Capítulo 2027 - Coração de Deus
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Coração de Deus…
Essa foi a palavra que Rain ouviu sendo dita ao redor do acampamento da Sétima Legião, que estava em decadência. A batalha calamitosa entre os dois grandes exércitos ocorrera na parte central do Esterno, logo acima de onde estaria o coração do deus morto.
Por isso, as pessoas a chamavam de Batalha no Coração de Deus. Um nome tão apropriado quanto qualquer outro, na verdade. Não houve nada de divino naquela maldita batalha, mas muitos corações foram marcados e partidos em sua boca. O acampamento da Sétima Legião estava visivelmente mais vazio do que antes.
O cantinho deles também… felizmente, não porque a coorte tivesse sofrido perdas. Era simplesmente porque Fleur fora chamada para ajudar a tratar os feridos, e Ray estava lhe fazendo companhia. Então, Rain e Tamar ficaram sozinhas.
Rain preparou o jantar enquanto Tamar cumpria seus deveres de centurião. Feito isso, comeram em silêncio e adormeceram no mesmo lugar, exaustas demais — tanto mental quanto fisicamente — para sequer se esconderem do brilho opressivo do céu nublado em suas tendas.
Eles não tinham muito tempo para descansar.
Assim que os soldados exaustos pudessem marchar, o Exército de Song abandonaria o acampamento temporário e recuaria para o norte, em direção à Planície da Clavícula. O Exército da Espada provavelmente os perseguiria… então, a marcha prometia ser árdua e implacável.
Poucas horas depois, Rain e Tamar foram acordadas por Fleur e Ray, que haviam retornado do hospital de campanha. A delicada curandeira parecia alguém à beira da exaustão da essência, e seu namorado furtivo não estava muito melhor. Rain bocejou, esfregou os olhos e empurrou a panela meio cheia de ensopado do exército na direção deles.
“Aqui… coma.”
Ray acenou com a cabeça em agradecimento e sentou-se. Fleur, por sua vez, olhou para Tamar.
“Seu pai está te procurando. Ele está no hospital de campanha.”
Percebendo o olhar penetrante de Tamar, ela colocou a mão em seu ombro e acrescentou em um tom suave:
“Os ferimentos dele eram graves, mas ele está bem agora. Não se preocupe.”
Tamar demorou-se um momento, depois assentiu e levantou-se. Rain não tinha nada melhor para fazer, então decidiu seguir a jovem Herdeira. As duas caminharam pelo acampamento da Sétima Legião, cruzando a avenida que a separava das outras divisões do Exército de Song. Enquanto caminhavam, ouviam os soldados falando sobre a batalha em vozes entorpecidas e contidas.
Alguns compartilhavam seus medos e preocupações sobre a retirada e as perspectivas futuras do Exército de Song. A maioria, porém, falava sobre a Estrela da Mudança…
E o Senhor das Sombras.
Rain lançou um breve olhar para sua sombra, sentindo-se um pouco estranha. Ela presenciara o confronto entre seu irmão e os sete Santos de Song. A fúria, a escala arrepiante, a destruição…
Apesar da segurança dele, ela ficou extremamente preocupada enquanto assistia, cerrando os punhos e esquecendo de respirar. Era uma situação tão estranha — afinal, o Senhor das Sombras era um dos campeões inimigos, e ainda assim, ela não conseguia deixar de torcer por ele em vez de pelo seu próprio lado.
No final, sua figura imponente desmoronou na escuridão, e a batalha continuou em uma escala humana muito menor. Então, Rain não viu como terminou, mas logo soube o resultado. O irmão dela havia derrotado os sete Santos, incluindo três das filhas da Rainha. Esmagado eles, de verdade.
Ele também matou seis santos — um com suas próprias mãos e outros cinco com a ajuda de seus servos. Não é de se admirar que as pessoas não conseguissem parar de falar sobre ele, tremendo de medo enquanto compartilhavam os detalhes do confronto sangrento.
A própria Rain sentiu-se obrigada a sentir medo.
