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    01 de janeiro de 2000 – Periferia de Eva

    “A virada do milênio! Será que enfim o futuro tocara nossa sociedade com força? Uma sociedade com mais liberdade para usufruir dos N2 e seus derivados? Ou quem sabe até novas tecnologias baseadas nos já tão conhecidos núcleos de pedras mágicas, advindas dos mais longínquos recantos misteriosos e masmorras mortais. A evolução, senhoras e senhores, bate à porta de nossas fronteiras, nas mãos daqueles mesmos que a pouco foram nossos algozes!”

     Um apresentador na televisão puxa um profundo ar com o olhar distante e logo retoma após passar a mão em seu escasso cabelo marcado por entradas nas laterais.

    “Boatos que rondam a zona periférica de Eva, falam em uma profecia sobre a queda do muro dos oprimidos, e enfim… nossa liberdade. Tudo isso, e mais! Você acompanha agora, no manhã com Greg”

     Então ele dá a deixa para a entrada de comerciais.

    Sentada no sofá, Sarah vira o último gole de café que restou em pequena xícara amarela, que tem decorada uma careta sem boca em sua lateral. Se levanta e desliga a TV enquanto mastiga o último pedaço de pão desta manhã.

    Por vários meses, essa rotina de quietude se estende como se fosse a única naturalidade que existe.

    08 de abril de 2000 — Periferia de EVA

    O ar gélido toca as árvores descoloridas. Sutilmente com essa deixa, algumas folhas se lançam rumo ao solo em busca de cumprirem seu último papel no ciclo interminável da vida.

    Sarah decidi não ir à aula hoje, como em vários outros dias. Da rua surge um barulho motorizado, que aparenta estacionar ali perto por alguns segundos, ao lançar um olhar pela janela, alguma coisa comprida enrolada em um plástico transparente foi largada na calçada. Com passadas lentas, desce até a porta e ao quintal. Ao agarrar o plástico retorna para dentro, lançando um último olhar sob o céu azul.

    Sua regata cinza delineia seu corpo. A calça de moletom toda largada em um tom preto profundo é rasgada por uma linha vermelha lateral que corta de cima a baixo. Seus pés descalços tocam com uma suave naturalidade o chão gelado.

    Mais uma xicara de café é servida enquanto se senta à mesa. Em seguida vai desembrulhando o plástico que revela agora mais nitidamente um jornal com o título “Periferia em Dia”.

    Clima, política, celebridades, ocorrências, nada de novo. Folheando o setor da Guilda dos Caçadores, repara nas descrições de objetos e seus preços, quanto mais caro, mais raro. Ali também ranqueia os caçadores que mais ganharam no mês. Como sempre, os Caçadores Sombrios são os que mais lucram. Porém, é na última página que algo chama sua atenção.

    “A mais nova danceteria irá inaugurar neste sábado.”

    Logo em seguida é descrito que para poder entrar, precisa pagar um ingresso antecipado de inauguração, que só é vendido no mesmo local, no começo ela não se importa muito e deposita o jornal sobre a mesa para que seu pai o encontre.

    Ao chegar em seu quarto, ela se agacha perto de um rádio preto que ganhou recentemente. Ouvir notícias e um pouco de música a ajuda a não ficar vagando muito em pensamentos. Ao verificar que o núcleo azul está bem encaixado na parte de trás, ela recoloca a tampa e aperta um de seus botões. Direciona-se até a porta da varanda a abrindo totalmente.

    O ar que antes só tocava as folhas agora inunda o ambiente. Ela encontra um canto do lado de fora e se senta, encostando na parede enquanto olha a paisagem sem cor da rua e arredores.

    A primeira coisa que se faz ouvir, é uma música, diferente das poucas que ela já ouviu, essa não tem muitas palavras, mas as batidas… Seu coração parece estar se sintonizando com elas, seus pés sem sua permissão começam a se movimentar acompanhando o ritmo da música, ela fecha os olhos e começa a balançar a cabeça um pouco.

    Após alguns minutos a música sessa e uma voz masculina anuncia “Essa música foi em homenagem à nova danceteria que promete botar a zona 47 para sacudir, vamos agora de mais ocorrências policiais na noite de ontem”.

    Sarah se levanta e corre em disparada para o quarto de seu pai.

    — Pai… pai… — Ela o sacode sem cessar.

    — Ahmmm? O que foi? — Com uma voz ainda de sono, ele murmura, enquanto esfrega um de seus olhos.

    — Compra um ingresso para mim? Para danceteria!

    — Danceteria? O que é isso?

    — Vai inaugurar amanhã e toca música.

    Ele observa algo nos olhos dela que esteve ausente nesses últimos meses.

    — Está bem! Eu vou ver no almoço se consigo.

    Sarah dá um beijo no seu rosto em forma de agradecimento.

    — Aliás… o café está pronto!

    Depois de muito tempo, ela volta a sentir uma vontade intrínseca de fazer algo, mal sabe como funciona uma danceteria, só uma coisa é certa, se aquela música vai tocar lá, é lá que ela quer estar.

    A parte da manhã passa mais devagar que de costume, a tarde mais lenta ainda. Pela primeira vez conhece algo que lhe causa tamanha ansiedade, que toma conta de cada segundo do seu dia, quando a tarde chega e Júlio volta do trabalho, ela não consegue, definitivamente não consegue se conter, ele mal entra em casa e ali está ela.

