Capítulo 4 – Recuperação
por Felipe BahiaO hall do palácio, iluminado por candelabros dourados e ecoando o som dos passos apressados dos servos, estava impregnado de uma tensão palpável. O rei, com as vestes reais reluzindo sob a luz das tochas, aguardava com um olhar furioso, enquanto os príncipes feridos se aproximavam. O brilho do mármore polido refletia a urgência da situação. Com o calor da batalha se dissipando, a dor que tomava conta do braço quebrado de Cassian e das costelas de Helick aumentava a cada minuto.
— O que vocês tinham na cabeça? — esbravejou o rei quando eles chegaram ao palácio.
— A gente achou que seria só uma festa como é todo ano, pai. — Se explicou Cassian. — Não tinha como saber que alguém ia atacar o reino. Isso, afinal, nunca aconteceu, pelo que eu sei.
— Vocês foram instruídos a permanecer no palácio até o meio-dia, por ordem direta minha — vociferou o rei, a voz reverberando nas paredes de pedra. — Mas decidiram desafiar minha autoridade, saíram no meio da noite e quase morreram por causa de sua desobediência.
O olhar do rei era um misto de decepção e alívio ao ver seus filhos de volta ao lar, ainda que feridos.
— Pai, — começou Helick — compreendemos sua indignação e peço perdão pelas nossas ações, que foram de fato irresponsáveis. Mas só queríamos aproveitar um pouco a festa sem ter toda aquela atuação política que temos todo ano.
O olhar de decepção do rei se destacou ainda mais quando ouviu as palavras de Helick.
— O que é isso? Tenho dois Cassian’s na minha frente? Logo você, que sempre foi o mais responsável, inteligente e interessado nos assuntos do reino, decidiu ir nas ideias de seu irmão mais velho? Eu sempre achei que você poderia pôr juízo na cabeça dele, mas pelo que vejo, ele é quem está tirando o juízo da sua.
A discussão foi interrompida quando Sam e Agnus entraram no hall do palácio.
Agnus estava com uma armadura de couro, e Sam, com sua tradicional armadura prateada do exército lyberiano.
— Irmão, acho que seria melhor se mandássemos eles logo para a enfermaria — falou Agnus.
— Não. Deixe-os sentirem um pouco mais de dor para aprenderem a não desobedecer a uma ordem direta — respondeu o rei. — Relatório, capitão.
— O ataque foi coordenado por seis indivíduos desconhecidos até o momento — começou Sam após receber permissão para falar. — O alvo foi a fonte que ficava no centro da praça. A explosão provavelmente foi causada por um ARGUEM, já que não há restos de explosivos.
— A pergunta aqui é: como eles passaram pela revista rigorosa que estava sendo feita nos portões do reino e na entrada da praça? — indagou Agnus. — Pensei que você havia posicionado as melhores sentinelas para a segurança do evento, capitão — cutucou Agnus, quase cuspindo ao dizer o cargo de Sam.
— Antes de entrarmos na praça — começou Cassian —, nocauteamos duas sentinelas que estavam no telhado da casa mais alta em frente à celebração.
O rei olhou para o filho mais velho.
— E isso é hora de se vangloriar? — perguntou Aquiles.
— Não, não é isso pai — interrompeu Helick. — Quando eles estavam desacordados nós olhamos bem para o rosto deles e não os reconhecemos.
— Impossível — respondeu Sam. — Eram Mylon e Brucer, vocês os conheceram na academia de treinamento militar.
— Não, não eram — respondeu Helick. — Nunca vimos aqueles dois homens.
— Então eles podem ter se infiltrado em meio aos soldados para criar brechas na fiscalização. — Concluiu Agnus.
— Mas porquê? — Se indagou Agnus — Atacar Lyberion na maior celebração do reino é um ato de guerra. Quem iria querer isso?
— Ninguém — respondeu Cassian sussurrando. — A não ser que estivessem desesperados por algo.
— O que quer dizer com isso príncipe? — perguntou Sam percebendo que o jovem havia decifrado algo.
— Quando eu estava procurando Helys depois da explosão, cheguei a ter contato visual com a cratera que se formou no chão. De lá saíram três homens sem armadura, e eles pareciam estar contentes, como se a missão tivesse sido cumprida. Havia algo por baixo da fonte, e esse algo valia o risco de guerra com Lyberion.