… Claro que não. A imagem do seu irmão excêntrico, rabugento e carinhoso era o oposto de aterrorizante. Como ela poderia ter medo de alguém que lhe fazia panquecas deliciosas e fofinhas para comemorar uma caçada bem-sucedida? Ela se perguntou o que os soldados do Exército de Song pensariam se descobrissem que o grande e terrível Senhor das Sombras tinha o hábito de preparar cafés da manhã nutritivos para ela.
‘É melhor eu guardar isso para mim…’
O hospital de campanha não ficava longe, mas ainda assim Rain e Tamar demoraram um pouco para chegar lá. Nenhuma delas estava com vontade de conversar e não haviam trocado uma palavra sobre a batalha. Enquanto caminhavam, no entanto, Tamar olhou para Rain e hesitou por alguns momentos.
“Você está bem?”
Rain levantou uma sobrancelha. Claro que ela não estava bem. Ninguém estava.
… Mesmo assim, ela forçou um sorriso.
“Claro. Por quê?”
Tamar franziu um pouco a testa.
“Você simplesmente parece… diferente de si mesma, de alguma forma.”
Rain permaneceu em silêncio por um tempo, depois deu de ombros com um sorriso impotente.
“Você percebeu, né? É… Não sei. Acho que estou me sentindo um pouco estranha hoje.”
Ela não conseguia explicar direito, mas havia de fato algo diferente nela desde o fim da batalha. Era sutil e quase imperceptível, nem físico nem espiritual… mas estava definitivamente lá, no âmago do seu ser.
Chegaram ao hospital de campanha. Era um enorme pavilhão de lona impregnado com o fedor de sangue e suor — o cenário lá dentro parecia uma pintura do inferno, mas, felizmente, não era tão ruim quanto poderia ter sido. Muitos dos feridos no centro do campo de batalha haviam sido milagrosamente curados pelas chamas brancas de Nephis. Dos que restaram, os casos mais graves já haviam sido tratados pelos curandeiros Despertos… só que não havia muitos curandeiros poderosos no mundo, e aqueles que pertenciam ao Exército de Song não possuíam essência infinita.
Então, os soldados que sofreram ferimentos relativamente leves só podiam esperar enquanto eram tratados por médicos comuns. Rain fez uma careta e tentou não cobrir o nariz. Os guerreiros estavam sendo tratados em um espaço separado dentro do pavilhão. Ela se afastou, deixando Tamar entrar sozinha, e esperou pacientemente perto da entrada.
No entanto, ela ainda conseguia ouvir parte da conversa entre sua amiga e seu pai, o Santo de Sorrow.
“… Ouvi dizer que você conheceu Telle, do clã Pena Branca.”
Ah, então esse era o nome da bela Cavaleira Emplumada. Não é de se admirar que ela fosse tão problemática.
“Sim… eu perdi.”
A voz contida de Tamar revelava um toque de desânimo. O Santo de Sorrow pareceu rir antes de dizer calmamente:
“Tudo bem. Eu também perdi.”
Houve um longo silêncio, e então ele acrescentou com um suspiro:
“É estranho, não é? O Senhor das Sombras salvou a vida da minha filha, mas hoje, eu entrei em batalha com a intenção de matá-lo. A Estrela da Mudança deveria ser uma das maiores ameaças ao Domínio de Song, mas hoje, ela curou e salvou nossos soldados…”
Rain não ouviu o resto, porque naquele momento, um sussurro silencioso ressoou em sua mente.
[Ei… preciso falar com você.]
Ela hesitou por um momento.
[Falar, então? Estou ouvindo.]
Entretanto, sua sombra se moveu levemente na luz trêmula de uma Memória luminosa, como se estivesse balançando a cabeça.
[Não, aqui não. Vá procurar um lugar reservado.]
Rain suspirou. Ela seria engolida por aquela casa estranha novamente? Mas ela não se importou realmente. Talvez seu irmão pudesse explicar a sutil mudança que aconteceu com ela no campo de batalha…
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