A chuva continuava a despencar no horizonte, mas agora suas nuvens cediam espaço para que a Lua derramasse sua luz prateada sobre Porto Alegre.

    Dentro de uma tenda improvisada, montada próxima ao prédio em ruínas, seis figuras imponentes se reuniam em torno de uma mesa metálica. No centro dela, um pequeno dispositivo projetava um mapa holográfico detalhado da cidade.

    A atmosfera dentro da barraca era tensa, mostrava a inquietação e urgência de todos presentes ali.

    O silêncio era duradouro, até Lila rompê-lo. sua voz calma ecoando sob o tecido da lona iluminada por lâmpadas amarelas.

    — Desculpem a demora… — disse ela, colocando uma das mãos sobre o aparelho que exibia o mapa. Seus cabelos negros caídos sobre os ombros, e seus olhos escuros refletiam a luz dourada, como se o fogo dançasse na superfície de suas pupilas. — Mas quem quer que seja esse tal de Seprus… sabe como não ser detectado. Nos outros esconderijos, conseguimos rastrear facilmente por causa das movimentações externas, sinais de entrada e saída dos edifícios. Mas no caso desse aqui, não havia nada. Era como se eles nunca tivessem posto os pés tanto fora quanto dentro do prédio.

    Kael estreitou os olhos, analisando atentamente as marcações no holograma.

    — Teletransporte. — disse ele, convicto.

    Arin arregalou os olhos, seu sorriso habitual desaparecendo por um instante.

    — Você acha mesmo que é isso…? — murmurou, agora claramente inquieta. — Não tem chances de ser algum túnel subterrâneo ou algo do tipo? Fora Áurea e a OPKM, não existe nenhuma outra organização no mundo com tecnologia suficiente para ter um teletransportador.

    — Ainda mais considerando que o teletransporte tanto de Áurea quanto da OPKM leva um tempo considerável e cobre uma distância bem curta. — complementou Mira.

    Kael negou levemente com a cabeça. Seu olhar nem ao menos se movia, como se estivesse atravessando a própria lembrança do momento em que Louie foi sequestrado.

    — Quando Louie foi levado… aconteceu algo estranho. Eu não os vi sumirem, mas o espaço ao redor daquele ponto ficou… distorcido. Alterado de um jeito que eu nunca tinha visto antes. Como se algo simplesmente abandonasse o próprio conceito de espaço e desaparecesse do tecido da realidade.

    O grupo se entreolhou, sem entender exatamente o que Kael queria dizer.

    — Sei que pode parecer complicado do jeito que eu expliquei, mas o que eu estou querendo dizer é que não foi um teletransporte comum. E principalmente… não veio de um aparelho. Veio de um poder Kaelum. — Seu olhar permaneceu firme. — E, de acordo com o que Louie disse, esse tal de Seprus anda sempre com uma menina de olhos roxos, com quem ele queria se encontrar. Considerando a reação do Louie, ela pode até ter alguma ligação com o massacre do Colégio Península. Infelizmente ele não conseguiu explicar melhor o que aconteceu porque ficou inconsciente durante o sequestro.

    — Acho que entendi… mas de que tipo de poder estamos falando? — questionou Jax, cruzando os braços, a expressão séria. — Talvez um poder de Elemento Figurado que permita manipular o espaço?

    Mira, examinando um tablet de análise, respondeu enquanto deslizava os dedos pela tela.

    — Acredito que seja isso mesmo, Jax. Um poder Figurado é o que melhor se encaixa. Mas se não só o espaço foi mexido, e as moléculas também foram afetadas… pode ser algo do campo dos Elementos Atômicos. Por mais que eu ache essa alternativa bem difícil de engolir. — Seus olhos se moviam rápidos, analisando a tela. — O registro mais próximo disso que eu encontrei no sistema era o de Ryusei, um dos Decastellum da OPKM.

    Ela fez uma breve pausa, lendo atentamente as informações.

    — O poder dele é um caso especial. É um único poder Místico, mas originado de duas divindades diferentes: o deus Susanoo e a serpente de oito cabeças Yamata no Orochi. — Com o dedo indicador e o polegar, ela deu um pequeno zoom em um amontoado de dados. — Entre suas habilidades, existe uma em que ele pode cortar através do eixo da realidade. Um corte capaz de separar matéria, energia e tempo.

