Índice de Capítulo

    Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
    Aspas duplas para conversa mental: “
    Travessão para falas em voz alta: —

    Mesmo após a longa conversa no quarto, um banho, a promessa e o jantar em família, Nytheris não conseguia se acalmar. Um peso invisível o oprimia. Na hora de dormir, ele abraçou Flügel e chorou sem parar.

    Flügel sentia-se impotente. Tudo o que podia fazer era deixá-lo chorar. A respiração irregular e quente de Nytheris queimava contra seu pescoço, e o aperto desesperado das mãos do familiar em sua camisa não cedia, nem mesmo em sono. De tempos em tempos, um soluço abafado sacudia todo o corpo de Nytheris.

    Ainda era início da noite, mas a desolação de Nytheris permanecia palpável, um manto pesado que se recusava a levantar. A culpa que Nytheris sentia era imensa, e Flügel percebia que isso se transformava em um fardo quase insuportável para ele mesmo. Nytheris não conseguia se dar um autoperdão, e essa verdade martelava a mente de Flügel.

    ‘Dependência emocional?’ Flügel ponderou, o olhar perdido no teto escuro. A pergunta não vinha carregada de acusação, mas de uma súbita e profunda curiosidade, quase um assombro, sobre a natureza daquele vínculo.

    ‘Ou seria algo mais intrínseco à própria natureza de um familiar, forjado a partir da mana do criador?’ A pergunta se aprofundava na mente de Flügel. Essa ideia não era nova, ele já suspeitava há algum tempo que a conexão deles ia além do comum. E, para ser sincero, a dependência era mútua. Por mais que desejasse que Nytheris fosse livre, Flügel se perguntava: ele realmente conseguiria imaginar sua vida sem o familiar?

    A resposta era clara e assustadora: ‘Eu não poderia viver sem ele.’ pensou admitindo a si mesmo.

    Flügel considerava que, sem Nytheris, provavelmente teria enlouquecido na infância, sem ninguém com quem se comunicar, sem alguém para conversar sobre sua vida passada. A mera lembrança daquela solidão o fazia estremecer.

    Mas a dependência de Nytheris era mais profunda, ia além de uma dependência emocional. Ele realmente dependia de Flügel para viver, para cada batida de sua existência. Sem a mana de seu criador, Nytheris não conseguiria se regenerar, não teria crescido, e muito menos se desenvolvido. 

    Em todos os sentidos, Flügel era a fonte de energia de Nytheris. Era como se ele fosse o próprio coração do familiar, e Nytheris nunca tivesse vivido verdadeiramente por si mesmo, com uma existência independente. A percepção dessa realidade o atingiu com uma clareza dolorosa.

    Todos esses pensamentos, somados à ansiedade do que estava por vir, roubaram o sono de Flügel. Contudo, a insônia rendeu muitas ideias. Ele queria o melhor para seu familiar, desejava que Nytheris tivesse seus próprios sonhos, sua própria vida, que experimentasse coisas por si só.

    ‘Eu o quero livre.’ Flügel ponderava, com um nó na garganta. ‘Quero que ele possa simplesmente passear pelas ruas, sem precisar da minha companhia constante só porque não pode ir longe sozinho. Que tipo de vida é essa? Uma gaiola, por mais dourada que seja?’ A imagem o assombrava.

    Sua mão se apertou levemente nas costas de seu familiar, que agora dormia calmamente. Nytheris estava mais relaxado, e Flügel descobriu que alimentá-lo com mana o fazia se sentir melhor. Ele não sabia o porquê daquele efeito, mas quando tentou, observou Nytheris relaxar devagar, até sua mente finalmente aceitar descansar nos braços de seu criador.

    ‘Nytheris está aprisionado.’ 

    A constatação atingiu Flügel como um soco no estômago, tirando-lhe o fôlego. ‘Ele provavelmente não me vê como uma prisão, mas a realidade é inegável: meu familiar está, de fato, incapaz de viver por conta própria.’

    E quando, horas atrás, Nytheris quase tirou esse único pilar de sua vida, algo dentro dele havia rachado. Flügel podia sentir isso, como uma fratura profunda na alma de seu familiar. Flügel sabia que não tinha tempo para resolver aquilo naquele momento, mas prometeu a si mesmo que, de alguma forma, tornaria Nytheris autossustentável.

