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Capítulo 151 — O céu não é mais o limite
Há muitos anos, na cidade da Muralha Externa, duas crianças corriam pelas ruas estreitas, desviando-se dos CSRs que cruzavam o asfalto quente.
Uma delas, de cabelo curto e preto, pele clara e olhar travesso, liderava a corrida com risadas soltas. A outra, mais morena, de cabelos lisos e expressão concentrada, perseguia o amigo de perto.
— Não vai escapar pra sempre, Kroask!
— Se continuar lento desse jeito, vou sim, Morgan!
Kroask se meteu numa viela estreita, atravessada por varais cheios de roupas que balançavam ao vento, escondendo sua silhueta. Morgan se apressou atrás dele, mas quase perdeu o fôlego ao bater contra as costas do amigo, que havia parado de repente.
— Ei! O que foi? — perguntou, ofegante.
Kroask não respondeu. Estava imóvel, com os olhos presos ao alto. Morgan seguiu seu olhar — e também ficou em silêncio.
Dois jovens, quase adultos, voavam acima dos telhados. Brincavam em um pega-pega aéreo, rasante e veloz, que parecia zombar de todas as corridas no chão. A luz do sol refletia em seus ARGUEMs, deixando rastros cintilantes no céu.
— Isso é… demais! — Kroask murmurou, a voz embargada pela fascinação. Seus olhos brilhavam como se guardassem uma promessa.
— É mesmo — Morgan respondeu, sem tirar o olhar do espetáculo.
— Mal posso esperar pra despertar meu ARGUEM! Eu sei que vou voar. Eu sinto isso, Morgan, é como se… fosse meu destino!
Morgan suspirou e cruzou os braços, tentando puxar o amigo de volta à realidade.
— Calma aí Kroask, se eu fosse você não me iludia com isso. Você sabe que não é assim que funciona, as habilidades dos ARGUEM são aleatórias e também tem a questão da probabilidade de nós não termos um Armamento. Infelizmente não somos Lyberianos e nossas chances de ter mana em Ossuia são de 40/60.
Kroask virou-se para ele com um sorriso obstinado.
— Então ainda temos uma chance, né?
Morgan baixou os olhos, sem saber como responder. Mas ao ver que os dois jovens já haviam desaparecido no horizonte, apenas deu um leve tapinha no ombro do amigo e sorriu.
— Você é o pega agora.
E, como se o céu não tivesse mudado nada dentro deles, voltaram a correr e rir pelas ruas empoeiradas.
Mas para Kroask, nada seria igual. O olhar dele jamais desceria do alto outra vez.
Alguns anos depois, quando a juventude de ambos já se aproximava dos vinte, chegou a época que mudava destinos: o Dia da Centelha, quando uma equipe da Guilda da Centelha Ardente era enviada para despertar aqueles que haviam obtido mana.
Na Muralha Externa, esse dia era aguardado com uma mistura de esperança e temor. Famílias inteiras se reuniam, vestidos com suas melhores roupas, por mais simples que fossem. Crianças corriam entre as pernas dos adultos, sem compreenderem totalmente a importância do momento, enquanto os mais velhos observavam em silêncio, com olhos ansiosos.
A praça central fora transformada para a ocasião. Entre cabanas improvisadas e tendas robustas erguidas especialmente para o evento, bandeirolas de pano vermelho marcavam o território da guilda. O brasão da Centelha Ardente tremulava nos mastros, refletindo a luz do sol poente. O ar estava carregado com o cheiro de carvão queimado e óleo, vindos das forjas móveis que os anões haviam montado ao redor. O som metálico dos martelos, mesmo distante, ressoava como um lembrete constante: o grande dia havia chegado.
No centro da praça, em um pedestal de pedra negra, repousava o Diamante Negro, preso em garras de aço runado. Sua superfície irregular captava a luz de forma estranha, faiscando como se respirasse, como se tivesse vida própria. Cada pessoa que se aproximava para tocá-lo parecia engolida pelo silêncio reverente da multidão.
E as estatísticas eram implacáveis. A cada dez, apenas quatro ou menos conseguiam fazer a pedra reagir, fazendo-a brilhar com um lampejo azulado antes de ser recolhida e levada às oficinas. Para os que falhavam, restava apenas o peso da decepção e o olhar compadecido dos familiares. O murmúrio que se espalhava era sempre o mesmo: “Não despertou… mais um sem mana.”
Morgan e Kroask estavam entre os que aguardavam, misturados à multidão. Não haviam sentido nada de especial até então, mas a esperança ainda pulsava, teimosa, em seus peitos. Afinal, sempre havia casos, raros, mas possíveis, de pessoas que só despertavam no contato direto com o Diamante. E, naquele dia, tudo poderia mudar.
A fila avançava lentamente, cada passo acompanhado do suspense coletivo da multidão. Alguns eram aplaudidos quando o Diamante reagia, iluminando-se com um clarão breve. Outros, saíam cabisbaixos, soterrados em silêncio ou nos olhares de pena.
Quando chamaram o próximo nome, Kroask sentiu o coração disparar. Seu corpo inteiro parecia vibrar em descompasso com os gritos e cochichos ao redor. Morgan estava logo atrás, a mão firme em seu ombro, a única âncora em meio àquele mar de incerteza.
Não havia família esperando, não havia mães ansiosas nem pais orgulhosos. Apenas dois órfãos que só podiam se apoiar um no outro.
