Capítulo 9: Traição
Meredith adormeceu, seus traços aos poucos desfizeram aquela expressão triste que ela fazia há pouco. Pude suspirar enquanto fazia vigília, mas logo acabei por cair no sono também. Fechei os meus olhos levemente, naquela cadeira de madeira rente à cama da Meredith.
Naquela noite, eu tive um pesadelo terrível, sonhei com a destruição do reino de Hengracia. Era como se fosse uma recapitulação do que havia visto no meu mundo. Só aqueles gritos de socorro se intensificando pelos meus ouvidos me deram agonia.
É. Eu senti pena desses cidadãos, de todos os figurantes que eu conseguia lembrar.
Poucos eram os que realmente podiam fugir. Trevas cobriam a face do céu, trovões sacudiam a terra em um estrondo e tudo, absolutamente tudo, estava em chamas, acompanhado de estilhaços de pedras de casas destruídas.
“Mas isso não tem nada a ver comigo, tem?”
“Eu nem os conheço.”
“A minha missão aqui é apenas guiar a Meredith rumo ao seu par romântico e junto deles, salvar o mundo do reino das trevas.”
“É, esse é o meu papel.”
Quando abri os meus olhos, contemplei a cama da Meredith totalmente vazia.
Se não estava enganado, esse seria o terceiro dia…
— Espera! Será que ela voltou para o distrito dela sem mim?! — Quando questionei isso desesperado, meus olhos encontraram Zernen, que sentava no chão, bem ao lado da minha cadeira.
— Calma, Jarves. Ela só foi fazer uma visitinha ao mordomo homicida.
— Eu não estava preocupado!
Quer dizer, estava sim. Mas só porque, se ela fosse agora, não pegaria eles no flagra. Era bem de noite mesmo, onde as trevas dominavam.
— Sei. Sei.
Ele sorriu enquanto se levantava.
— Sabe. Sabe.
Eu ri.
— Se a gente continuar, vai virar uma música — ele disse, gesticulando as mãos como se fosse um cantor de rap. — Escuta só: Sei. Sei. Sabe. Sabe.
— Eu acho que é você quem precisa tomar os medicamentos. Que música mais sem sentido é essa?
— A que nós acabamos inventar! — Ele parou de gesticular, soltando um sorriso enquanto levantava o polegar.
— Não me meta nessa não.
— A gente já é sócio, Jarves. — Ele deu um tapinha no meu ombro. — Tenho que te meter em tudo!
Acho que acabei conseguindo um amigo de verdade nesse mundo. Zernen me ajudava bastante, embora maior parte de sua ajuda fosse por algum benefício, eu sentia uma energia positiva vinda dele.
— Estou com fome. — Minha barriga roncou. — Vamos comer?
— Demorou. Hahahaha! E falando nisso, já estamos ficando sem dinheiro!
Começamos a andar em direção à porta.
— Você gastou toda aquela sacola de dinheiro ontem?
— É. — Ele abriu a porta. Saímos por ela e começamos a caminhar por aquele corredor largo com portas de madeira nas laterais, que davam acesso a outros quartos.
— Tudo isso só em comida?
— Para falar a verdade, eu perdi quase tudo no pedra, papel, tesoura que fiz com o grandão.
— Você só queria gastar dinheiro à toa.
— A gente ainda tem a nossa fonte de renda.
— O Faisal?
— Isso mesmo!
Acho bom você não se empolgar, caro Zernen. Não teremos o Faisal por muito tempo. Se bem que, acho que aquele documento que ele assinou era válido para todas as posses e riquezas que ele tinha, então acho que obrigatoriamente a família Stein teria que continuar a pagar as dívidas deixadas por ele.
Todavia, acho que não terei tempo para usufruir de nada disso.
“Ah, que tristeza.”
A recepcionista nos recebeu com um sorriso colgate no seu rosto. É sério!! Tem algo de estranho com essa garota! Do nada ela começou a nos tratar bem.
— Escuta — eu disse enquanto me sentava. — Quanto você pagou por aquele quarto?
— Bem, ela disse que uma noite custava 1 moeda de ouro por pessoa com refeição básica incluída.
— Refeição básica?
— Pão cru.
— Ah, entendi.
— Mas ela disse que se eu pagasse uma semana adiantada, teríamos desconto de 30% e refeição especial incluída.
— Mas nós só vamos embora hoje, idiota!
