Após devorar o banquete e se recuperar totalmente, Cassian se encaminhava para seus aposentos quando foi abordado por dois soldados.

    — Any, Marco! Há quanto tempo — cumprimentou Cassian.

    — Sim, — respondeu Marco — deve ter uns dois anos que não nos vemos, desde que você e o príncipe Helick pararam de treinar com o exército.

    Marco era um jovem de 25 anos, apresentável, com um corte militar e a clássica armadura prateada lyberiana. Os olhos de Cassian brilharam ao ver a espada embainhada ao lado do corpo do antigo companheiro de treinos.

    — Opa, espera aí, isso daí é o que eu estou pensando? — perguntou Cassian, empolgado.

    — Sim, eu consegui — falou Marco com um sorriso. — Passei no teste da lei do merecimento militar e, mesmo sendo um plebeu, obtive o direito de despertar meu ARGUEM.

    — Que bom! Sabia que você ia conseguir! Dá para contar nos dedos de uma mão quantos plebeus tiveram essa honra. Você entrou para a história, Marco.

    — Ah, para com isso — riu Marco, sem jeito.

    — E você, Any? — perguntou Cassian, reduzindo um pouco a empolgação na voz, dando lugar a um pouco de cautela.

    Any era uma jovem mulher de 26 anos, com pele pálida, lábios vermelho sangue e olhos verdes opacos. Seus cabelos lisos e longos, que iam até o meio das costas, pareciam engolir a luz com sua cor negra profunda.

    Any era uma das mulheres mais lindas que Cassian já havia visto, mas pela sua história ele jamais ousou pensar em tentar algo com ela, tanto por respeito quanto por medo. Any também era um soldado do reino, mas, diferente dos demais, usava apenas o peitoral da armadura de Lyberion, que cobria somente o peito esquerdo com a marca do reino, um leão rugindo, e por baixo um sobretudo prateado.

    — Ainda estou viva — respondeu ela por fim. — Como deve imaginar, não viemos apenas dar um oi.

    Marco também ficou sério.

    — Estamos a serviço do rei — falou Marco. — Ele exigiu a Sam que selecionasse soldados para sua escolta a partir de hoje até segunda ordem.

    — Escolta?! — exclamou Cassian. — Como assim?

    — Depois dos acontecimentos de hoje, ele não ia deixar passar que vocês desobedeceram a uma ordem direta. A partir de hoje, nossa missão é te seguir para onde quer que você vá, e relatar cada passo seu ao rei — completou Marco.

    — Mas nem ferrando! — gritou Cassian. — Falta menos de um ano para que eu tenha que passar pelo ritual do despertar e meu pai já me deixou ciente de que, quando eu completar 20 anos e tiver um ARGUEM, serei obrigado a assumir as minhas responsabilidades políticas com o reino.

    — E? — falou Any franzindo a testa, a indiferença franca em sua voz.

    — E aí que eu vou aproveitar esse ano como nunca. Não dá pra ter vocês na minha cola; isso iria acabar com minhas saidinhas noturnas, se é que me entendem — concluiu Cassian, dando uma piscadinha.

    — Cassian, o reino acabou de ser atacado e pode ter gente por aí querendo te sequestrar, e você pensa em saidinhas? — perguntou Marco. — Você não muda mesmo.

    — Tanto faz o que você quer fazer e o horário que você quer fazer — falou Any, sem a menor gota de empatia. — Recebemos ordens, e a partir do momento que ela foi dada, ela se tornou meu propósito. Iremos com você onde quer que vá, você gostando ou não, príncipe.

    Cassian fechou o rosto em um misto de revolta e fúria, pisando forte em direção aos seus aposentos enquanto os dois soldados o acompanhavam.

    O capitão da guarda real Sam Haras cavalgou pelas ruas de pedra branca do reino enquanto se dirigia para o Bar de Ciscer. Após quase vinte e quatro horas do ataque, já havia sido confirmado que nenhum ferido chegou a falecer e todos já estavam fora de risco. Quem quer que atacou o reino não tinha a intenção de ferir os cidadãos de Lyberion.

    Com a informação que ninguém havia morrido as pessoas se acalmaram e atribuíram a benção de zero mortes a Deusa Terramara que os guardou do ataque.