Enquanto avançava para o pedestal, a mente de Kroask não parava de repetir uma verdade amarga: já sou órfão de pais… a vida não pode ser cruel o bastante para me tornar órfão da mana também.
O anão responsável fez um gesto curto, indicando que era a vez dele. Kroask respirou fundo. O Diamante Negro cintilava à sua frente, envolto pelas garras metálicas. A pedra parecia pulsar, quase como se zombasse dele, testando sua coragem.
Engolindo o nó na garganta, ele ergueu a mão. Cada passo até a pedra parecia ecoar na praça, abafando murmúrios, silenciando o burburinho. Todos observavam.
A superfície do Diamante Negro era gélida sob seus dedos. Kroask concentrou-se, tentou chamar de dentro de si qualquer fagulha, qualquer calor, qualquer indício de poder.
Nada.
Um segundo passou. Depois outro. A multidão murmurava baixo, como um vento cruel. A pedra permaneceu morta, opaca, indiferente ao seu esforço.
Kroask tentou de novo, o maxilar travado, a respiração pesada, os olhos ardendo. Ainda assim, o Diamante nada devolveu. O silêncio se transformou em sentença.
O anão suspirou, acostumado demais a ver sonhos se quebrarem.
— Próximo.
Kroask baixou a mão lentamente. Cada passo de volta à fila parecia pesar como uma derrota insuportável. Morgan o encarou, os olhos carregados de compaixão, mas não disse nada. Não havia palavras que pudessem apagar aquela cicatriz.
Naquele instante, Kroask não era apenas órfão de pais. Era também órfão da mana.
— Próximo! — repetiu o anão, a voz seca e impaciente.
Morgan lançou um último olhar para Kroask, que permanecia imóvel, sufocado pelo próprio silêncio. Sem esperar mais, caminhou até o pedestal. Seus passos não tinham a tensão dos outros jovens, apenas uma pressa discreta, quase resignada.
Ele nunca cultivara ilusões. Sempre encarara as estatísticas como um muro intransponível, e nunca sentira dentro de si aquele chamado misterioso que muitos descreviam antes de despertar. Morgan queria apenas que fosse rápido, para poder voltar ao lado do amigo que tanto sonhara com aquele momento.
Colocou a mão sobre o Diamante Negro.
E então, contra todas as expectativas, contra tudo o que ele mesmo acreditava, a pedra reagiu.
Primeiro um lampejo tímido, como uma brasa sufocada sob cinzas. Depois, de súbito, um clarão intenso, profundo, que explodiu em ondas azuladas. O brilho se espalhou pelo pedestal, refletindo nos olhos de todos ao redor. Um murmúrio coletivo percorreu a praça, crescendo até se tornar um clamor.
— Ele… conseguiu!
— Mais um despertou!
O anão ergueu as sobrancelhas, surpreso. Recolheu o Diamante com respeito, assentindo diante de Morgan como quem reconhece um novo iniciado.
Morgan, atônito, piscava diante da luz que ainda reverberava em seus olhos. Não havia alegria, apenas um choque quase desconfortável. Ele nunca desejara aquilo.
Atrás, Kroask assistia em silêncio, cada segundo gravado como ferro em sua memória. O clarão iluminava o rosto do amigo, mas em sua mente era uma lâmina cortando fundo. Morgan, que nunca sonhara, agora brilhava. E ele, o sonhador, havia sido deixado na escuridão.
Por lei, todos aqueles cujo Diamante Negro reagia eram imediatamente convocados. Assim que recebessem seus ARGUEMs, eram enviados ao exército ossuiano para aprender a dominar suas habilidades e serem avaliados para alocação em uma das muralhas da cidade.
Foi assim que Morgan desapareceu da vida de Kroask. Não houve despedida longa, apenas o brilho azulado que se apagou da praça e, em seguida, o amigo levado pelos anões, arrastado para um destino ao qual nunca aspirara. Kroask ficou para trás, com a ausência queimando em seu peito
Mas, embora sozinho, ele não deixou de sonhar. Se não tinha mana, buscaria outro caminho.
Passou a rondar discretamente as ruas próximas ao Departamento de Pesquisa e Estratégia. Vasculhava lixeiras e depósitos abandonados, recolhendo rascunhos descartados, fragmentos de anotações e esquemas rejeitados. Entre papéis manchados de óleo e páginas rasgadas, Kroask encontrava pequenas centelhas de lógica e ciência.
No silêncio de noites mal iluminadas, estudava cada palavra, rabiscava diagramas, fazia cálculos que nem sempre compreendia por completo. Mas não desistia. Nunca desistia.
Meses depois, com peças enferrujadas e fios reaproveitados, construiu seu primeiro protótipo de exoesqueleto. A engenhoca rangeu, cuspiu fumaça e, ao ser ligada, lançou uma descarga elétrica que quase queimou seu braço. Kroask caiu no chão, ofegante, a pele chamuscada, mas com um sorriso obstinado no rosto.
Ele levantou-se e voltou a trabalhar.
Com o tempo, rumores sobre o jovem da Muralha Externa que desafiava sua condição se espalharam. O próprio Departamento de Pesquisa e Estratégia tentou recrutá-lo, vendo nele um talento raro, mas Kroask recusou todas as ofertas.
— Não sou cientista. — dizia, o olhar fixo no horizonte. — Eu vou me tornar um dos maiores guerreiros de Ossuia. E um dia… os céus não serão mais o limite para mim.

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