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    É verdade quando dizem que um dia o teu passado sombrio volta para te assombrar. Era o que estava acontecendo naquele momento. Aquele homem que tentou me usar como cobaia estava ali. Sua simples presença estava incomodando o cachorro que rangia os dentes de raiva como se estivesse diante de um ser horrendo.

    — Irmão…

    Revirei o olho, encontrando a expressão num misto de espanto e preocupação que Handares fazia.

    Não era impressão minha, Handares havia chamado Nikolas de irmão. Mas não sei se sua voz havia chegado aos seus ouvidos, pois naquele mesmo instante Nikolas caiu como morto, surpreendendo a todos.

    — Irmãoooo!

    Seu grito andou de ouvido em ouvido.

    Seguido de seus passos. Apressadamente, com sua muleta, correu ao encontro do irmão deitado ali.

    — É o irmão?

    Zernen simplesmente coçou a cabeça, como se estivesse tentando compreender aquela situação. Seu cachorro agora estava sentado e as crianças observavam tudo num misto de curiosidade e espanto.

    Já eu deixei de observar tudo como um mero espectador e segui os passos de Handares para procurar saber o que estava acontecendo com o Nikolas, que aparentemente devia estar bem. Lembro de tê-lo visto sendo curado pela Theresa.

    Handares largou suas muletas e caiu de joelhos diante do corpo do irmão, suas lágrimas também acompanharam a queda. Ele soluçava enquanto tocava a sua face e palavras capazes de cortar um coração ao meio acabaram saindo dos seus lábios.

    — Irmão, peço desculpas. Eu falhei como irmão mais velho. Eu falhei em te proteger, meu queridinho irmãozinho. Me desculpa.

    Handares estava se culpando, muito provavelmente por não ter conseguido impedir o irmão de se tornar o monstro que havia se tornado. Mas não era culpa dele, isso porque as pessoas no fim do dia tomavam os seus caminhos.

    — Você fez o que pôde.

    Repousei minhas mãos nas suas costas.

    — Não, eu não fiz! Eu sou o culpado! Se eu não fosse inválido… — Seus dentes cerraram enquanto lágrimas continuavam descendo dos seus olhos. — Meu irmão jamais teria se sacrificado por mim! Por isso, eu sou maldito! Maldito!!!

    Gritou enquanto batia ambos os punhos no chão, deixando as crianças um pouco assustadas. Eu, por outra, tentava entender o significado daquelas palavras duras e dolorosas…

    — Se sacrificar?

    Antes que Handares pudesse satisfazer minha curiosidade, Zernen disse com a naturalidade de uma espada afiada, que corta e despedaça:

    — É melhor pararem de se lamentar, pois esse homem está prestes a morrer.

    Aquelas palavras com certeza haviam deixado aquele irmão já sofrido atordoado.

    — Como você…

    De tão longe, como ele havia dado o diagnóstico?

    Zernen estava parecendo aqueles médicos que só olhavam o seu estado debilitado e te davam alguns meses de vida. Era assustador demais isso, por isso eu tinha muito medo de ir ao hospital.

    — Usei meus olhos de mana.

    — Olhos de mana?

    Essa era nova para mim… Mas agora que ele falou nisso, eu estava sentindo uma forte concentração de mana nos seus olhos.

    — Olhos de mana basicamente é você concentrar sua mana nos olhos e daí poder ver a circulação de mana no interior do seu corpo, só isso. Não sabia, Jarves? Sua mana transmite muita informação sua e a desse homem não é nada agradável.

    — Muito legal isso…

    Eu estava admirado com isso.

    — Mas cuidado, porque você não pode usar por muito tempo senão já era.

    Ele passou o dedo perto dos olhos como se estivesse cortando eles.

    Senti um pouco de medo, logo voltando os meus olhos para Handares que falava com uma voz pesada e desesperada.

    — O que, o que o meu irmão tem?

    — Esse homem está cheio de veneno!

    — Eu já deveria saber… — Handares murmurou com pesar e um sentimento de auto culpa.

    — É o que? Como? Theresa não havia curado ele? E como você já deveria saber?

    Eu estava a procura de resposta, no entanto, isso de longe era o mais importante.

    — Por favor, me ajudem a levar meu irmão! Eu preciso salvar ele custe o que custar, meu querido irmão precisa viver!

    — Você ouviu, não ouviu Zernen?!

    — Depois eu cobro pela mão de obra! — ele disse isso enquanto carregava o Nikolas rapidamente, colocando no seu ombro direito com a facilidade de quem carregava um tapete enrolado.

    — Deixa disso, rapaz. Nem tudo é dinheiro.

    — Hahahahaha, você não sabia, Jarves? Tudo nesse mundo funciona a base de dinheiro!