    Sam chegou até a porta de um casarão onde havia uma placa suspensa com a escrita: Bar de Ciscer.

    Pelos contos antigos, Ciscer havia sido uma mulher humana escrava de uma família élfica. Sua beleza que competia até mesmo com a beleza imortal das elfas fez a companheira de seu senhor a invejar e a obriga-la a fazer os trabalhos mais imundos e a alimentava somente com o pior lixo possível para que ela nunca fosse vista com desejo pelo patrono da família.

    Quando a rebelião humana começou, o senhor da família que a tinha como escrava era líder de uma poderosa linha antirrevolução e diversos soldados humanos haviam falhado em neutraliza-lo.

    Ciscer era notada pela beleza desmedida mesmo estando suja de lama e encharcada de suor e sujeira. E em uma noite ela se arrumou e seduziu o patrono da família e o assassinou quando ele adormeceu, abrindo assim uma importante brecha que serviu como uma das primeiras grandes vitórias dos humanos.

    E como vingança contra a companheira do senhor que a humilhou por toda a vida ela comeu a carne do corpo queimado da elfa jurando que esse seria o último lixo que ela comeria durante sua vida.

    Após isso ela ficou conhecida e é lembrada como a senhora da gula e da luxúria, pois com seu corpo fez o que nem as mais treinadas lâminas foram capazes de fazer e após devorar o corpo de um ser imortal ela apenas comia o mais fino e luxuoso dos pratos e sempre ansiava por mais.

    O capitão adentrou no local que ficava em frente à praça e o cheiro de álcool e ervas invadiu suas narinas.

    O bar era enorme e dividido em dois andares. O primeiro, dividido em três cômodos igualmente grandes. Era possível ver a fumaça no ar, provavelmente de ervas alucinógenas. Lyberion era abençoada, ou amaldiçoada, por ser a principal fonte da planta.

    As pessoas se divertiam com a droga, com música e com as mais requintadas bebidas que a adega tinha para oferecer.

    Várias castas se encontravam ali, desde viajantes de vilarejos próximos a nobres.

    O capitão caminhou em meio à multidão, esbarrando em alguns nobres, afim de chegar na mesa do bar, que ficava no fundo do salão.

    Um atendente de cabelos pretos lisos penteados para trás, com blusa branca de manga longa dobrada até a altura dos cotovelos e calça com suspensório preta, veio ao encontro do capitão.

    — O que deseja, senhor — perguntou o homem enquanto secava um copo de vidro com um pano branco.

    — Informações — disse o capitão, calmo ainda em pé.

    O atendente encheu o copo que estava secando com uma bebida transparente. O cheiro do álcool era nítido, porém harmonioso e com um leve aroma de limão.

    — Sobre? — perguntou o homem entregando o copo para Sam.

    — Um grupo de estrangeiros que vieram para a celebração, embora eu ache difícil de ainda estarem andando juntos por aí.

    O atendente ergueu uma sobrancelha, mas balançou a cabeça em sinal negativo.

    Sam deu um gole na bebida e puxou a espada da cintura, ainda embainhada, e a colocou no balcão enquanto se sentava em um banco que estava à frente da bancada.

    O homem por trás do balcão esboçou surpresa no olhar quando viu a bainha detalhada e curva com adornos que lembravam nuvens em alto relevo. Isso bastou para que ele soubesse com quem estava falando.

    — Capitão Haras — cumprimentou o atendente mais uma vez, fazendo uma leve reverência com a cabeça. — Não te reconheci sem a armadura.

    — Aceitarei como elogio.

    Sam voltou a pôr a mão na cintura, mas dessa vez, um saco do tamanho de uma palma surgiu. Um tilintar de moedas pode ser ouvido quando o capitão o soltou sobre a mesa.

    — Há um mês, — começou o atendente — seis estrangeiros pediram um quarto no Andar dos Prazeres não para diversão, e sim como um quarto de hotel.

    — No segundo andar?

    Sam havia ficado surpreso. O segundo andar era diferente do primeiro. O andar de entrada era conhecido como Andar da Gula, focado em bebidas, festas e banquetes. Já o Andar dos Prazeres era conhecido pelo luxo de cada quarto e também pelas mais belas meretrizes do continente.

    — Quando foram informados que os quartos não eram para se hospedarem jogaram dez sacos de ouro aos pés do responsável.

