Helick estava de volta ao seu quarto, agora sem a armadura de treino, vestindo apenas uma blusa branca e calças pretas. Após um dia exaustivo de treinamento, estudos e um longo banho quente, o jovem se dirigiu à sua estante repleta de livros e escolheu um volume de capa escura e páginas amareladas com o tempo.

    Ele podia optar por se jogar na enorme cama com lençóis perfeitamente organizados, cercada por cortinas de seda no centro do espaçoso quarto arejado, ou se acomodar em seu lugar favorito: a janela sem grades, com vista direta para os jardins do palácio.

    Os olhos de Helick vagavam entre as letras impressas no papel antigo e os lindos olhos esmeraldas de uma certa jardineira, enquanto ela trabalhava colhendo frutas e arando a terra. O príncipe deslizou a mão em um dos bolsos de sua calça e retirou uma maçã — não uma maçã qualquer, mas aquela que Nastya lhe entregara naquela mesma manhã.

    A paz e o sossego de Helick cessaram quando ele ouviu a porta de seu quarto se abrir e Cassian entrar com um sorriso malicioso no rosto.

    — O que você está fazendo? — perguntou Helick fechando o livro que estava em seu colo e mordendo a maçã. — Não bate mais na porta?

    — Calma aí maninho, geralmente as pessoas trancam as portas para não ser incomodadas, vi que estava aberta e só entrei — respondeu Cassian com aquele sorriso ainda no rosto.

    — Ela estava trancada, Cass — respondeu Helick.

    Cassian apenas deu de ombros.

    — Não pareceu.

    O irmão mais velho foi se aproximando mais de onde Helick estava e se encostou na parede ao lado da janela, em frente ao irmão.

    — O que você está fazendo, Helys? — Perguntou Cassian com uma ironia sutil. — Está lendo o livro de como realizar o Ritual do Despertar ou está espiando Nastya no serviço de jardinagem?

    Helick se levantou se desvencilhando do irmão e guardando o livro na estante.

    — Deixa de ser paranoico, é obvio o que eu estava fazendo.

    — Sim, realmente. Mas espiar Nastya não vai te ajudar a empunhar um ARGUEM — provocou Cassian desviando de uma investida que seu irmão tentara.— Helys, ainda faltam dois anos pra você ter que fazer o ritual, não entendo porque fica tão focado nisso.

    — O nome disso é compromisso e responsabilidade, conhece? — Indagou Helick erguendo uma sobrancelha.

    Helick olhou para o irmão e enfim reparou nas vestes que ele usava. Um sobretudo vermelho que descia até a altura dos joelhos de Cassian, com espirais prateadas nas proximidades do centro da veste, que estava levemente aberta, revelando uma blusa preta com linhas de prata cheia de detalhes, igualmente espirais. A calça de linho preto seguia reta conforme ia se estreitando até os tornozelos de Cassian que não apareciam por causa do sapato preto lustroso com uma fivela de prata.

    — Já está próximo das vinte e três horas, isso não me parece roupas de quem está prestes a se recolher. Não, já sei! Você está indo até a biblioteca da cidade para pegar um livro e se preparar pra seu ritual que acontecerá em questão de meses?

    — Há, ha, há — respondeu Cassian fingindo uma risada bem ruim. — Boa piada Helys. Nem sei pra que você se preocupa tanto, é só ir lá, se concentrar, fazer a centelha mágica emergir e colocar no Diamante Negro e entregar para um anão forjar. Pronto.

    — É simples, né? — Caçoou Helick — Faz sua centelha mágica emergir aí rapidão, só pra eu ver o quão simples é.

    O silêncio de Cassian respondeu o que Helick imaginava, seu irmão estava nem um pouco preparado pro ritual que aconteceria em breve.

    — Cass, sério, os Armamentos de Guerra Mágicos… — começou Helick tentando colocar juízo na cabeça do irmão.

    — ARGUEM, — interrompeu Cassian — é mais fácil.

    — Enfim, o ARGUEM só pode ser obtido uma vez, sendo que toda nossa magia humana fica armazenada neles, ou seja, quando despertarmos nossos armamentos eles serão nossas armas pelo resto da vida.

    — Tanto faz Helys, não estou aqui pra falar desses assuntos desinteressantes. — Falou Cassian enquanto ia em direção ao guarda-roupas do irmão.

    — A biblioteca foi só uma piada mesmo, mas, sinceramente, você está vestido bem de mais pra quem recebeu ordens diretas do nosso pai, o rei, para não sair esta noite, e eu tenho a plena certeza que você não vai desobedece-lo e ir à celebração sem permissão.

    — Sim você está certo. Eu não vou pra celebração sem permissão — ponderou Cassian tentando parecer sério. — Nós iremos!

    Cassian tirou do guarda-roupas do irmão um conjunto com uma blusa de couro de leonzir branca, adornada com vários botões centrais; cada botão possuía cordões paralelos que lembravam laços bem fechados e apertados, e em seus detalhes, linhas prateadas refletiam a luz. A calça, que lembrava a de Cassian, era branca, e os sapatos eram pretos, com sola fina de couro.