Todos olharam impressionados para a linha de raciocínio de Cassian com um ar de “pela Mãe! Ele pensa?!”
— Devemos descobrir o que eles estavam procurando e acharam o mais rápido possível —afirmou Agnus. — E aliás uma pergunta ainda mais importante, quem eles eram?
— Essa resposta pode ser a causa de uma guerra entre os humanos, algo jamais visto antes — falou o rei Aquiles com ar de preocupação. — Já tem suas ordens capitão. Descubra quem eles eram, a que reino obedeciam e o que queriam.
— Com toda certeza majestade — falou Sam se retirando para cumprir as ordens.
— Agora vocês dois — falou Agnus para os sobrinhos. — Direto pra enfermaria.
A ala hospitalar dentro do palácio era vastamente equipada, com uma entrada majestosa, decorada com mármore polido, candelabros dourados e tapetes de seda que amorteciam os passos dos guardas. À entrada, sentinelas, discretamente posicionadas, garantiam a segurança dos príncipes, vigilantes contra qualquer possível ameaça remanescente.
O cômodo era dividido em vários quartos espaçosos e bem iluminados, com vista para o belíssimo jardim. Camas com dossel, lençóis de seda e travesseiros de penas proporcionavam o conforto devido para os príncipes.
Ao entrarem no local um homem gritou:
— Os príncipes chegaram!
Imediatamente dez homens vestindo branco se aproximaram dos jovens e começaram a examina-los.
— O osso do braço esquerdo está totalmente trincado, as juntas estão permanentemente danificadas, impossível restauração por meio de cirurgia, necessário intervenção mágica de alto nível — analisou um dos curandeiros ao examinar o braço de Cassian.
— Costelas e coluna danificadas, é possível restauração com magia de cura de nível intermediário — falou outro ao bater os olhos em Helick.
— Saiam de cima deles imediatamente! – falou uma voz feminina imponente por de trás daquela pequena multidão. — Deixem isso comigo.
Os curandeiros que estavam desesperados para atender os príncipes de repente fecharam o semblante e se afastaram.
— Lady Silva, o príncipe Helick teve ferimentos mais leves que podemos tratar com nossos ARGUEM’s e conhecimento médico — falou um dos homens.
— A troca de que Willian? — argumentou a mulher rispidamente. — Semanas de recuperação e fisioterapia? Apenas vão até a cozinha e ordenem o preparo de um banquete.
Quando os homens se dispersaram, os príncipes puderam ver a Chefe dos Curandeiros de Lyberion.
Ela estava com o peso do corpo apoiado na perna esquerda, enquanto ajustava os óculos retangulares no rosto.
Os olhos de Cassian brilharam quando viu a mulher. Karine Silva era uma nobre com a magia de cura mais poderosa do reino, mas não era isso que fazia os olhos de Cassian brilharem. Karine possuía longos cabelos pretos e lisos, amarrados em um rabo de cavalo que chegava à sua cintura. Seus olhos negros, levemente puxados por detrás dos óculos retangulares, brilhavam com as luzes do ambiente.
Seu corpo, com curvas, fazia a imaginação de Cassian ferver.
— Aí está, — cochichou Cassian para Helick — a única parte boa de se machucar gravemente nesse reino.
— Eu estou te ouvindo, príncipe — falou Karine levantando uma sobrancelha.
Cassian apenas respondeu com um sorriso que faria qualquer jovem donzela do reino cair a seus pés, o que não era o caso de Karine, em seus 30 anos.
A mulher puxou de seu rabo de cavalo uma agulha longa e fina, que prendia seu cabelo.
— Magia de cura — murmurou Karine, com uma voz que misturava autoridade e suavidade. — Reconstrução Celular.
Com um movimento preciso, ela lançou a agulha na testa de Cassian. Ele grunhiu de dor, mas logo uma aura verde o envolveu, transformando a agonia em alívio enquanto seus ossos e músculos se regeneravam diante dos olhos atentos dos presentes.
Quando cada ferida e sangramento cessou Karine retirou a agulha da testa de Cassian e a lançou na de Helick.
