Capítulo 9 — Sangue e Memórias
por Felipe BahiaNo dia seguinte Helick levantou relativamente cedo pra quem tinha ficado acordado até tarde da noite. Helick se vestiu com uma blusa de linho azul-celeste com mangas compridas largas, e uma calça de tecido resistente de cor azul claro. Um cinto de couro comum discreto e seu conjunto de sapatos era de couro de Águiowl, uma ave que se assemelha a uma mistura de águia com coruja, com uma pele dura que gerava um dos melhores couros para calçados.
Ao abrir a porta de seu quarto, Redgar e Tály estavam em frente à sua porta, enquanto Marco e Any estavam em frente à porta de Cassian.
— Bom dia, pessoal — cumprimentou o príncipe.
Todos responderam inclinando suas cabeças em reverência. Helick andou pelos corredores do palácio e Redgar e Tály o acompanharam mantendo uma distância respeitosa de cinco passos.
Helick tinha um palpite em mente do que poderia ajudar a descobrir o que estava acontecendo nesses últimos dias e queria investigar. Mas antes, ele fez uma pequena pausa no centro do terreno do palácio, onde ficava a Torre dos Criados. O príncipe entrou dentro do local que já estava vazio pelo fato de todos os criados terem assumido seus postos de trabalho no palácio, exceto um pequeno grupo que estava designado à limpeza do local.
Como Nastya havia se ausentado por uns dias, outra criada havia pegado os jardins para cuidar naquela semana e a jovem garota ficou responsável pela limpeza da Torre.
— Me esperem aqui na entrada — falou Helick a Tály e Redgar.
Se fosse Cassian o solicitante, eles provavelmente ignorariam o pedido e o seguiriam, mas ambos atenderam o pedido de Helick. O príncipe seguiu para o segundo andar, onde provavelmente Nastya estaria limpando, lavando e polindo.
Quando Helick entrou em um dos quartos, ele viu a jovem encolhida em um canto no chão, próximo a uma mesinha de chá tremendo.
— Nast? — chamou Helick se aproximando rapidamente. — Está tudo bem? O que houve?
A garota enxugou as lágrimas rapidamente e engoliu o choro.
— Príncipe Helick? — respondeu a garota surpresa, a tremedeira intensa parecia ter piorado. — Nada de mais, só me cortei com a porcelana de uma xícara quebrada no chão.
Helick olhou para o chão e viu cacos de porcelana manchados de sangue espatifados no chão.
— Você continua tendo pavor de sangrar, não é? — comentou Helick rasgando um pequeno pedaço de sua blusa azul celeste de seda.
O príncipe pegou a mão direita da amiga de infância que possuía um pequeno corte, mas profundo. Ele amarrou o pano e estancou o sangramento.
— Tá tudo bem agora — falou Helick por fim.
— Não precisava ter rasgado suas roupas por isso, príncipe — falou a garota boquiaberta com a atitude do príncipe, sua tremedeira diminuindo. — Eu que sou frágil e fresca demais ao ponto de não conseguir lidar com meu próprio sangue.
Helick sabia que Nastya havia adquirido o pavor de sangrar desde muito nova porque seu pai havia morrido de hemorragia ou algo do tipo antes de ela e a mãe chegarem a Lyberion. A garota não comentava muito sobre o falecido pai. Helick calmamente retirou a sua adaga que estava guardada por dentro de sua blusa e cortou a palma de sua mão.
— Helys! — gritou Nastya enquanto rapidamente rasgou um pedaço do próprio vestido azul escuro para estancar o sangramento do príncipe. — Por que fez isso?
— A quanto tempo você não me chama assim — sorriu Helick. — Não se preocupe, isso é prova que não fiz nada em vão, você sem pensar duas vezes fez o mesmo por mim.
— Não precisava fazer isso! — corou a menina tirando o pedaço de pano de seu vestido encharcado de sangue. — Vou pegar um curativo pra você.
Antes de Nastya se levantar, Helick a puxou para perto.
— Não precisa, vou manter esse ferimento para que se forme uma cicatriz que me lembre do dia que você voltou a me chamar pelo nosso apelido de infância.
O rosto dos dois estava bem próximo e o coração de Helick parecia que iria saltar pela boca. O sorriso de Helick combinado com o olhar penetrante de seus olhos castanhos com um leve tom amarelado, focado na pequena boca vermelha de Nastya fez com que, sem perceber se aproximasse ainda mais, mas antes que ele pudesse pensar em fazer algo, ele ouviu uma pequena tosse forçada na porta do quarto.