    — Ah, mas como eu odeio essa roupa. — Falou Cassian ao lembrar que inicialmente esse conjunto era pra ter sido dele, porém ele recusou já que o calor e o cheiro selvagem da besta mítica que era o brasão do reino o lembravam do fardo que ele um dia iria herdar.

    — Você só pode estar brincando — falou Helick. — Perdeu a cabeça? Nosso pai facilmente nos mandaria pra treinar no Deserto dos Exilados como punição.

    — Irmão! Onde está sua devoção pela Mãe Terra? — começou Cassian dramatizando. — Somos os príncipes e herdeiros de Lyberion! Devemos estar na farra desde o primeiro segundo para mostrarmos nossa devoção!

    — Farra? — perguntou Helick.

    — Farra? Quem disse farra? Eu disse celebração!

    Por mais inconsequente que Cassian fosse Helick não pode deixar de rir. O príncipe mais novo se recostou na janela novamente e olhou pela varanda, mas não tinha mais ninguém lá embaixo.

    — Aonde você pensa que ela foi?

    Essas palavras, combinadas com o sorriso irônico de Cassian, foram suficientes para que Helick pegasse as roupas da mão do irmão e se preparasse para desobedecer o rei.

    O banquete em celebração à Mãe Terra estava ocorrendo na praça central, a alguns quilômetros do palácio, no coração do Reino.

     Os irmãos não utilizaram carruagens; afinal, teoricamente, eles já deveriam estar em seus aposentos.

    O rei de Lyberion, Aquiles Havilfort, encarregou o Capitão da Guarda Real de treinar seus filhos desde os cinco anos de idade. Esse treinamento não apenas aprimorava a magia humana, mas também desenvolvia habilidades de furtividade.

    Embora os príncipes raramente saiam do palácio, quando o faziam, utilizavam o que aprenderam para se esgueirar pelas sombras e telhados da cidade, evitando serem notados pelos guardas presentes no grande evento, tanto para garantir sua segurança quanto para manter seu sigilo.

    Os irmãos conseguiram chegar aos limites do palácio sem serem detectados. O exterior estava bem vigiado, com um guarda a cada vinte e cinco metros, cobrindo toda a área ao redor da construção dourada.

    — Lembra de quando a gente foi no cais a três anos? — Perguntou Helick.

    Cassian olhou para o irmão sorrindo.

    — Sim, a gente passou pelos melhores guardas do reino com dezesseis anos, quatorze no seu caso.

    O sorriso de Cassian passou para Helick.

    — Isso por que queríamos seguir Sam para defender as fronteiras dos exilados.

    No dia lembrado eles conseguiram passar pelas mais bem treinadas sentinelas liberianas. Sam os percebeu e os fez voltar para o palácio e deu um grandioso sermão nas sentinelas.

    O rei os repreendeu por terem tentado sair sem permissão, ainda mais para um campo de batalha, mas logo ele se viu elogiando os filhos, por terem dominado técnicas de décadas de treinamento em poucos anos.

    — Desde então você não saiu mais as escondidas — disse Cassian.

    — Não que você saiba.

    Os dois riram.

    Essa noite não seria diferente.

    Em um momento os irmãos estavam relembrando o passado, e em outro, já se esgueiravam pelas sombras que a noite, que agora reinava, fornecia.

    Seus passos silenciosos, calmos e tranquilos; não denunciava para as sentinelas que os dois príncipes estavam saindo de fininho.

    Para conseguir sair do palácio e acessar a rua principal, os irmãos tinham que passar por quatro sentinelas que vigiavam o caminho.

    Eles chegaram até o limite das sombras. A lua se movendo no céu, lentamente mudando onde havia luz e sombras. Os irmãos pacientemente esperaram até que a sombra na qual eles espreitavam ficasse maior e chegasse à rua principal.

    O caminho eles já tinham, mas os guardas não eram cegos, eles não podiam simplesmente andar para frente, então, Helick assoviou uma vez, bem alto. Quando as sentinelas olharam para trás, Cassian já havia aproveitado o pequeno segundo de distração e passou pelo ponto cego nas costas dos guardas, e com velocidade surpreendente, ele já estava na rua principal.

    O príncipe mais velho se ocultou nas sombras novamente e escalou agilmente a primeira casa do quarteirão.

    Poucos segundos se passaram e Helick estava a seu lado.

    Passando pelos tetos de laje e telha das casas luxuosas ao redor do palácio, os irmãos se aproximaram da grande festividade.

    Cada entrada havia um guarda, até mesmo por cima dos telhados.

    Os irmãos conseguiam saber que aqueles não seriam tão fáceis de distrair só de observar a postura dos homens: mão na espada, lança, escudo ou qual quer que fosse a arma que pendia na lateral de cada soldado.