    ‘É uma promessa que preciso cumprir, não só por ele, mas por mim também. Por nossa conexão.’ A urgência da tarefa martelava em sua mente.

    Ele tentou se convencer, mas a ideia o perturbava. De certa forma, a dependência de Nytheris trazia a Flügel um certo alívio egoísta. Ele tinha a absoluta certeza de que sempre teria seu familiar consigo, não importa a situação, Nytheris jamais o abandonaria. 

    Mas Flügel não achava justo. Nytheris tinha sentimentos: mesmo sem sentir fome ou sede, ele bebia e comia, se divertia e chorava. Ele era uma vida. Contudo, estava fadado a permanecer como a sombra de uma pessoa para sempre, seguindo Flügel para todos os lugares.

    Flügel decidiu que, nesta vida, agiria de forma diferente. Ele não priorizaria seus próprios sentimentos egoístas. Ele daria a Nytheris a liberdade que merecia, mesmo que a ideia fosse assustadora.

    A primeira de suas muitas ideias começou a tomar forma. ‘Preciso criar um artefato mágico, algo como uma bola de mana, que funcionaria como um núcleo de mana para Nytheris.’ 

    Flügel já sabia que todos os humanos possuíam um núcleo de mana não físico, responsável por absorver e gerenciar a energia no corpo. ‘Mas o que é exatamente esse núcleo?’ Essa pergunta o assolava há algum tempo. Por não ser físico, poucos estudos podiam ser feitos, e a informação sobre o assunto era escassa.

    A única certeza era que o núcleo humano podia evoluir. ‘Se o núcleo de mana é a chave para a absorção e gerenciamento, então um familiar também não poderia ter um?’, Flügel se perguntava. 

    Especulava-se que grandes magos possuíam núcleos altamente desenvolvidos, o que lhes permitia gastar menos mana, ter um desperdício quase nulo e usar vários elementos com mais facilidade. 

    ‘Se isso é verdade’, a ideia o assaltou, ‘a ideia de Nytheris ter o seu próprio núcleo ganha ainda mais força. Seria a sua própria fonte, o seu próprio “coração” mágico.’

    Flügel também havia lido que Lichs e aqueles que buscavam a imortalidade através da magia tentavam refinar seus núcleos de mana ao máximo. Diziam que isso lhes concederia maior longevidade ou até mesmo a capacidade de transcender o plano mortal. 

    As tentativas variavam: alguns assimilavam pedras mágicas, algo extremamente perigoso pois sobrecarregava os núcleos com mana, gerando um estresse enorme e o rompimento do núcleo de mana. Outros tentaram criar um núcleo artificial.

    Havia muitas outras formas, mas essas duas eram as mais tentadas. Contudo, foi a última possibilidade que realmente capturou o interesse de Flügel. ‘Um núcleo artificial…’ 

    O livro não explicava como eram criados, o que era frustrante, mas ao mesmo tempo fascinante! Isso abria um leque de infinitas possibilidades na mente de Flügel.

    ‘O problema é, como eu começaria isso? Vou ter que pesquisar muito… Eu tenho que saber e estudar sobre tantas coisas…’ Flügel fez mais uma anotação mental sobre suas responsabilidades urgentes, a lista continuava crescendo assustadoramente. 

    Seria difícil sem ter uma base sólida, mas ele estava certo de que algo do tipo seria possível. Neste mundo, tudo era possível. Ele encontraria um jeito. Não iria mais esperar que as coisas se resolvessem sozinhas.

    Ainda imerso em seu mar de pensamentos, Flügel só foi tirado do turbilhão mental por um feixe de luz tênue que começava a tingir o quarto. Primeiros raios de um vermelho alaranjado suave espreitavam pela janela, anunciando o despertar do sol em Tournand. 

    Lentamente, esses tons iriam se intensificar, ganhando um calor leve e pinceladas de um laranja mais vivo, varrendo as sombras noturnas. Já era de manhã, e ele tinha coisas a fazer.

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