— Estou interrompendo algo? — indagou Feryn, mãe de Nastya, em meio a um pequeno sorriso preocupado.
Os dois jovens se afastaram abruptamente enquanto responderam sincronizadamente:
— Nada!
— Não precisa se preocupar comigo, príncipe Helick, mas tenho medo do que o rei faria se soubesse dessa proximidade entre vocês. — Falou Feryn. — Depois que sua mãe fez o que fez, ele nutriu um certo ressentimento com relação a relacionamentos fora da nobreza.
— Tudo bem, não é nada disso que você está pensando. — Falou Helick se levantando. — Só passei para ver como Nastya estava, ela é uma boa amiga.
O príncipe fez uma reverência para se despedir e se dirigiu à saída quando ouviu Nastya falando baixinho:
— Até mais, Helys.
Helick saiu do palácio e começou a andar em direção ao centro do reino. Os habitantes do reino o cumprimentavam e acenavam a todo momento. Alguns chegavam perto demais e Redgar e Tály se aproximavam para que nada anormal acontecesse com o príncipe. Depois de andar por uns bons minutos e passar por várias pessoas, eles chegaram a uma rua pouco movimentada.
— Tály, Redgar, a gente se conheceu no acampamento militar dos aspirantes a recrutas do reino, já fomos amigos antes, esse silêncio tá esquisito — comentou Helick.
— Não temos nada para falar — falou Redgar sem esboçar nenhum tipo de sentimento.
— Ah, diga por você, Red — falou Tály. — É que sei lá né, Helick, anos que não nos falamos, vai saber que você não virou um nobre babaca igual seu irmão.
— Que isso, Tály, ele vacilou contigo no passado, mas ele não é um príncipe babaca — defendeu Helick.
Tály o fulminou com o olhar e ele fez uma pequena correção:
— Ok, talvez ele seja um pouco babaca quando o assunto se trata de mulheres.
— Já que puxou assunto, fala aí, pra onde estamos indo? — perguntou Tály.
— Para a biblioteca do reino — respondeu Helick. — Quero ver se acho algo relacionado à fonte do reino que foi explodida no ataque.
— Pelo que sei desde que o reino existe ela está lá — comentou Tály.
— Sim, ela provavelmente era a construção mais antiga do reino — completou Redgar. — Pena que foi explodida.
No final da rua, lá estava a biblioteca pública de Lyberion. Assim como a maioria das construções de Lyberion, suas paredes externas eram de pedra branca que se destacava com o contraste do céu azul. À frente da construção, havia uma grande escadaria que levava às portas de carvalho duplas com maçanetas de ferro.
Helick empurrou as portas e o ambiente interno se revelou com várias estantes enormes escoradas nas paredes e formando corredores repletos de livros, códex e pergaminhos antigos. No centro da construção, uma grandiosa torre com estantes fixadas de maneira espiral dava um ar de imponência e sabedoria. Também havia ali um balcão de madeira que cercava toda a circunferência da torre.
Uma senhora rechonchuda de cabelos curtos e brancos, com óculos com cordas nas laterais, que usava um vestido verde bordado e com babados, se encontrava sentada à frente do balcão.
— Bom dia, Rose — cumprimentou Helick.
— Bom dia, príncipe — respondeu a senhora que possuía uma voz agradável e suave. — Como posso ajudá-lo hoje?
— Gostaria de ler todo e qualquer documento que fale algo sobre a nossa antiga fonte.
— Mas é claro.
À frente da idosa havia um livro de capa verde surrado fechado. Ela pôs suas mãos trêmulas sobre a capa velha e falou:
— Magia de localização, palavra-chave: Fonte da Liberdade.
Quando a mulher proferiu as palavras, o livro em sua frente, seu ARGUEM, se abriu e começou a emanar uma luz verde. A iluminação interna da biblioteca, que era fornecida por velas e pela luz do sol que entravam pelas enormes janelas retangulares, subitamente enfraqueceu e vários livros, códex e rolos antigos brilharam em diversas estantes.
— Venham a mim — conjurou a senhora.
Os livros saíram de suas prateleiras ao redor de toda a biblioteca e começaram a ir em direção ao balcão de madeira. Cada um deles aterrissou de forma organizada à frente do príncipe.
— Prontinho — disse Rose com um sorriso.
— Caramba, você vai ler isso tudo?! — exclamou Tály. — Você realmente é bem dedicado.
Helick olhou para ela e para Redgar dando um sorriso perverso.
— Nós iremos ler isso tudo.