    Suas palavras carregavam um pingo de verdade. Ele seguiu caminhando para dentro do orfanato enquanto eu ajudava o Handares a se levantar com suas muletas. Feito isso, seguimos andando na companhia das crianças cheias de curiosidade.

    Quando entramos dentro do orfanato, encontramos Nikolas deitado na mesa onde estava a comida. Vou te contar, Zernen era um sem noção.

    — Desculpa, é que de repente me senti fraco e tive que deixar ele no lugar mais próximo que eu avistei!

    Dei um tapa na minha testa em decepção. Francamente… Quando os outros chegaram quase que desmaiavam ao ver aquele homem deitado na mesa como se fosse uma comida a ser servida enquanto nós assistíamos a tudo como espectadores.

    — Nikolas…

    Meredith fazia uma cara digna de quando você encontrava um daqueles monstros que se escondiam no armário e em baixo da cama.

    — Alguém me explica o que vem a ser isso?— questionou Croma com um pavor evidente e uma expressão que pedia por respostas. Sua amiga médica também não ficou para trás, também estava curiosa com aquela loucura.

    — É tudo culpa do Zernen…

    Apontei para o culpado.

    — Não, é culpa do Jarves! Ele é quem não me ajudou!

    — Maldito, você já não tinha falado de mão de obra?!

    — Eu disse isso? Você não sabia, Jarves? Nem tudo nesse mundo é dinheiro, às vezes precisamos ter empatia e amor pelo próximo.

    Então ele sabia o que estava dizendo?

    Me limitei a dar um suspiro de decepção enquanto pressionava a mão na testa.

    Mas no meio disso tudo, uma voz sufocante e angustiante, chegou aos nossos ouvidos.

    — Ajudem o meu irmão, por favor, Theresa e Antonella!

    As duas assentiram com a cabeça e caminharam em direção a mesa que já estava servindo como uma mesa de operações.

    — Ei, Theresa, você já não tinha curado ele antes?

    Me aproximei, encontrando os seus olhos.

    — Superficialmente, mas parece que o problema dele é mais grave do que parece.

    — Eu disse, o corpo dele está cheio de veneno…

    — Foi conforme eu pensei, aquela droga estava mesmo consumindo seu corpo aos poucos… — Theresa deu um pequeno suspiro enquanto passava a mão na testa do Nikolas.

    — Veneno? Eu não consigo ver nenhum sinal de veneno, então como?

    A novata Antonella perguntou.

    — É só usar olhos de mana— disse Zernen, apontando para os olhos como se fosse algo simples.

    — Olhos de cura… — Os olhos de Theresa começaram a brilhar em um verde intenso. Eles emitiam a mesma sensação que os olhos Zernen outrora cobertos por mana.

    — Espera, até você, Theresa?

    — Aprendi com Frida, embora eu já soubesse magia básica.

    — É o que????!

    — Pessoal, vocês podem me explicar o que é isso de olhos de mana e de cura?

    — É uma técnica que permite concentrar mana nos olhos para poder visualizar as informações internas contidas nas mana — disse Meredith, respondendo a Antonella. — Mas no caso de usuários de magia de cura, ao que parece, eles podem fazer mais profundo do que simples olhos de mana.

    — Nossa, eu ainda tenho muito que aprender… — Antonella murmurou, um pouco abalada.

    — Impressionante, nem mesmo eu consigo dominar essa técnica. Exige um grande autocontrole de mana — disse Rein, recebendo um aceno de cabeça da Meredith.

    — Nem eu, mas Frida deu dicas de alguns truques baseado na magia ocular dela.

    — Entendo.

    — Então aquela baixinha sabia disso e não me contou?!

    Fiquei irritado e com um leve arrepio quando imaginei ela me dizendo que eu ia ficar sem roupa por estar a me referir a ela assim mesmo longe.

    — Sinto muito, mas não há nada que eu possa fazer…

    Com uma voz carregada de angústia, Theresa deu aquela triste notícia que todo mundo odiava receber, quando a medicina humana falhava completamente.

    — Não, não pode ser…

    Ver o Handares chorando me fazia querer chorar com ele.

    — Na verdade, há algo…

    — Ah! Theresa! Por que não disse logo?

    Theresa parecia estar querendo brincar com os nossos corações.

    — É que mesmo isso é algo que não sei se vai funcionar, porque estará colocando em risco vossas vidas.

    — Por favor, eu posso até mo…

    Antes que ele terminasse aquelas palavras depressivas, Antonella fechou sua boca e gritou com o rosto desfigurado de tristeza, seus olhos tão atordoados que já não queriam mais conter aquelas lágrimas.

    — Não diga isso! Não diga essas palavras!

    Antonella não mais se conteve, chorou.

    Croma, toda preocupada, com o rosto transtornado em profundo desalento, também veio ao encontro do Handares, pegando no seu ombro.

    — Isso mesmo. Você é especial para nós!

