Capítulos novos toda segunda, quarta e sexta. Segunda e sexta às 20:00 e quarta às 06:00!
Siga nosso Discord para ver as artes oficiais dos personagens e o mapa do continente!
Capítulo 139 — Onde Tudo Começa
O silêncio que se seguiu ao colapso da coroa mental foi breve.
Porque o estômago de Cassian roncou alto. Muito alto.
— Pela Mãe… — ele resmungou, com a mão sobre a barriga. — Quantos dias faz que a gente não come?
— Quase dois — respondeu Helick, com a voz rouca, os olhos semicerrados e a mesma expressão de dor existencial. — Eu daria minha coleção de livros por um frango nadador frito agora…
— Não é como se alguém fosse querer. — Cassian piscou, antes de se levantar com esforço e andar em direção à Suzano, o anfitrião. — Me diga que tem um banquete esperando por nós, por favor.
Minutos depois, estavam sentados diante de uma mesa novamente posta. Nada como a primeira que haviam encontrado ao chegar em Ossuia, mas com pão, carnes, frutas e vinho quente o bastante para fazer o corpo lembrar que ainda existia sangue correndo.
Cassian devorava um pedaço de tilápia escavadora como se fosse um nobre selvagem. Helick, mesmo fingindo elegância, não disfarçava a fome.
— Isso é indecente. — murmurou Tály, vendo os dois comerem como prisioneiros libertos de uma masmorra de três meses.
— Isso é necessário. — respondeu Cassian com a boca cheia.
— A próxima parada é o Rio Vida — disse Helick, limpando a boca com o punho da túnica. — Vamos ter que mergulhar de novo e enfrentar o Kraken. Mas agora… agora é diferente.
Quando a mesa foi esvaziada e os corpos, enfim, aquecidos por comida e vinho, o silêncio retornou dessa vez sem dor, sem coroas mentais, apenas a exaustão física e o peso de tudo o que ainda os aguardava.
Kadia foi a primeira a se levantar, espreguiçando os braços com um bocejo sonoro.
— Vocês dois vão afundar na cadeira e dormir aí mesmo? — provocou.
— Se essa cadeira se transformar numa cama, aceito — murmurou Cassian, com os olhos pesados.
— Podemos descansar nos quartos que Suzano preparou — disse Helick, levantando-se com um suspiro. — Pelo menos uma noite com travesseiros, antes de enfrentar um monstro submarino com tentáculos que esmagam ossos.
— E um hálito de peixe podre — acrescentou Cassian. — Quase esqueceu esse detalhe.
O grupo de convidados caminharam pelos corredores escuros do templo com passos lentos, acompanhados apenas pelas arandelas luminosas das paredes. O aroma envelhecido de madeira e incenso suave tomaram suas narinas.
Eles passaram a frente do quarto onde os soldados haviam passado a última noite e antes das despedidas de boas noites Cassian percebeu que só haviam três camas.
— Espera, vocês quatro dormiram aqui mesmo? Só com três camas?
Morgan soltou um sorriso divertido.
— É, duas pessoas tiveram que dividir a mesma cama na última noite, sabe?
Cassian entendia o que o sorriso sínico de Morgan insinuava, uma pontada o incomodou no peito.
Até que Tály continuou:
— Sim, e Morgan se prontificou a dormir no chão para não constranger os convidados de Suzano.
Cassian ergueu uma sobrancelha enquanto um leve suspiro aliviado escapou.
— Por falar nisso, antes de ir deitar gostaria de conversar com você Tály. — Cassian falou para a soldado. — A sós, é claro.
O restante do grupo se despediu e cada um seguiu seu caminho deixando apenas os dois no corredor. Morgan deu um último olhar decepcionado para Tály, mas logo um sorriso tomou seu rosto, e com um aceno, também se despediu.
— Vejam se não passam a noite em claro, amanhã precisamos estar bem descansados. — Rhyssara falou antes de seguir para seu aposento.
E enfim, ali estavam os dois, a sós.
— Isso foi inesperado… — Tály parecia realmente sem jeito, mas Cassian ainda sentia certa dureza e desconfiança em seu olhar.
O príncipe se lembrava do que tinha feito anos atrás.
Após derrotar a Coroa de Edgar Cassian podia de alguma forma ver a muralha que Tály havia criado para si. Eram duas manoplas de ferro cruzadas em chamas. Era uma muralha consistente, mas… Frágil. Cassian sentiu como se ele pudesse tocar naquelas paredes de ferro escaldante e Tály parecia sentir algo.
— O que está fazendo?
Foi então que as lembranças dos dois se fundiram.
Após alguns anos de que Cassian e Helick se juntaram ao exército para treinarem com os soldados sob a tutela de Sam Haras, quatro plebeus desajustados haviam se alocado no mesmo setor que eles.
Dois meninos e duas meninas. Um deles já prestava serviço ao exército a muitos anos desde muito novo e seu nome era Redgar.
O outro, vindo das vielas de um vilarejo de fora das muralhas de Lyberion, antes assistente de ferreiro, hoje um soldado após o capitão da guarda real ver talento latente nele, Marco.
As outras duas garotas eram lindas e despertaram o interesse imediato em Cassian.
Uma com a pele branca e pálida de cabelos negros como rios de breu e olhos igualmente escuros como penumbra, Any. Mas por algum motivo, Cassian soube que não devia mexer com aquela adolescente. Algo nos olhos dela o dava um certo medo.
E por último, uma adolescente animada e empolgada com a chegada ao exército. De pele negra, cabelos trançados e de um corpo esculpido por anos trabalhando com minério, Tály.
Os traços de camponesa e a falta de etiqueta dizia o suficiente para Cassian que seria uma presa fácil. Afinal, todas as plebeias se derretiam todas na presença do príncipe herdeiro.
Porém suas investidas descaradas e insinuantes rendiam apenas boas risadas dos soldados que se divertiam com a audácia que Tály tinha ao recusar e fazer graça com a cara de Cassian durante meses e nunca ceder.
Em um dia de exercício em uma região de treino de sobrevivência e fortalecimento dos soldados no topo de uma pequena colina durante a noite Tály se via sozinha encarando um mapa do local e admirando o céu noturno daquela noite quente e estrelada. O príncipe se aproximou com passes calmos e sem pressa enquanto admirava a vista, mas seus olhos não estavam no céu.
Cassian a observava enquanto ela aparava com delicadeza as bordas do mapa, as mãos firmes e o olhar sereno. Havia algo em Tály que ele ainda não entendia, algo que o intrigava. Depois de um longo silêncio, ele perguntou:
— Tály… — a voz dele saiu baixa, quase hesitante — por que você é tão diferente das outras garotas do campo?
Ela parou o que estava fazendo. Seus olhos, escuros se voltaram para ele, não com surpresa, mas com a serenidade de quem já havia percebido aquela diferença por si própria.
— Porque eu cresci vendo o amor dos meus pais — respondeu com firmeza. — Não aquela coisa de contos ou promessas vazias… era real. O jeito como meu pai olha pra minha mãe… como ela se sente segura só de estar perto dele… aquilo é amor de verdade.
Cassian a fitava, sem interromper.
— Eu decidi que só me entregaria a alguém… — ela desviou os olhos, voltando a olhar o horizonte — …se um dia eu sentisse por ele o que minha mãe sente pelo meu pai.
Ele sorriu, pequeno, e quase num sussurro, disse:
— Então, nenhuma promessa de trono ou riqueza te compraria.
— Nunca — ela respondeu, sem hesitação. — Eu só quero dar uma vida digna aos meus pais… o resto é só barulho.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.