Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 94 — Solidão Cinza
Elijah terminou de se vestir, a camisa branca e calças escuras pareciam sufocantes. As botas de couro, presentes de Aragi, faziam um som abafado no piso de madeira. A cada passo, ele sentia um peso, não nos pés, mas em sua mente, como se as regras do mundo que ele conhecia tivessem de repente se tornado claras e aterrorizantes.
Ele pegou sua mochila, o peso de seus livros e caderno, o cheiro de papel e tinta, tudo parecia estranhamente frágil e insignificante. A sua rotina diária, que antes era uma fonte de conforto e orgulho, agora se assemelhava a uma peça de teatro infantil.
Ele se olhou no espelho, a figura orgulhosa de um jovem promissor se refletindo, e a visão o deixou desconfortável. Aquela imagem, a de um estudante talentoso de esgrima e magia, pertencia a um mundo que não existia mais. Mesmo que seus cabelos continuassem estranhamente cinza, ele não se sentia bem como sempre. Seus olhos estavam vidrados em seus cabelos refletidos pelo espelho.
‘Porque eu tenho cabelos cinzas?’ Essa pergunta passou pela sua cabeça, não havia um único dia onde ele não pensasse sobre isso. Afinal, seu cabelo cinza sempre foi alvo de piadas e dúvidas. Nas favelas, as crianças diziam que sua mãe tinha traído seu pai, ou que ele era um filho adotado, pois nem seu pai e nem mãe possuem cabelos cinzas.
Ele fechou os olhos, a imagem do passado desaparecendo. O que doía mais do que as piadas era o mistério por trás daquilo. Ele era o único, e o sentimento de ser diferente, de não se encaixar completamente em sua própria família, era um fardo pesado de carregar.
Mael tinha cabelos castanhos escuros e Flügel tinha cabelos pretos, herdados dos pais. Ele, por outro lado, era diferente. Seus cabelos cinzas e olhos, cujas íris, com o tempo, pareciam absorver ainda mais a cor cinza, sempre foram uma anomalia em sua família. Uma anomalia que agora parecia ter uma nova e perigosa significância.
O que ele viu no jardim não foi apenas uma luta. Foi um vislumbre de um poder que ele não conseguia nomear, uma força que vibrou em um nível que ele mal podia compreender. O som do metal, o baque da espada de seu irmão contra a lança de Nytheris, tudo isso parecia ter ressoado com algo em seu próprio sangue, com algo que estava adormecido, esperando.
Elijah se virou do espelho, caminhando para a porta, estava na hora de ele ir para a academia. O corredor da casa parecia mais escuro, o silêncio mais profundo. O cheiro de café fresco e pão assado que vinha da cozinha era o único sinal de normalidade em um mundo que havia se tornado irreconhecível.
Ele desceu as escadas, sentindo o peso de seus próprios passos. O barulho da porta da frente abrindo ecoou pela casa, arrastado pelos passos metálicos contra o piso de madeira e as vozes de Flügel e Nytheris, arrastadas, baixas e cansadas. Eles haviam terminado seu treinamento e decidiram entrar.
Instintivamente Elijah mudou a sua rota, passou de pressa pela cozinha e saiu pela porta dos fundos, dando a volta na casa e chegando na rua. Evitando facilmente Flügel e Nytheris. Ele não estava com medo deles, longe disso, mas sim com inveja. Flügel era mais alto, mais forte, já ganhava dinheiro, e mesmo assim era mais novo que ele. Foi graças a ele que eles saíram das favelas, e voltaram a ter uma vida estável. Ele já tinha feito tanto, e continuaria em uma vida cheia de grandes feitos.
Não era como se ele tivesse alguma raiva ou rancor de Flügel, estava longe disso, mas ele sentia que deveria ser mais do que é. Ele gostava de heróis, ele queria tentar ser um herói para Flügel, mas o destino acabou decidindo que seria o contrário. Flügel caminhava em um caminho cheio de perigos, mas como um herói de verdade, ele superava todos eles e voltava com a glória em mãos. Era como ver um herói em ascensão,
Elijah queria ser forte o bastante para conseguir acompanhar seu irmão nessa sua jornada, ele também queria ser um herói. Ele também queria dar orgulho aos seus pais e irmãos.
O ar fresco da manhã foi um alívio temporário para o calor que subia pelo seu pescoço. A mochila em suas costas, pesada com livros e caderno, parecia o fardo de um caminho que ele não queria mais seguir. O caminho para a academia era familiar, uma rotina que ele tinha feito por anos, mas hoje, a paisagem parecia um lembrete cruel de sua própria pequenez. As conversas banais dos outros estudantes, o som de risos e passos, não importava onde ele ia, ele sempre se sentia deslocado.
Talvez fosse pelo seu cabelo de cor estranha que fazia a todos se afastarem dele, mas ele não tinha feito uma única amizade em todo o tempo que estava estudando na academia. Até mesmo nas favelas ele não tinha amigos, apenas brincava com as crianças por ser irmão de Mael. A solidão era uma companheira constante, uma parte silenciosa de seu ser que o seguia onde quer que fosse. A ambição de ser um bom mago sempre foi, em parte, uma forma de compensar essa ausência, de se provar digno de algo, já que não conseguia se provar digno de uma amizade.
Ele sentiu o peso do olhar dos outros sobre seu cabelo cinza, uma cor rara que era um mistério para a maioria das pessoas. Ele sempre se perguntou se o problema era dele. Por que era tão diferente? Por que seu destino parecia tão solitário? A resposta nunca vinha, apenas a amarga sensação de ser um estrangeiro em seu próprio mundo. Mas a dor do passado, as piadas e os sussurros, pareciam insignificantes agora, esmagadas sob o peso de uma nova e terrível verdade: o mundo não se importava com suas notas perfeitas ou seu talento em magia. A única coisa que importava era o poder.
O portão da academia surgiu à sua frente, imponente. Ele parou, observando os alunos entrarem, despreocupados com o mundo além dos muros de pedra. O som das espadas de treinamento chocando-se no pátio parecia oco, uma imitação barata da melodia de morte que ele havia ouvido minutos antes. O sorriso fácil nos rostos dos outros estudantes era um lembrete cruel da sua própria inadequação. Eles tinham amigos, eles tinham um lugar no mundo. Ele tinha apenas uma ambição que, ele sabia agora, era frágil e insuficiente.
Uma decisão silenciosa e gelada se formou em seu coração. A inveja que ele sentia não era para oprimir seu irmão, mas para se impulsionar. Ele precisava de mais do que a academia podia lhe dar. Ele precisava de uma transformação completa. Ele precisava encontrar uma forma de caminhar lado a lado com Flügel, não atrás dele, mas ao lado. Ele não queria mais ser o irmão que assiste. Ele queria ser o herói que luta.
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