Os efeitos se repetiram e em poucos instantes ambos os príncipes estavam recuperados.
— Como se sentem? — perguntou a nobre.
Um ronco ensurdecedor veio das barrigas dos príncipes que responderam:
— Com fome, muita fome!
No mesmo momento os curandeiros que haviam sido despachados por Karine traziam uma mesa com rodinhas em suas pernas repleta de carne, vinho e frutas.
— O que é isso? —perguntou o curandeiro Willian.
— Você é novo, não é? — respondeu outro curandeiro que havia permanecido no local. — O ARGUEM de Karine acelera o metabolismo do alvo fazendo com que sua produção celular acelere em milhões de vezes, assim o próprio corpo se cura recriando tecidos, músculos e até ossos de forma acelerada. Mas há um efeito colateral. Toda e qualquer reserva de energia que a pessoa curada tenha é esgotada no processo. Resultando numa urgência imediata de se alimentar para terminar o processo de cura.
— E se a pessoa não se alimentar? — Perguntou Willian.
— Ela morre.
Karine refez o rabo de cavalo em seu cabelo o prendendo novamente com o ARGUEM.
— Meu trabalho aqui está feito.
— Espera, — pediu Helick enquanto mordia um pedaço de carne — você sabe onde estão sendo tratados as pessoas que foram feitas de prisioneiras?
— Algumas estão sendo tratadas em postos de cura na praça, os nobres no templo de cura e os servos que trabalham no palácio estão sendo tratados na torre dos criados — respondeu Karine. — E sim, ela está na torre.
Helick corou quando a curandeira antecipou sua próxima pergunta.
— Obrigado.
Karine apenas deu um sorriso e seguiu, provavelmente para o templo de cura para cuidar dos outros nobres.
Após se empanturrar no banquete e receber o aval dos curandeiros, que permaneceram para o caso de algo dar errado com os príncipes, Helick dirigiu-se de imediato à Torre dos Criados.
Com a sensação de urgência ainda pulsando em suas veias, ele percorreu o vasto e majestoso palácio, um verdadeiro labirinto de corredores e câmaras. A construção, onde residiam a família real e os criados, parecia uma pequena cidade situada na parte norte do reino.
No centro do pátio do castelo, erguia-se imponente a Torre dos Criados, com suas pedras prateadas reluzindo à luz do sol nascente. A torre, com seus inúmeros andares, parecia tocar o céu. Um fluxo constante de pessoas entrava e saía do primeiro andar, buscando tratamento para seus ferimentos. Carregavam curativos e bolsas de ervas medicinais, movendo-se com propósito e uma urgência silenciosa.
Alguns cidadãos feridos tentaram se ajoelhar ao avistarem Helick Havillfort se aproximando, mas ele rapidamente os impediu, sua voz firme, mas gentil.
— Vocês não trabalham no Palácio, achei que estariam sendo tratados na praça — disse Helick, ajudando um idoso a se levantar.
— O capitão da guarda convenceu o rei a deixar o excesso de pessoas com ferimentos não graves serem atendidos na torre — respondeu o idoso, seus olhos brilhando de gratidão. — Desde que ele assumiu como capitão há dez anos, a vida para nós, que não somos nobres, tem melhorado muito.
Uma mulher com um curativo em um olho acenou em concordância, suas palavras ecoando as do idoso.
— Desde que ele assumiu como capitão, a vida para nós que não somos nobres tem melhorado muito.
De dentro da Torre, uma curandeira por volta dos seus 45 anos, com cabelos marrons grisalhos presos sob uma touca, surgiu, enxugando o suor da pele bronzeada.
— Feryn! — chamou Helick enquanto se despedia dos aldeões. — Como está Nastya?
A curandeira removeu a touca, revelando seus cabelos ligeiramente despenteados, e esboçou um sorriso cansado, mas sincero.
— Minha filha está bem, graças a vossa ajuda, meu príncipe. Muito obrigada.
— Posso vê-la? — perguntou Helick, sua voz carregada de determinação e preocupação.
