mas seu papel como mentor do Mestre elevava sua estatura ainda mais aos olhos de Flügel. Ele agora entendia a familiaridade e o carinho na voz de Thalion ao se referir a Siegmeyer. A relação entre mestre e aprendiz transcende títulos e posições, e ali estava a prova.
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