Durante a semana que se seguiu, o palácio de Lyberion tornou-se um centro de atividades frenéticas. Os preparativos para o Despertar de Cassian eram grandiosos. Tendas foram erguidas nos jardins do palácio para receber dignitários de todo o continente. Tapeçarias luxuosas e arranjos florais decoravam cada corredor e salão, simbolizando a nova fase que o reino estava prestes a entrar.

    Na noite anterior ao Despertar, o palácio estava mais agitado do que nunca. Preparativos finais estavam sendo feitos, e os corredores estavam cheios de servos correndo para garantir que tudo estivesse perfeito.

    Foi nessa noite que o anão, conhecido como Leonardrick o Forjador Obsessivo, da Guilda Centelha Ardente, chegou ao palácio. A carruagem que o trouxe era uma visão incomum: menor e mais robusta do que as carruagens humanas, era puxada por dois grandes javalis de montaria, animais fortes e resistentes, perfeitos para as montanhas onde os anões viviam.

    Quando a carruagem parou diante dos portões dourados do palácio, Leonardrick desceu com agilidade surpreendente para alguém de sua estatura. Ele era baixo e andava apressadamente, com ombros largos e braços musculosos. Sua barba cobria todo seu rosto e se emendava com seu cabelo marrom e com o peito peludo exposto atrás de um avental de forja, e seus olhos brilhavam com empolgação.

    Sam estava à espera, ciente da importância da chegada de Leonardrick para os preparativos do Despertar de Cassian.

    O anão era o Chefe-Ancião da guilda Centelha Ardente, uma das quatro grandes guildas do povo anão, conhecida por ser especialista na forja de ARGUEMs com prazos de entrega curtíssimos.

     As outras três eram: Machado e Elixir, conhecida por fazer variadas poções, indo das simples poções de vigor tradicional até mesmo poções para falar com os mortos.

    A guilda da Forja Ancestral, onde os melhores equipamentos de armaduras e acessórios mágicos eram confeccionados.

    E a última, que alguns nem mesmo mencionam por desprezo: a guilda da Fornalha Proibida. Os reinos de Ossuia e Lyberion possuíam leis rigorosas quanto a quem pode e quem não pode despertar um ARGUEM, na qual os anões deveriam obedecer. Porém na guilda da Fornalha Proibida eles eram especializados na fabricação de ARGUEMs clandestinos, onde atendiam quem pagasse mais, ignorando as leis. Os integrantes desta guilda também eram procurados como criminosos, o que tornava o acesso a seus serviços uma coisa bem difícil de ser feita.

    O capitão da guarda real de Lyberion se aproximou e cumprimentou o anão com um aceno respeitoso.

    — Lorde Leonardrick, é um prazer recebê-lo em Lyberion — disse Sam, estendendo a mão.

    — O prazer é meu, Capitão — respondeu Leonardrick com uma voz ansiosa e agitada, apertando a mão de Sam fervorosamente. — Ouvi falar muito do jovem príncipe. Estou deveras ansioso para ver o que a magia do príncipe, combinada com o Diamante Negro resultará. Um arco? Um escudo? Não, não, pela fama de sua personalidade rebelde, aposto meu martelo particular que será uma espada ou lança! Ou quem sabe algo que junte as duas coisas?!

    Sam deu uma leve tosse quando percebeu que o anão havia se perdido em seus pensamentos e já falava mais consigo mesmo do que com o capitão.

    — Então, vamos a forja? Quero mostrar onde o senhor trabalhará após a cerimônia — chamou Sam indicando um caminho pelos corredores.

    Enquanto caminhavam, os servos olhavam curiosos para o anão, que ignorava os olhares, concentrado em sua obsessão por ver que tipo de magia ele lidaria em breve.

    Em alguns andares mais acima do palácio de ouro, no quarto de Cassian, os dois príncipes se encontravam. O quarto estava limpo e arejado, as servas haviam limpado os moveis de madeira nobre castanhos e trocado a roupa da cama do príncipe herdeiro momentos antes dele chegar.

    Cassian, por outro lado, estava completamente bêbado e fora de si enquanto vomitava pela janela do quarto, direto no jardim abaixo. Seu rosto estava pálido e os olhos avermelhados e com olheiras de quem não dormia a dias.

    — O que é isso, Cass? — indagou Helick ajudando seu irmão a tirar a cara da janela. — Amanhã já é o dia do seu despertar e você se encontra nesse estado? Tem doze horas que você saiu e as histórias sobre sua visita as Bar de Ciscer já estão se espalhando por aí.

