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    Tantas coisas aconteceram, e pior do que isso, coisas não paravam de acontecer. Então, Jest estava ocupado o tempo todo e não prestou muita atenção ao jovem Anvil depois que as aulas terminaram. O garoto era uma presença constante em sua vida, mas mais um personagem secundário do que um personagem principal. Ainda assim, eles eram próximos — ou pelo menos tinham sido. Desde o ano passado… Jest havia se distanciado de todos que estavam perto da idade de serem infectados pelo Feitiço do Pesadelo. 

    Mesmo que fosse irracional e covarde, ele precisava fazer isso para evitar desmoronar completamente. Anvil havia contraído o Feitiço, enfrentado o Primeiro Pesadelo e retornado vivo. Eles se viram uma ou duas vezes desde então, e mesmo que tudo parecesse bem, Jest sentia que algo não era exatamente o mesmo. Bem, é claro… não seria. O Primeiro Pesadelo foi uma experiência formativa para muitos, e ninguém era o mesmo depois de sofrer seus horrores. Então, mesmo que Anvil tivesse mudado, provavelmente não havia nenhum significado oculto por trás disso. Talvez Jest apenas se sentisse triste por se distanciar do garoto, considerando que já haviam sido próximos. 

    Ele queria visitar o garoto na recém-criada Academia, mas isso e aquilo continuavam atrapalhando. No fim, não demorou muito para o solstício de inverno que Jest finalmente se viu fazendo uma visita. Ele fez questão de se prevenir, chegando ao ponto de não beber nada na noite anterior. Afinal, ele tinha uma imagem a manter diante dos jovens. A Academia era tão impressionante quanto ele esperava. Ele encontrou Anvil na biblioteca, estudando artigos acadêmicos sobre várias línguas mortas do Reino dos Sonhos e as reproduções de obscuras gravuras rúnicas encontradas em diferentes partes do mundo. Jest não conseguia imaginar exatamente o porquê, mas vagamente se lembrava de ter visto Guardião fazendo o mesmo.

    “Ei, garoto.”

    Quando ele chamou com um sorriso, Anvil olhou para cima, estudou-o por alguns instantes e então assentiu. 

    “Tio Jest.”

    O cumprimento não foi exatamente hostil… mas também não foi muito caloroso, muito diferente da alegria com que o garoto o cumprimentara antes, no passado. Jest hesitou por um instante, infantilmente magoado com aquela reação sem graça. Seria simplesmente porque não eram tão próximos quanto antes, ou havia outro motivo?

    Ainda sorrindo, Jest sentou-se e olhou para Anvil. “Engraçado te ver aqui. Eu passei pelo dojo primeiro, e o que você sabe? Eis que estava lá a garota da Chama Imortal… ah, eu deveria chamá-la de Sorriso do Céu agora, não é? Bah, que nome difícil.”

    Ele sorriu. “Bem, enfim. Ela estava se divertindo muito treinando com um cara… ele também é uma ameaça com uma espada. Vocês dois não eram grudados? Por que você a deixou lá sozinha?”

    Anvil hesitou um pouco, depois deu de ombros. “Não preciso de mais prática com a espada.”

    Jest estalou a língua e balançou a cabeça em tom de reprovação. “Não é disso que estou falando, seu idiota! Você não sabe de nada? Se você não for rápido, aquele cara vai roubá-la bem debaixo do seu nariz!”

    Isso finalmente provocou uma reação. Anvil ergueu os olhos das inscrições que estivera estudando e encarou Jest, com seus olhos cinzentos e frios se tornando um pouco sombrios. Ele sustentou o olhar por um tempo e depois desviou o olhar mais uma vez. “Se ela encontrar alguém que se importe com ela, então lhe desejarei tudo de bom. Sorriso do Céu é uma grande amiga minha, então ficaria feliz por ela.”

    Jest franziu a testa. Não, havia algo realmente errado com o garoto? Ou ele era simplesmente um tolo desajeitado que não fazia ideia de como tratar uma garota? Isso também não seria surpreendente. Honestamente… era um milagre que Anvil existisse. Os dois filhos de Guardião eram parecidos com o pai, e Jest ainda não fazia ideia de como aquele cara conseguira encontrar uma mulher que suportasse sua personalidade insuportavelmente rígida e séria, quanto mais convencê-la a se casar com ele. De qualquer forma, aquele não era um bom momento para discutir assuntos do coração, e Jest não era a melhor pessoa para ter uma conversa dessas com um adolescente, de qualquer forma. Havia coisas muito mais importantes para conversar. Ele se demorou um pouco e então perguntou:

    “Então, como você se sente? O solstício de inverno está se aproximando.”

    Anvil assentiu. “Estou suficientemente confiante. Meus preparativos foram minuciosos.”

    Jest suspirou. “Bem, é verdade. Você é bem forte para um Adormecido, e o Aspecto que você tem é muito útil. Mesmo assim, não se acomode. O solstício de inverno é diferente do Primeiro Pesadelo — em primeiro lugar, não há garantia de que o Feitiço o levará para perto do Bastion. Em segundo lugar, e mais importante, o Reino dos Sonhos não foi feito sob medida para você, como o Pesadelo. Você pode encontrar abominações que são simplesmente fortes e terríveis demais para você enfrentar. Não seja tímido e fuja se isso acontecer.”

    Anvil o estudou em silêncio.

    “Eu sei, tio Jest.”