As paredes da Torre dos Criados eram feitas de pedra, conferindo ao local uma tonalidade cinza opaca e uma sensação de robustez e solidez. No primeiro andar, estavam os casos mais leves, em leitos improvisados, enquanto curandeiros se moviam rapidamente, atendendo aos feridos. O salão de entrada da torre, embora não fosse tão grande comparado ao resto do palácio, era consideravelmente maior do que se esperava de um local destinado aos criados, o que evidenciava a importância da saúde e bem-estar de todos os residentes do palácio.
Nastya estava descansando em um quarto no terceiro dos sete andares da construção. Helick subiu as escadas de pedra com passos determinados, cada passo ecoando no corredor silencioso. Ao entrar no quarto, encontrou a jovem desacordada, repousando em uma cama simples, mas confortável.
— Tem certeza de que ela está bem? — perguntou o príncipe, seus olhos analisando a pele normalmente bronzeada de Nastya, agora pálida.
— Não se preocupe, ela só está cansada. Foi uma experiência assustadora; tanto o corpo quanto a mente devem estar exaustos — respondeu Feryn, tentando manter a voz calma e tranquilizadora.
— Se precisar de qualquer coisa, pode contar comigo e com todos os curandeiros de primeira linha do palácio — afirmou Helick, sua voz cheia de sinceridade.
Feryn sorriu, um sorriso grato que iluminou seu rosto cansado.
O dia que era pra ser de celebração, virou um dia de dor, de dúvidas e de medo. Porque alguém faria um ataque ao maior reino humano, deixaria centenas de feridos e simplesmente iria embora depois?
Não se passava mais nada além disso na mente do capitão da guarda real. Sam passou o dia investigando e interrogando as pessoas presentes na celebração, principalmente as que foram feitas de refém. Qualquer sussurro ou sotaque diferente que ajudasse a identificar quem haviam sido os covardes.
Sam tinha um palpite. Antes de ser morto, o homem do machado havia o chamado pelo título que Sam conseguiu no campo de batalha a muito tempo atrás.
“O Olho da Tormenta.”
Embora esse título houvesse se espalhado por todo o continente, a forma como aquele homem urrou de ira levava Sam a ter duas hipóteses. A primeira, mais tranquila, seria que se tratava de um grupo de terroristas isolados, ansiosos por chamar a atenção com um ataque audacioso. Se fosse esse o caso, Sam sabia que poderia lidar com a situação de forma direta e eficiente, eliminando cada membro do grupo com a precisão de um caçador experiente.
A segunda hipótese, no entanto, era muito mais preocupante. Se aquele homem fazia parte de uma força oficial de outro reino, o ataque poderia ser apenas o começo de algo muito maior.
O dia passou e a noite logo chegou.
Sam havia tentado adquirir informações durante o dia e seu retorno foi quase nulo. Porém havia um lugar em Lyberion onde se uma informação existe, ela está lá.
O Bar de Ciscer.
Sam retornou a seus aposentos que ficava na área militar nas proximidades do palácio. Como capitão da guarda real ele tinha direito a um quarto dentro do palácio, mas o capitão recusou. O olhar sínico e ar de superioridade dos nobres para com ele, não fazia a ideia de morar no palácio atrativa.
Após o banho gelado naquela noite quente Sam não foi se deitar. Não. Ele precisava de informação antes de conseguir fechar os olhos, e Sam estava ciente que precisava de um relatório para o rei o mais rápido possível.
Então ele foi até seu armário de roupas e escolheu uma roupa diferente de sua habitual armadura prateada.
Para sua visita ao Bar de Ciscer, o Capitão Sam Haras optou por um traje que combinava elegância com discrição. Ele vestiu uma camisa de linho branco, levemente aberta no pescoço, revelando sua pele clara e atlética. Sobreposta, uma jaqueta de couro marrom escuro, com detalhes sutis de entalhe, adicionando um toque de sofisticação. Suas calças de tecido preto, ajustadas, complementadas por botas de couro da mesma cor, que conferem um ar de autoridade e praticidade. Sam completou o visual com um cinto discreto e uma capa simples, pendendo elegantemente de seus ombros, pronta para ser retirada se necessário. Esta combinação permitiria que Sam se misturasse à atmosfera do bar sem comprometer sua presença como capitão da guarda real e desviava a atenção da espada que pendia ao lado de seu corpo.
Montando um dos vários cavalos dos estábulos do exército, Sam se encaminhou para mais uma missão.