    — Como eles eram? — perguntou Sam dando mais um gole na bebida.

    O atendente olhou para os lados para ter certeza que ninguém ouvia.

    — Eles usavam roupas largas com capuzes, não dava pra ver muita coisa, mas… — o homem parou para mais uma conferida nos arredores. — Eles eram Ossuianos.

    O Capitão apertou o couro que embainhava a espada sobre a mesa depois de ouvir o nome do segundo maior reino humano na qual ele passou anos vigiando fronteiras.

    — De Ossuia? — falou Sam se contendo para não aumentar muito o tom da fala — Tem certeza? Como pôde saber disso se nem mesmo conseguiu ver qualquer característica dos homens?

    O homem por traz do balcão ajeitou a coluna com um semblante sério.

    — Eu sei. Eu sei porque eles falavam o nome de Lyberion como se fosse pior que merda em suas bocas.

    O capitão tremeu quando a pior das hipóteses que ele havia imaginado se mostrou provável.

    — Ainda estão aqui? — dessa vez Sam que avaliava os arredores.

    — Não. Não voltaram nem mesmo para pegar os pertences no quarto que alugaram, mas o responsável pelo segundo andar mandou deixar o quarto intocado até o final do tempo acordado, que se encerra ao amanhecer.

    O capitão se levantou e voltou a espada para a cintura.

    — Qual o número do quarto?

    O homem por trás do balcão fez sinal negativo com a cabeça.

    — Me desculpe senhor, não posso revelar informações deste tipo sobre os clientes do bar.

    — Que pena – disse o capitão pondo a mão no saco de ouro que ainda estava sobre a mesa, ameaçando recolhe-lo.

    — No quarto vinte um — falou o atendente colocando a mão no saco de moedas.

    Sam se levantou e jogou mais um saco de moedas na mesa. Por mais que o capitão não utilizasse muito da técnica do suborno ele sabia que uma informação sempre tem dois preços: o da informação em si, e o da discrição do informante.

    — Pelo seu silêncio.

    O capitão da Guarda Real subiu as escadas de madeira lustrosa nos fundos do primeiro andar. Antes de entrar no estabelecimento, fez um reconhecimento completo dos arredores, identificando rotas de fuga, áreas com mais e menos civis, e locais ideais para um possível combate, caso a situação fugisse ao controle.

    A entrada para o Andar dos Prazeres possuía uma porta grande, feita da madeira mais requintada do reino, com adornos espirais nas bordas, e dois homens vigiando a entrada.

    Quando Sam chegou à porta, um dos homens — alto, careca, gordo e de barba preta longa — postou-se diante dela.

    — São cinco moedas de ouro para entrar.

    Pelo ar de superioridade na voz do vigia, Sam percebeu que não o reconhecia. Isso era bom; a discrição seria útil nessa investigação. E manter a armadura quase o tempo todo tinha suas vantagens.

    Sam colocou a mão em um dos bolsos da calça e entregou uma pequena fortuna ao homem.

    — E sem armas — disse o outro vigia, baixo, magro e com cabelo curto.

    — Tudo bem — respondeu Sam, desfazendo o cinto que segurava a bainha da espada. — Onde posso colocá-la?

    O segundo homem apontou para um armário com ganchos e baús, todos acompanhados de chaves e cadeados.

    — Coloque a espada onde preferir, trave-a com o cadeado e leve a chave — instruiu o mais baixo.

    — Não nos responsabilizamos se perder a chave, então divirta-se com moderação — completou o alto.

    Sam virou-se em direção ao pequeno cômodo, mas não tinha intenção de se separar de sua espada. Poderia muito bem encontrar o inimigo, e ele estava certo de que não estaria desarmado.

    Então velozmente ele sacou a espada em direção aos seguranças e um arco de vento seguiu a lâmina do capitão, que segundos antes de fatiarem os seguranças se dispersou em uma onda de impacto que os arremessou contra a parede.

    Os homens caíram no chão desmaiados e com mais um manejo de seu armamento Sam fez com que os ventos os jogassem dentro do armário.

    Logo em seguida Sam abriu a porta que dava acesso ao Andar dos Prazeres.