    Ela respirou fundo antes de continuar.

    — Mas o poder do Seprus, não pode ser algo assim. O que Ryusei faz é chamado de fratura ontológica. Tudo o que é atingido por esse tipo de corte simplesmente deixa de existir no mesmo espaço, não há fenda ou deslocamento, apenas o fim do que foi tocado.

    Agora, tirando os olhos da tela, ela olhou diretamente para Kael.

    — Mas… talvez o poder possa ser uma variação, algo capaz de criar uma fenda espacial de outra forma…

    Kael balançou a cabeça em negação.

    — Não. Lá não havia sinais de fenda espacial alguma. Era mais como se o espaço simplesmente sentisse falta de algo que existia ali antes… algo que foi arrancado de forma repentina.

    — Não saber das habilidades dele nos coloca em desvantagem, mas em compensação eles muito provavelmente não sabem da nossa também. — comentou Zara, sua voz calma, embora seus dedos se mexiam inquietos. — Bom… não tem muito mais o que falar sobre isso, nosso foco agora é Emi. Precisamos encontrá-la, custe o que custar. Então Lila… onde está a terceira base deles…?

    Lila inspirou fundo antes de responder.

    — Infelizmente, extrair informações dos membros deles, que eu capturei no primeiro prédio, onde Nina estava, foi impossível. O protocolo de autoeliminação era ativado sempre que tentavam revelar algo importante, mas usando os mesmos meios que usei para encontrar o primeiro edifício, eu consegui encontrar o de Louie, com base na movimentação estranha aos redores. — Ela fez uma breve pausa, antes de apontar uma área no mapa. — Ainda assim, como eu havia dito antes, não seria possível usar esse meio para encontrar Emi, afinal estamos enfrentando alguém que não precisa se mover para entrar ou sair de onde está. Porém… analisando todo o arredor desse prédio em ruínas, eu encontrei um pequeno rastro de sangue. Acredito que seja de Gorthok, que Louie mencionou… o traço era relativamente curto, mas considerando o estado em que ele estava, ele não ia fazer um caminho com grandes desvios, assim consegui a direção.

    Ela olhou nos olhos de cada um dos presentes antes de continuar:

    — Aí foi fácil ter uma noção, não importa o quanto Porto Alegre seja grande, as opções podiam ser contadas nos dedos. Então, após verificar de longe para não correr risco de ser percebida, cheguei a um resultado.

    Por um momento, o silêncio reinou na tenda.

    — A terceira base da Sacrificium Sanguínis e, onde Emi está aprisionada é… O esqueletão.

    O nome do local ecoou pela tenda.

    Kael cruzou os braços, seu olhar já estava decidido.

    — Então é pra lá que nós vamos.

    Lila voltou o olhar para Kael, a expressão firme.

    — Certo… Já enviei um pedido oficial ao governo para evacuar um raio de dez quilômetros ao redor do edifício com a desculpa de um ataque terrorista para os cidadãos. — disse ela, apontando um ponto no mapa. — Aliás, foi graças à cooperação deles que conseguimos abafar os acontecimentos deste prédio em ruínas. A mídia divulgou como um simples colapso estrutural causado pelo tempo e pela negligência.

    Kael assentiu lentamente.

    — E quanto à cela feita com aquele material estranho? A que o Louie mencionou?

    — Já enviamos pra Áurea. — respondeu Zara, certeira. — A equipe de pesquisa vai analisar assim que o pacote chegar. Talvez consigam identificar a origem… ou a composição daquele material.

    — Ótimo… — murmurou Kael, sua voz baixa, mas cheia de ansiedade. — Então… acho que já enrolamos de mais, tá na hora de agir!

    O grupo se entreolhou por um instante.

    Todos sabiam o que estava em jogo.

    A caçada havia começado.

    Mas ninguém sabia quem realmente caçava, e quem estava prestes a ser caçado…


    Enquanto isso, na zona norte de Porto Alegre, o prédio Esqueletão permanecia tão debilitado quanto sempre. Exceto por algumas paredes novas quebradas, nada ali parecia muito diferente… pelo menos a primeira vista…

    Na mesma sala de comando, Sethros estava sentado casualmente.