    — E… E daí? — retrucou Cassian aos soluços. — E ca… Cala essa bo… Boca. — A voz do herdeiro distorcida pelo álcool. — Eu tô aproveitando meus últimos dias de vida e o álcool é o que tá me ajudando a não entrar em colapso com isso tudo. E também não posso me esquecer das mulheres. Irmão, você tem que ir naquele segundo andar um dia.

    — Ao menos conseguiu completar uma frase agora — falou Helick ignorando o comentário do irmão e o entregando um lenço para limpar o rosto. — Cass, isso é importante. Se você fizer algo de errado na hora de passar sua magia para o Diamante Negro você pode ficar sem um ARGUEM pra sempre!

    — Boa ideia, não tinha pensado nisso — debochou Cassian.

    Helick pegou um jarro de água fria que estava na escrivaninha de Cassian e jogou o líquido com força na cara do irmão.

    — Hey! — gritou Cassian com a cara encharcada, seus cabelos castanhos curtos caindo sobre seus olhos com o peso da água. ­— Isso era necessário, Helys?

    — Olha Cass, se você realmente não quer fazer isso, eu posso…

    — Nem pensar! — cortou Cassian enxugando o rosto com o lenço. — Nem complete essa frase, Helys.

    Um silêncio breve pairou no ar e Cassian removeu a camisa que um dia já havia sido branca, mas agora estava em uma coloração repugnante pelos refluxos do príncipe.

    — Você não veio aqui atoa — falou Cassian se sentando na cama, ao que parecia sua tonteira tinha passando um pouco após ter a cabeça molhada.

    — Eu preciso da sua ajuda irmão — cochichou Helick se sentando na cadeira da escrivaninha e ficando na frente de Cassian. — Desde que eu voltei da biblioteca, fico horas andando pra cima e pra baixo nesse lugar e mesmo assim não achei nenhuma pintura que pudesse clarear as coisas com relação ao ataque, a assassina ou as joias das nossas adagas.

    — Se contasse a Sam ele poderia te ajudar. — Cassian cochichou de volta. — Não sei porque guardou segredo disso e logo com ele que é seu ídolo.

    — É difícil explicar. Algo me diz que isso é algo que nós dois temos q descobrir.

    — Nem vem. — Falou Cassian, em alto e bom tom, indo em direção ao cômodo ao lado onde os servos haviam preparado um banho quente assim que souberam da volta do príncipe ao palácio. — Eu vou aproveitar ao máximo essas últimas horas, vou só me limpar e voltar pro Bar. É sério, antes de você se envolver de verdade com alguém — Cassian deu uma pequena ênfase de ironia no “alguém” — você TEM que ir naquele lugar.

    Ao ver que Cassian realmente não ajudaria nas buscas, Helick virou as costas e saiu do quarto do irmão.

    Any e Marco, que montavam guarda na frente do quarto de Cassian, cumprimentaram Helick quando o viram, com uma leve reverência.

    Helick retribuiu o comprimento e seguiu pelos corredores. Tály e Redgar não estavam o acompanhando nos últimos dias. Eles estavam incumbidos de monitorar os arredores do palácio durante toda a semana da preparação da cerimônia de Cassian, já que eles eram os únicos que haviam entrado em contato com a mulher misteriosa.

    Ao que parecia Sam ainda não havia falado nada para o rei sobre o ataque da mulher e ele permitiu que Helick ficasse sem guarda enquanto permanecesse dentro do palácio.

    Helick tinha uma estranha sensação de que ele deveria encontrar algo nas paredes pintadas. Era algo mais complexo do que ele podia explicar. Era como se ele tivesse certeza que tinha algo para ser descoberto.

    Ele foi mais uma vez para o hall de entrada do palácio. O local era grandioso, com um tapete vermelho circular que cobria grande parte do piso e mais para frente, duas escadarias de ouro curvadas que levavam ao segundo andar.

    As paredes circulares do hall haviam pinturas de Helisyx, o primeiro rei, ainda na sua época de escravo, descobrindo uma mina cheia de minerais negros e cristalinos.

    A parede pintada contava a descoberta da primeira mina de Diamante Negro da história. O príncipe já havia visto aquela imagem milhares de vezes ao longo de toda a sua vida, mas, de alguma forma, Helick, sentia algo diferente dessa vez. Ele sentiu que conforme seus olhos percorriam as gravuras eternizadas nas paredes de ouro, uma voz interior o guiava e decifrava o que elas queriam dizer.