— É! Eu sei — ele riu. — É por isso que eu comi a refeição de uma semana num único dia e de bônus recebi o meu desconto de 30%!
— Já não sei o que pensar.
Era por isso que a recepcionista estava feliz, ela passou a perna nele na cara dura.
Olhei para ela e recebi uma piscadela.
“Mas bem… “, suspirei.
” O dinheiro não é meu mesmo. Por que eu tenho que me preocupar?”
— Zernen, quanto você tem de dinheiro aí?
— Vou conferir. — Ele retirou aquela sacola de dinheiro do seu bolso, sacudindo na mesa. Caíram algumas moedas de ouro e prata, que atraíram a atenção dos clientes.
— Gaste todas com refeição e a bebida mais cara que essa pousada possa oferecer!
— É assim que se fala, meu nobre!
Zernen entregou todo dinheiro para a garçonete que nos atendeu. Ela trouxe os melhores pratos que existiam nesse reino para nós, desde vinho (sem álcool) a carne de javali bem assada. Comemos até que a nossa barriga doesse, fazia tempo que isso não acontecia comigo.
Logo em seguida, Meredith atravessava as portas da pousada enquanto eu e Zernen fazíamos um concurso de arroto.
Alguns clientes e a recepcionista começaram a se incomodar, erguendo as suas sobrancelhas com um sorriso torto. Meredith deu um cascudo em nossas cabeças e nos mandou parar de envergonhá-la.
“Mas como assim?”
— Perderam a noção do perigo?
“E lá vem o sermão”
Ela ficou falando por longos minutos enquanto gesticulava as mãos para alegria da recepcionista e de certos clientes.
— Sentimos muito.
— Acho bom mesmo. — Colocou as suas mãos contra a cintura. — E agora, cadê a minha parte?
— Parte de quê? — Eu e Zernen questionamos.
— A comida. O que seria? Ou vão me dizer que deixaram esses ossos para mim? — Ela apontou para os pratos cheio de restos ósseos de javali.
— Culpe a ele. — Zernen apontou para mim. — Ele é quem me mandou gastar todo dinheiro.
— Mas o dinheiro era de quem?
— Não importa!
— Importa sim!
— Chega! — Ela deu um basta. — Eu vou usar o meu próprio dinheiro! Só me deem um minuto, vou à carruagem buscá-lo!
— Que coincidência! Eu apanhei um dinheiro na carruagem!
“Zernen, seu burro!”
— Vocês usaram o meu dinheiro?
— Bem, não é bem assim. — Tentei explicar. — Tivemos que pagar as contas daqui, as poções de curas… — Quanto mais eu explicasse, mais assustadora a cara que ela fazia ficava.
— Vocês usaram as minhas economias? — Seus ombros tremelicavam, enquanto suas sobrancelhas carmesim cerravam ligeiramente.
— A culpa é dele. — Apontei para o Zernen. — Confesso que eu mesmo não sabia que o dinheiro era seu! Eu juro!
— As minhas poupanças… — Ela franziu seu punho direito.
— O quê? Você também tá dentro. — Zernen apontou de volta para mim. — Você usufruiu e até ficou com um pouco!
— Eu não!
— Eu vou arrancar a cabeça de vocês dois! — Ela bateu na mesa com intensidade.
“O que essa mulher come?”
Ela partiu a mesa toda e começou a arremessar os estilhaços de madeira contra nós. Tive que tirar o dinheiro que havia sobrado do meu bolso para acalmá-la e, mesmo assim, ela continuou resmungando enquanto comia sua comida feliz da vida.
Depois disso, a recepcionista tentou pagar uma de chefa, tentando nos fazer pagar pela mesa destruída. Mas, a Meredith, furiosa do jeito que era, não só ganhou no argumento como conseguiu reaver o dinheiro de uma semana adiantada, deixando a recepcionista muito irritada.
O grandão tentou reagir, mas foi derrotado pela força invisível do Zernen. Queria ter um golpe desses.
— E não coloquem mais os pés nessa pousada — finalizou a recepcionista enquanto colocávamos os nossos pés para fora da pousada. Logo, fomos a um parque de estacionamento que ficava ao lado da pousada. Subimos a carruagem e, com o Zernen como cocheiro, rumamos para a mansão do Faisal.
Já era o entardecer.
— Então, o que conversou com o mordomo? — questionei, atraindo os olhos da Meredith que apreciavam a paisagem que aquela pequena janela ilustrava. Casas, pessoas e mais casas.