    Enquanto o primeiro era festa, bebidas e drogas o segundo era um lugar limpo e organizado, com mesas e cadeiras de madeira polida lustrosas, piso de mármore bege, e um candelabro prata com diversos cristais luminosos no teto, e a maior das diferenças: diversas mulheres com corpos beirando a perfeição transitavam pelo local. Algumas com bandejas de bebidas, outras no colo de alguns nobres e outras dançando de forma sensual e convidativa.

    As meretrizes se cobriam apenas com um tecido de seda transparente que passava pelos seios e por entre as pernas descendo até a altura do tornozelo.

    O capitão se obrigou a avaliar os arredores e percebeu as diversas portas enumeradas que se estendiam por todo o andar.

    Uma das mulheres viu Sam e logo se aproximou, os seios fartos visíveis por trás da veste rosa transparente.

    — O que deseja, senhor? — perguntou a mulher, a voz atraente saindo da boca carnuda avermelhada com cosméticos.

    — Gostaria de alugar o quarto vinte e um, por favor — falou Sam olhando nos olhos da mulher.

    — Me desculpe, — começou a bela mulher — mas já está reservado.

    Reservado, não ocupado. Seria ótimo para poder encontrar alguma coisa sobre o que os invasores queriam com o ataque.

    — Que pena, — começou o capitão ao colocar a mão no bolso, puxando uma moeda de ouro — Eu queria mesmo o quarto vinte e um e sei que a reserva dele acaba em poucas horas.

    — Uma moeda de ouro? — indagou sorrindo a meretriz — Deve ser sua primeira vez aqui, não é?

    Sam não respondeu, o silêncio já era uma resposta.

    — Espero que essa seja só a parte do suborno, não sei por quais lugares você já foi para ter companhia, mas saiba que no Bar de Ciscer, a… — A mulher hesitou para dizer as próximas palavras, como se fosse difícil se encaixar como tal — a mercadoria é mais cara.

    A bela dama foi até os fundos do andar onde se encontrava uma adega com as bebidas mais caras e luxuosas que Lyberion tinha a oferecer. Sam a seguiu e após a mulher cochichar algo pro garçom que se vestia igual ao outro atendente do primeiro andar, ele a entregou uma chave.

    — Aqui está — disse a mulher entregando a chave para Sam — Já quer companhia? — ofereceu a mulher trocando o peso entre as pernas, o movimento simples, com aquelas roupas, conseguia ser provocante. — Estou disponível agora.

    — Por enquanto não — falou Sam dando uma última olhada para a mulher.

    O Capitão se pós a caminhar até chegar em uma porta com os números dois e um, entalhados. Sam colocou a chave com a mão direita, enquanto a esquerda segurava o cabo da espada.

    A porta rangeu quando Sam girou a chave.

    BOOOOM!!

    Uma explosão irrompeu de dentro do cômodo assim que a porta se abriu.

    O estrondo foi ouvido por todo o quarteirão.

    Quando as pessoas olharam em direção ao barulho, encontraram o Capitão da Guarda Real de Lyberion contendo uma esfera de fogo com uma bolha de ar.

    — Saiam daqui! — gritou o Capitão.

    Graças a contenção de ar a explosão não irrompeu para dentro da taverna, mas o interior do quarto juntamente com a parede virada para a rua tinha sido completamente destruído.

    A mão esquerda no cabo da espada permitiu que Sam tivesse acesso a magia e, com os reflexos afiados, conseguir ter reação rápida o suficiente para envolver o restante da explosão que teria destruído o Andar dos Prazeres.

    O inimigo operou de forma a evitar mortos durante o ataque, mas estavam dispostos a matar dezenas de pessoas para não serem descobertos.

    Com um pensamento do capitão, uma rajada de vento fez um buraco no teto. Sam se manteve no mais puro foco e jogou a bolha de contenção para cima, onde estava o buraco, a empurrando o máximo que conseguiu para os céus e então liberou a magia.

    O céu escuro iluminado somente pelo brilho prateado da lua se viu claro com uma luz alaranjada, que logo, cessou.

    O capitão olhou para o quarto destruído. Não restou nada para que fosse averiguado, tudo tinha sido queimado na explosão.

    “O Olho da Tormenta”, as pessoas começaram a cochichar.

    Sam já não tinha mais o anonimato. Agora quem quer que fossem os inimigos sabiam que o Capitão da Guarda Real estava perto.

    Nota