    Porém, diferente de antes, não sentava em uma cadeira, e sim sobre o corpo mutilado de Gorthok. Um trono horrendo feito de ossos, carne e entranhas.

    O estiloso moicano vermelho do ex-subordinado, antes vivo como fogo, agora apenas brasas, apagadas pelo sangue.

    Seu olho rosa, antes cheio de vida, agora se mantinha aberto, mas em um completo vazio.

    Ao seu redor, o chão era como um quadro de arte macabro e desumano, com pinturas reais do fígado, costelas, tripas, entre outros diversos órgãos de Vorgath, que haviam sido retirados com precisão absurda.

    Sethros, mexendo novamente no pequeno curativo intacto em sua testa, suspirou.

    — Porra… Mas que saco. — murmurou, apoiando o queixo na mão, o cotovelo encostado no joelho dobrado. Seu corpo não apresentava nem mesmo um pequeno arranhão. Muito menos algum sinal de cansaço ou esforço, apenas um tédio sem fim.

    — Eu lembrava dele ser mais forte, mas na verdade ele era fraco pra caralho. — continuou, lançando um olhar de desprezo para o cadáver. — A Sacrificium Sanguinis deveria investir em alguns peões minimamente decentes. Mesmo que desde o início houvesse uma diferença brutal entre nós, me repulsa ver como eles falham. Mas eu já deveria esperar isso de falhas ambulantes. Eles eram completamente descartáveis. Eles tiveram sorte de viver até onde viveram, afinal, após serem erros como cobaia, nem deveriam existir. Em pensar que já chamei pessoas tão inúteis assim como irmãos… chega a me dar nojo.

    Sethros olhou para cima, o teto em destroços, o céu nublado era pouco visível por entre as pequenas rachaduras na parede.

    Seus olhos rosados pareciam sentir falta de algo… talvez uma lembrança? Um sentimento? Ou um pequeno fragmento vindo de um passado, hoje distorcido, onde talvez ele tenha sido feliz…

    — Bom… fazer o quê. — murmurou, pegando o corpo de Gorthok pela gola da regata que usava. — Espero que Áurea não demore tanto… já tô com tédio de novo.

    E então, o silêncio voltou a dominar todo Esqueletão, exceto pelo som lento de sangue escorrendo.


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    FRAGMENTO HISTÓRICO 3:

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    ⟬ ARQUIVO DE ESTÁGIO 1 — Nº 002 ⟭

               Diário pessoal — Observações

            Autor: Marek Aurellum — Ano XL após a morte de Cristo.

    (Documento confidencial. Extraído dos registros centrais da OPKM.)

    Originalmente compilado por Marek Aurellum no quadragésimo ano após a morte de Cristo, como parte da obra “Crônica de Um Poder que Não Compreendo”.

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    Eu, Marek Aurellum, terei enfim meu primeiro dia como vigiles, uma posição que sonho alcançar desde há muito tempo. E, quando enfim admitido, minha primeira missão é investigar as origens mais profundas dos rumores que têm surgido ultimamente.

    Compreendo que seja meu batismo, mas confesso suspeitar que me confiaram essa tarefa apenas para acalmar a população e dar a impressão de que se importam com as denúncias acerca do chamado “Homem da Tempestade”, a suposta figura que caminhava dentro do ciclone.

    Mas por que justamente eu? Não haveria outra forma de demonstrar atenção às denúncias da população, ao invés de me enviar atrás de algo que claramente foi exagerado a cada relato contado e recontado pelas pessoas?

    Mesmo assim, independentemente de minha vontade, partirei para a missão. Terei que interrogar os habitantes das colinas próximas às fazendas destruídas, ouvir os aldeões ao redor e visitar o portuário, a fim de verificar se é verdade que todas as propriedades destruídas pertencem aos membros de um antigo grupo de navegadores, algo que, convenhamos, soa como mera história para boi dormir.

    Irei atualizando estas anotações à medida que cumpro os objetivos.

    Assinado, Marek Aurellum

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              ⟬ FIM DO FRAGMENTO ⟭

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