    Ele parecia estranhamente calmo. Jest, no entanto, não estava. A primeira jornada ao Reino dos Sonhos resultou em muito menos baixas do que o Primeiro Pesadelo — mas isso só porque aqueles que eram fracos já haviam sido abatidos pelo teste do Feitiço. Na verdade, inúmeros Adormecidos ainda não conseguiram retornar do Reino dos Sonhos com vida. Anvil ainda estava em perigo, e Jest, já tendo perdido um filho, estava apavorado de perder outro. 

    Mas não havia nada que ele pudesse realmente fazer pelo menino. Outros pais, mentores e parentes poderiam conceder Memórias ou até mesmo Ecos preciosos aos Adormecidos antes do solstício de inverno, mas Jest não podia nem fazer isso. Porque ele não possuía, e não podia, possuir nenhum. Então, ele só podia tentar animar Anvil. Jest sorriu. 

    “Você sabe-tudo. Não pode fingir que está ouvindo meus sábios conselhos? Deixa eu te contar uma coisa… quando seu pai e eu éramos jovens, não havia nem Cidadelas humanas no Reino dos Sonhos. Mesmo assim, conseguimos conquistar uma, então nem pense em não voltar. Não vou te perdoar se voltar, ouviu?”

    Anvil sorriu educadamente. “Acho que posso me esforçar, tio Jest. Não posso sair por aí ofendendo os idosos, posso?”

    Jest riu. Finalmente, o garoto pareceu humano novamente. O momento de leviandade, porém, não durou muito. Logo, o sorriso desapareceu dos olhos do jovem Anvil, e ele voltou a encarar suas inscrições. Após alguns instantes de silêncio, perguntou de repente:

    “Tio Jest… é possível derrotar um Defeito?”

    O sorriso de Jest congelou em seus lábios. “Ah. Então é esse o motivo.”

    Ele permaneceu em silêncio por alguns instantes, depois deu de ombros. “Bem… mais ou menos? Mas não exatamente. Um Defeito é um Defeito, então ninguém consegue escapar dele. Não significa que não possamos conviver com os nossos. Tudo depende do que você tem, mas geralmente… a maioria dos Despertos sofre bastante no começo, mas depois aprende a lidar com os seus aos poucos.”

    Não era algo sobre o qual as pessoas normalmente falavam, mas se Anvil não podia compartilhar suas preocupações com Jest, então quem mais estaria lá?

    Jest hesitou por um momento. “Por exemplo. Você sabe qual é o meu Defeito?”

    O garoto lançou-lhe um olhar estranho. “Isso… acho que todo mundo sabe, tio Jest.”

    Jest assentiu, um pouco decepcionado. “Bem, justo. Acho que é bem óbvio — afinal, as pessoas estão fadadas a tirar conclusões depois de me conhecerem por anos. Onde mais você encontraria um Desperto que nunca usa Memórias? Não poder usar Memórias é um Defeito bem feio… hein, que expressão é essa?”

    Em dado momento, os olhos de Anvil se arregalaram um pouco. Ao ouvir a pergunta, ele balançou a cabeça apressadamente. “Não, não… você tem razão, tio Jest. Esse foi… esse foi definitivamente o meu palpite também.”

    Jest sorriu amargamente. Ultimamente, sorrir não era fácil para ele, mas ele estava se esforçando para ajudar o menino a se sentir calmo.

    “Imagino. Enfim, não conseguir usar Memórias é um Defeito bastante grave, mas vivi a vida inteira, venci inúmeras batalhas e conquistei o Segundo Pesadelo apesar disso. Só tive que aprender a confiar na minha astúcia, habilidade e força. Veja bem, garoto, não é tão difícil aprender a lidar com o seu Defeito… de uma forma ou de outra. No entanto, você precisa ser capaz de fazer uma coisa para realizar esse feito.”

    Anvil olhou para ele por um tempo, seus olhos ficando estranhamente melancólicos.

    “Que coisa?”

    Jest riu baixinho.

    “Ah, acho que é… pensamento não convencional? Você precisa ser capaz de mudar sua perspectiva e encarar o problema sem preconceitos. Você precisa mudar sua maneira de pensar. Assim, você pode encontrar uma solução mesmo que pareça não haver nenhuma.”

    Anvil permaneceu em silêncio por um tempo e então repetiu lentamente:

    “Mudar… a maneira como penso.”

    Então, ele não disse mais nada. Jest também não o apressou. No entanto, por fim, disse cautelosamente:

    “Se você compartilhar exatamente qual é o seu Defeito… talvez eu possa te dar um conselho melhor.” Em algum lugar distante, Cassie prendeu a respiração ao vivenciar a lembrança vívida. Ela estava tão perto…

    Anvil hesitou por um instante e então sorriu. “Talvez eu faça isso. Depois que eu retornar do Reino dos Sonhos como um Desperto.”

    Jest riu. “Seu pirralho atrevido, eu te contei o meu! E você vai me deixar na mão? Que bom! Não saia por aí revelando seu Defeito. Guarde em segredo.”

    Com isso, a conversa terminou. Depois que Anvil retornou do Reino dos Sonhos como um Desperto, coisas aconteceram, e mais coisas continuaram acontecendo, adiando a próxima conversa privada. E no dia em que eles encontraram uma razão para falar sobre Defeitos novamente…

    Jest desejava que nunca tivessem feito isso.

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