    — E qual é a ideia pra eles? — Perguntou Cassian. — A velha estratégia do assovio não vai funcionar.

    Helick olhou para a última fileira de casas que circundavam a praça principal, soldados no chão e nos telhados. Os do chão espadachins e lanceiros e escudeiros. Os dos telhados, arqueiros.

    — Ser discreto e sorrateiro — começou Helick. — Não podemos ser vistos por nem um deles, caso contrário eles podem nos pegar em menos de um segundo com aqueles ARGUEM’s.

    Cassian também analisou a situação com frieza.

    — Vamos pelos telhados.

    — Eles irão nos ver — retrucou Helick.

    Cassian viu em um telhado duas caixas de madeira grandes, talvez de mantimentos, ou bens. Não interessava, o importante era que poderia servir de cobertura.

    — Vamos nos manter ocultos por traz das caixas do telhado daquela casa — apontou Cassian para as duas caixas em cima da residência, uma em cada canto do telhado.

    A casa era grande o suficiente para que as sentinelas no chão não conseguissem velos. Porém haviam dois arqueiros no topo vigiando cada canto nos arredores.

    — O plano é nós dois conseguirmos escalar sem sermos vistos e nos ocultar por traz das duas caixas.

    Helick assentiu.

    Eram dois arqueiros, por mais que quisessem não poderiam ver os quatro cantos simultaneamente.

    Com velocidade e reflexos felinos os irmãos saltaram do telhado de onde estavam agachados e se puseram a escalar a casa mais alta pelas quinas das paredes. Sempre que um dos arqueiros chegava na lateral na qual eles estavam eles se deslocavam pela quina e iam para a parede desprotegida.

    Em menos de um minuto eles já estavam no topo, se esgueirando nas sombras das caixas de madeira.

    Eles só tinham que esperar que os dois arqueiros se alinhassem no lado contrário ao da praça e poderiam saltar direto para a enorme festa.

    Mas não foi tão fácil assim.

    Um dos arqueiros ergueu a mão em sinal de alerta, Helick conseguiu ver a cena olhando entre um buraco na madeira da caixa.

    Os dois arqueiros tensionaram os arcos prateados e se moveram em direção as caixas, Helick e Cassian se entreolharam uma vez, então se prepararam.

    Uma das sentinelas com arco se aproximou de onde Helick estava, com a flecha pronta. Mais um passo e o guarda veria o príncipe e o entregaria ao rei sem sombras de dúvidas.

    Com uma agilidade muito acima da média, Helick estendeu o braço e puxou o arco com toda a força, fazendo o arqueiro perder o equilíbrio e, logo após, com um chute no calcanhar do soldado o fez cair violentamente no chão com um estrondo.

    O segundo arqueiro se virou para o lado de onde o barulho vinha, e em menos de um segundo Cassian já o havia apagado com um golpe na nuca.

    — Isso foi fácil demais — disse Cassian balançando a cabeça em sinal de desapontamento.

    Helick olhou para os homens desmaiados no chão. Não reconhecia nenhum dos dois, mesmo tendo passado bastante tempo treinando nos salões do exército com o Capitão Haras.

    — Chegou a ser estranho — admitiu Helick.

    Os olhos dos jovens se iluminaram quando se viraram para a praça. Luzes amarelas saiam das fogueiras gigantes, várias barracas de vendas circundavam a fonte que ficava no meio da praça. O cheiro de carne recém assada enchia suas narinas, junto com um forte cheiro cítrico vindos de inúmeros sucos de inúmeras frutas.

    A música alegre e festeira estava presente em todo o ambiente, vinda de bardos que cantavam:

    “No ventre fértil da Terra, Terramara surgiu,

    Mãe primordial, de vida e amor do barro emergiu.

    A seus cabelos de rios e olhos de floresta,

    nós celebramos com essa grande festa.

    Com suas bênçãos que não podem ser jamais roubadas ou furtadas,

    mas apenas com boa vontade dadas.

    Dois deuses a amaram e com sua beleza seus corações pulsavam,

    e se fizeram carne e as raças foram criadas.

    Mas foi o Deus criador, com seu poder nato,

    pelos sábios planos da Mãe teve seus atos manipulados.

    Com uma falsa promessa de amor, Dungrim ela convenceu, e assim o primeiro homem, Terrano, nasceu.

    Com suas bênçãos que não podem ser jamais roubadas ou furtadas,

    mas apenas com boa vontade dadas.

    Enganado, o Deus da criação se irou

    e a magia dos humanos Dungrim retirou.

    Mas por isso a Mãe não se abalou

    e seu novo companheiro e seus filhos ela amou.

    Com suas bênçãos que não podem ser jamais roubadas ou furtadas,

    mas apenas com boa vontade dadas.

    Aceita nosso cântico, nossa prece, nossa devoção,

    à Deusa da Terra, à Mãe da Criação.”

    E assim a grande celebração à Deusa Terramara havia começado.

    Nota