    Assim que Antonella deixou sua boca, ele começou a chorar como um bebê no dia do seu nascimento. Mas diferente do que clamava pela mãe, ele estava clamando por socorro, estava clamando por Theresa.

    — Antes vou perguntar. Meredith, Jarves, Rein e Zernen, vocês estão dispostos a se sacrificar para salvar a vida do Nikolas?

    Aí estava uma pergunta muito interessante. Ali estava o nosso inimigo que um dia tentou nos matar para satisfazer os seus desejos.

    Sinceramente, não havia motivo para salvar a vida de Nikolas em troca das nossas vidas. Além disso, não sabíamos se após a recuperação ele continuaria levando a vida que levava antes ou não. Tenho a certeza de que todos pensam assim como eu.

    Levantei a mão, baixando o polegar.

    — Não. Sinto muito, Handares. Mas nem eu, nem a Meredith, nem o Rein, nem o Zernen vamos nos sacrificar para salvar o Nikolas!

    Zernen concordou comigo quando balançou a cabeça.

    — Nesse caso, eu me sacrifico— disse Antonella.

    — Não, tem que ser um usuário de magia básica. O que eu quero é que transfiram mana para mim, para eu poder remover todo o veneno do corpo do Nikolas com a minha magia.

    —Ah… — Antonella lamentou.

    — Apesar de Nikolas ter me feito tão mal, eu escolho me sacrificar por ele.

    Meredith levantou a mão, atraindo minha expressão num misto de espanto e indignação por aquelas palavras repletas de falta de consciência.

    — Meredith, você está louca?! Você está proibida disso!

    — É uma decisão minha. É o que meu pai faria.

    — Seu pai, por favor, Meredith… Ele já está morto!

    Cobri minha boca depois de soltar aquilo impulsivamente, sem medir minhas palavras. Eu estava tão incomodado com o fato de Meredith envergar pelo caminho que eu estava lutando para tirá-la. Eu simplesmente não podia permitir isso.

    — Você daria sua vida por mim, não é mesmo, Jarves?

    — Sem pensar duas vezes!

    Mesmo que me doesse não poder presenciar o final digno que ela iria ter.

    — No passado eu também era sua inimiga. Te desprezei e até te ameacei de morte, mas você me estendeu a mão e me ajudou.

    — Mas isso é diferente, Meredith! Duas coisas totalmente diferentes!

    — O que há de diferente?

    — Eu é que te provoquei, isso é diferente. E eu sabia desde o princípio que você era muito boa pessoa!

    — Viu só? Não há diferença. Nikolas me provocou e eu sei que ele se tornará uma pessoa melhor se viver, porque ele fez tudo o que fez pelo seu irmão, não é mesmo? E o que eu aprendi é que mesmo uma pessoa sendo má, ela ainda é amada por alguém, ainda tem pessoas que chorarão por ela… Nesse sentido, toda vida é necessária.

    — Se toda vida é necessária, a sua também é! E você não sabe… — Lágrimas já estavam se acumulando nos meus olhos. — O quanto eu chorei— choraria por você!

    Mais do que quando te vi na tela.

    Lágrimas também começaram a se acumular nos seus belos olhos.

    — Mas se o Nikolas morrer sem se redimir… Será uma morte triste.

    — Ainda assim, eu não posso aceitar isso! Não mesmo. Você só poderá dar a sua vida só por cima do meu cadáver, entendeu?!

    Quando percebi, estava em lágrimas. Quando percebi, os braços da Meredith estavam me envolvendo em um abraço caloroso e seus suspiros misturados com lágrimas transbordavam pelos meus ouvidos como a sonata de uma melodia triste. Isso mesmo, seu choro era a melodia mais triste que eu podia ouvir.

    — Eu te entendo… Eu também já não sei mais o que fazer, eu não quero que isso acabe assim…

    — Por favor, não me abandona! — Apertei os meus braços no corpo dela, formando uma corrente para que ela ficasse ao meu lado para sempre. Sempre. — Eu não posso te perder… Eu não quero te perder. Meredith, eu te…

    Quase soltei aquelas palavras proibidas, que acabaram sendo abafadas por um soluço proposital.

    — Acabei de ter uma solução, pessoal! — Rein estalou os dedos, reunindo todos os olhos curiosos da sala e sedentos por uma solução não sacrificial. — Vamos cozinhar comida que recupera mana!

    — Comida que recupera mana? — perguntou Meredith. Enquanto isso, eu apalpava o vento, sentindo saudades do calor da Meredith depois que ela deixou de me abraçar para prestar atenção no Rein.

    — É amarga e dá uma dor de barriga bem intensa, mas compensa…

    Só de pensar no que ele estava falando, um arrepio percorreu o meu corpo.

    — Pedras de mana! Vamos cozinhar pedras mana!

    — Ah, não… Por favor, não…

    Aquela dor angustiante de novo não.

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