— Ele confessou tudo. Era tudo verdade. Graziela pagou ele para que colocasse um fim na minha vida.
— …
— Depois, ele chorou, lamentando por tudo. Como último desejo, pediu para que eu não deixasse suas crianças sem amparo.
— Ele fez isso mesmo sabendo que tinha crianças? Quanta idiotice!
— Ele é um idiota mesmo — disse Meredith, suspirando. — Eu vou poupar as crianças dele dessa informação.
— Eu contava. As crianças têm o direito de saber o que o pai deles andou fazendo. Esse será o maior castigo que ele irá ter, saber que os seus filhos sabem das ações dele.
— Você não deixa de ter razão. Mas eu não quero traumatizar as crianças, eles perderam a mãe tão cedo. É melhor deixar para quando tiverem maturidade suficiente para entenderem.
“Infelizmente, Meredith. Essas crianças não terão tempo para isso, elas também vão perecer durante a invasão.”
“Só os mais fortes conseguem sair e algumas pessoas que vivem mais para perto da saída do reino.”
— Eu… não estou preparada. — Meredith tremelicava dos pés e as mãos. Seus traços formavam uma expressão triste à medida que nos aproximávamos do seu distrito. Em menos de uma hora, chegaríamos à mansão do Faisal.
— Eu estarei contigo, então não precisa se preocupar.
— Muito obrigada. — Ela agradeceu, sorrindo, mas seus traços ainda permaneciam tristes.
“O que o herói faria nesse momento para aliviar a tristeza de Meredith?”
“Nada me vem à cabeça.”
— Quer ouvir uma história?
— Uma história?
— É.
— Pode ser.
Contei a história dá capuchinho vermelho e o lobo mau, roubando dos seus lábios rosa algumas risadas. Aquela tristeza no seu rosto aos poucos foi desaparecendo enquanto eu contava mais histórias clássicas do meu mundo. Ela elogiou o meu talento para criar histórias, quando, na verdade, nem minhas eram.
“Mas ninguém tem como saber, não é?”
“Hahahaha!”, ri enquanto continuava a falar, gesticulando as mãos.
Quando nos demos conta, já estávamos às portas da mansão do Faisal. Descemos da carruagem, enfrentando novamente aqueles guardas que dessa vez não fizeram escândalos por estarmos ao lado da Meredith.
Eu dei algumas instruções para o Zernen, incluindo que ele retornasse à mansão da Meredith e explicasse toda a situação sobre o incidente do mordomo, mas era mesmo para eu me livrar dele. Para que não visse a cena que estava por vir.
Entramos na mansão, caminhando pelos arbustos e pequenos relvados até o local onde o Faisal estaria cometendo traição contra sua noiva. Se bem que, na história original, a Meredith descobriu através de uma empregada que gostava muito dela e a levou ao local. Mas parece que eu tomei o lugar dela.
Meredith colocava a mão no peito à medida que nos aproximávamos do outro compartimento que ficava um pouco depois da mansão. Os empregados tinham ordens para não chegar perto de lá.
E, então, finalmente chegamos ao ninho dos pombinhos. Era uma pequena casa de madeira castanha; com telhado oblíquo, uma janela perto da porta de madeira e, no seu interior, havia apenas um quarto e uma sala.
— Pronta?
Meredith não falou nada, apenas caminhou em direção a porta; seus passos ressoando por aquele relvado.
Eu a seguia por trás.
Com cuidado, ela quebrou a fechadura da porta e entrou no primeiro compartimento, que era a sala, repleta de suas mobílias: sofás, mesinhas, estantes, vasos de decoração, etc. Era mesmo um ninho de amor completo.
Logo na parede lateral direita da sala estava a porta. Suas vozes já podiam ser ouvidas daqui da sala, como eu havia visto na série.
— Faisal, por que continua com aquela feiosa da Meredith? Eu sou muito melhor que ela, não acha?
— Você sabe, é por dinheiro e pelos status sociais. Com o nosso casamento, poderemos finalmente vencer os Volts!
— Então você não ama ela, não é?
— Aquela chata e irritante. Jamais!
— Ente me dá um beijo.
Com a cabeça baixa, Meredith direcionou o punho contra a porta. Ela quebrou em estilhaços de madeira, revelando aqueles dois numa cama; na escuridão, com uma coberta escondendo a sua nudez.
— M-M-Meredith!
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