    — Conseguiu???????? — Ela o indaga com o olhar cheio de esperança.

    — Calma… calma. — Ele caminha até a sala e se senta no sofá.

    Como um vulto ela se senta ao seu lado

    — Era isso que você queria? — Ele apresenta um pequeno envelope branco.

    — É o ingresso? — Ela praticamente o arranca de sua mão.

    — Foi difícil, só maiores de idade podem entrar. De menor só acompanhado de um responsável. — A fala de Júlio sai com um tom segurança.

    — E o que mais?

    — O dono do local é um amigo meu, conversei com ele e arrumei um jeito de você entrar lá. Mas escuta! Quando você chegar na entrada, vai haver um segurança, você só precisa falar seu nome para ele e mostrar esse ingresso que eles vão te dar acesso livre para todo estabelecimento.

    — Séééérioo? —Ela dá um salto e o abraça pela lateral o agradecendo — Obrigada pai!

    Ela se levanta e começa a ir em direção as escadas que leva para o segundo andar, e faz uma breve pausa e volta seus olhos para seu pai que já está levantado.

    — Pai! Amanhã cedo vou passar na loja comprar umas roupas ok?

    — Fique à vontade, se precisar de algo e só me falar.

    Após consentir com a cabeça ela retoma o caminho do quarto.

    A noite logo cai e a coruja sorrateiramente assume seu posto no muro à espreita da próxima vítima. E Ali fica por toda a noite, até que os primeiros raios de sol se chocam com as copas das árvores. Logo levanta voo em direção a sua toca.

    Quem também se levanta é Sarah que rapidamente toma um banho e se veste com uma calça jeans e uma camisa preta colada, quando o horário comercial chega, não demora a sair as compras, assim a manhã logo passa como o almoço, a tarde vem e o que parecia que iria demorar uma eternidade, enfim bate à porta.

    O sol que reinou por todo o dia, começa a se despedir, o céu que estava pintado com um tom intenso de azul, agora tem o laranja no horizonte acenando a chegada do crepúsculo. Do outro lado, o azul-escuro começa a contaminar o horizonte, que após alguns minutos já se espalhou por mais da metade de toda a imensidão do céu.

    Os últimos raios de sol se despedem de seus súditos, assim como o dia vem, a noite também se faz presente.  E com ela, as estrelas do show se posicionam para brilhar e é claro, a estrela principal dessa noite já está começando a dar sua cara. Mais resplandecente que de costume, algo especial parece ter sido reservado para esta noite.

    A fila se acumula, um de cada vez, todos vão entrando. Vibrações tomam conta do ar gélido da noite e se propagam por todo o arredor. E ali está ela, prestes a entrar, terminando de conversar com o segurança que após passar uma pequena lanterna que emite uma luz roxa sobre o ingresso e faz ele brilhar na mesma cor.

    O olhar dela até brilha com a cena.

    A sua frente um pequeno corredor a leva de encontro a luzes coloridas, no fim há um grande salão com pessoas pulando e remexendo de forma que parece aleatória. A cada passo a vibração fica maior, a sensação de perca do controle dos próprios movimentos começa a aparecer, sua cabeça começa a sacudir levemente e a timidez logo vai desaparecendo. A cada metro andado, uma parte de seu corpo é contagiada, sem sabe exatamente o porquê, se deixa ser levada pelo ritmo, as batidas, a vibe.

    Seu cabelo está solto, veste um top preto, ema blusa jeans cinza amarrada na cintura que está sobre uma calça preta jeans que vai até a canela. E calça um tênis baixo com solado branco com uma meia preta até o tornozelo.

     A cada minuto seus movimentos ficam cada vez mais fluídos e sintonizados com a música que ecoa em cada fibra muscular de seu corpo.

    Uma barriga marcada com leves divisórias, braços definidos que expõe sob a pele clara os músculos a cada movimento, costas torneadas e ombros largos.

    Seu sorriso de boca fechada, fala sem palavras. O mundo não existe fora dali, só existe ela, as vibrações, o som e a vontade incontrolável de dançar em completa sintonia. Aos olhos de quem a observa, uma profissional da dança, seus movimentos encantam e cativam a todos, que sentem a vibe emanando dela e logo se entregam e remexem sem parar.

    Um pouco distante dali em uma calçada, um rato se aventura na tentativa de alcançar um novo terreno para explorar, ele parece temer algo, ameaça sair de um pequeno buraco no muro por duas vezes, mas ele volta receoso.

    Na terceira tentativa ele não hesita e avança com tudo, desbravando a grandiosa calçada a saltos largos. Eis que surge um vento vindo de traz, seus pelos se arrepiam, um vento frio traz consigo a dona da vida, com suas deslumbrantes asas.

    Para uns representa liberdade, para outros representa o fim. Suas ferramentas são garras mortais que não falham em sua tarefa, a presa foi capturada e levada para não muito longe dali. Em um muro, uma coruja aprecia sua refeição silenciosa enquanto observa um jovem vindo em sua direção. Diferente das últimas vezes, ela parece estar saltitante, realizando movimentos anormais para o restante da sua espécie, após alguns segundos de vinda e ida, ela logo desaparece por detrás da porta de uma casa.

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