    Logo após a descoberta, Helisyx por acidente fez sua centelha mágica emergir e uma lasca do tamanho de um punho do mineral que estava solta no chão absorveu a mana que muitos achavam que os humanos nem possuíam.

    Seguindo o conto nas paredes, Helick agora estava indo em direção ao corredor a esquerda, a história se seguia de forma contínua nos túneis que levavam ao jardim. O desenho mostrava o senhor de Helisyx, um anão, vendo a cena do mineral absorvendo mana e ficando deslumbrado com o que via.

    Na última parte do túnel antes de chegar nos jardins do palácio, estavam registrados o anão trabalhando no metal de forma que ele se tornou uma brilhante espada negra azulada.

    O corredor chegou ao fim e Helick encontrou-se nos jardins sob um céu estrelado, brilhando intensamente à luz do luar.

    As paredes estavam cobertas de trepadeiras que tamparam qualquer que fosse a história contada ali, mas por instinto Helick olhou para o chão.

    Por baixo de raízes e terra ele percebeu pequenos traços de desenho sob seus pés. O príncipe correu pelo palácio até alcançar o andar mais alto com vista para o chão do jardim.

    De cima, ele pode ver uma pintura da Deusa Terramara, a Mãe Terra, a primeira humana que teve sua imortalidade tirada quando enganou Dungrim, o Deus Anão da Criação Celestial ao fazê-lo criar um homem para ela.

    A imagem retratava o momento exato em que a imortalidade da Deusa foi retirada. Helick não fazia ideia de como sabia que momento era aquele, mas de alguma forma, ele sabia.

    A imagem estava em sua maioria coberta e dificultava a visualização de Helick, até que ele sentiu seus olhos queimarem. Ele tentava fechar os olhos, mas não conseguia, algo estava forçando seus olhos permanecerem abertos e fixos no pátio do jardim.

    Seus olhos ardiam como se enxofre houvesse sido derramado em suas pupilas. O príncipe podia sentir as veias de seus olhos pulsando, à beira de explodirem, mas, de repente, uma suavidade pairou e ele pode ver o chão do jardim como se fosse no dia em que o pintor tinha o finalizado.

    A imagem de Terramara com seus cabelos de rios, olhos de florestas e pele de terra de braços abertos enquanto recebia a maldição de Dungrim ficou clara. Helick visualizou a cena por completo e viu as feições de Dungrim envolta de raiva e ciúme enquanto a mulher sorria alegre recebendo a maldição. Atrás dela, Terrano, o primeiro homem, se ajoelhava perante os deuses a sua frente, os olhos fervorosos testemunhavam o conflito de duas divindades.

    Das palmas das mãos do casal que enfrentava a ira do Deus Celestial, surgiram duas sementes de mana condessada, uma de cada um. A de Terramara era azul, um azul tão claro que beirava o branco. A de Terrano era vermelha e alaranjada como o fogo.

    Em baixo da imagem estava uma parte de um cântico que dizia: “Suas bençãos que não podiam ser tomadas e nem roubadas, apenas de boa vontade dadas.”

    A visão cessou e Helick voltou a si, os olhos lacrimejando. O jovem olhou para baixo de novo, mas só via o solo coberto de terra e raízes.

    Mesmo após a visão algo ainda apertava o peito do jovem príncipe, ele ainda precisa ver mais, descobrir mais.

    Seus pensamentos foram invadidos por uma força que ele não sabia de onde vinha e então tudo ao seu redor ficou branco.

    Ele não estava mais no topo do palácio de Lyberion. Ele estava em um local sem nada. Completamente branco.

    A única coisa que havia ali era uma aura tão azul que chegava próxima do branco. A aura sussurrou uma voz feminina nos ouvidos de Helick que falou:

    “O restante não está aqui.”

    A voz lembrava a de uma mulher adulta.

    “Vá para Ossuia.”

    O ambiente ao redor se transformou em um grandioso salão, com um lustre de diamantes dourados, que pendia do centro do teto. As paredes do local eram vermelhas como sangue, com quadros, espelhos e flâmulas penduradas em hastes negras.

    Helick reconheceu o brasão estampado na flâmula. Era O Lobo Alado Sangrento, o símbolo de Ossuia.

    “De pressa.”

    Repentinamente, o príncipe estava de volta ao palácio dourado. Nenhum sussurro ou intuição estranha falou novamente.

    — Mas que merda foi essa? — indagou Helick em voz alta para si mesmo.

    Nota