Capítulo 619 - Maldição
“Um obstáculo?” Fernando indagou, intrigado. Sem entender como as Guildas de Runas poderiam estar atrapalhando as Dez Grandes Legiões de alguma forma.
Alfie assentiu, com uma expressão séria.
“Digamos que o dever da Guilda Solus, bem como as demais, ia muito além de apenas pesquisar novas Runas e construir simples Matrizes, nós já fomos um pilar central da Humanidade. Houve uma época em que depois dos Magistas, os Mestres de Runas eram a classe mais influente e importante de Avalon. Foi graças a nós que a Humanidade conseguiu se estabelecer e defender as cidades por meio das Matrizes de Defesa e muitas outras técnicas revolucionárias. Entretanto, os Mestres de Runas sempre foram uma classe extremamente moral e justa, ao ponto de fazer com que muitos as usassem como referencial, sempre abominando as guerras internas da Humanidade, bem como suas ações cruéis e as pesquisas no uso de Magia da Escuridão no geral, inclusive seus grandes inimigos sempre foram as Guildas das Trevas que agiam fora da lei e usavam de forma recorrente Magias legalizadas e as proibidas. Porém, esse lado conservador e extremamente protetor não estava alinhado com os interesses das Dez Grandes Legiões. Sempre que havia um grande conflito interno ou ações em larga escala das Guildas das Trevas, a Guilda Solus, bem como outras se envolviam, pressionando o Conselho Superior em busca de intervenção, com tréguas, cessar-fogo ou mesmo ação militar em alguns casos. Isso, por muitas vezes, acabava interrompendo os planos de várias das Legiões dominantes que lucravam com certos conflitos e negócios obscuros, o que gerou um rancor de longa data, ao ponto que apesar de não se tornarem hostis diretamente, começaram a sabotar nossas Guildas de Runas sempre que podiam, seja comercialmente, ou por outros meios.”
Ao ouvir até aí, Fernando começou finalmente a entender as nuances envolvidas.
Então era tudo sobre ganhos e lucros… pensou, suspirando.
Onde havia grupos poderosos e disputas por interesses, sempre teria derramamento de sangue. Isso era uma realidade que não poderia ser evitada. Apesar de estarem tentando ajudar, as Guildas de Runas foram vistas como um empecilho.
Logo o sujeito de óculos continuou.
“Mas mesmo que as Guildas de Runas fossem incômodas, as Dez Grandes Legiões nunca agiram contra elas, pois o peso de sua importância era muito alto. No entanto, tudo mudou quando novas Runas deixaram de ser descobertas ou construídas, isso fez o valor da classe dos usuários de Runas despencar. Somado a isso, houve alguns traidores que eram Especialistas em Runas que se desviaram do campo de pesquisas e passaram a se especializar apenas na construção de Matrizes com as Runas já existentes, com o ápice dessa classe recém criada, financiada pelo Conselho Superior, sendo os Mestres de Matrizes… Esse foi o último prego no nosso caixão.” Alfie disse, com uma voz pesada. “Quando as primeiras Guildas de Mestres de Matrizes foram estabelecidas, todos pararam de contratar os serviços dos Mestres de Runas, o que nos causou sérias dificuldades financeiras. Além disso, pouco tempo depois, as Guildas das Trevas, que antes hesitavam em nos confrontar diretamente, declararam uma guerra aberta. A Guilda Solus, como uma das maiores e mais importantes, foi um alvo central do inimigo. Nossos Aprendizes e Especialistas costumavam ficar estacionados em várias cidades, para oferecerem serviços na manutenção das Matrizes de Defesa, mas logo viraram alvos fáceis, sendo perseguidos e mortos… Perdemos muitos dos nossos no ataque inicial.”
Conforme o Alfie relatava os fatos, a expressão de Wedsnagauer ficava cada vez mais escura, como se pudesse lembrar vividamente daqueles dias sombrios.
“Nós reagimos assim que entendemos a gravidade da situação. Reunimos nossas forças e contra-atacamos, desferindo ataques cirúrgicos às muitas de suas bases. Anteriormente o Grande Senado era composto por Oito Guildas das Trevas, mas conseguimos destruir cinco delas, restando apenas as atuais três ‘Grandes’ Guildas das Trevas: Família Lopes, os Gutenberg e a Céu Azul. Mas… isso foi feito com um grande custo. A maioria das Guildas de Runas foram destruídas nessa guerra, com seus remanescentes se refugiando na Guilda Solus. Lá criamos uma grande Matriz de Defesa para nos proteger, mas o inimigo era poderoso e numeroso e era apenas uma questão de tempo para que rompessem nossas defesas… Inicialmente não queríamos envolver outras forças nesse confronto, mas quando não tínhamos mais escolha, pedimos por ajuda do Conselho Superior. Porém…”
Antes que o homem pudesse continuar, Wedsnagauer, que estava em silêncio esse tempo todo, o interrompeu, com seu rosto completamente vermelho de raiva.
“Aqueles desgraçados… eles nunca responderam, seja o Conselho Superior ou qualquer uma das malditas Dez Grandes Legiões, todos fizeram ouvidos surdos! Na verdade, provavelmente as Guildas das Trevas agiram com seu aval.” falou, com a voz alta, extremamente furioso. “Lutamos dia e noite por dois meses… por malditos dois meses, e eles nunca vieram!”
Um longo silêncio se seguiu após a explosão de raiva do velho homem.
Fernando observou tudo quieto, sem saber o que dizer para confortar seu professor.
Ao lado, a expressão de Alfie era de um misto de raiva e tristeza ao ver a reação do Doutor, que sempre ficava temperamental quando se tratava daqueles tempos. Logo o assistente continuou.
“No fim, nossas defesas foram rompidas e as Guildas das Trevas invadiram, seja a Guilda Solus ou as demais, todas pereceram juntas. Naquele dia, o legado das Runas foi praticamente dizimado. Nossos Aprendizes, Especialistas, Sêniors e mesmo Mestres caíram um após o outro. De alguma forma, eu, o Doutor e alguns outros poucos conseguimos abrir um caminho em meio às fileiras inimigas e escapamos, mas rapidamente nos espalhamos enquanto eles nos caçavam. Não temos certeza se alguém mais escapou naquele dia.”
Ouvindo todo o acontecido, Fernando ficou sem palavras. Mesmo que não estivesse diretamente envolvido, ele finalmente conseguia entender porque seu professor e Alfie Caiman odiavam tanto as Legiões e possuíam uma certa aversão a usuários de Matrizes.
Não só o Conselho Superior havia ignorado as Guildas de Runas que tanto contribuíram para a Humanidade, como muito provavelmente também as traíram, tendo orquestrado todo o ocorrido.
Até mesmo a Legião Condor estava envolvida? O jovem pálido perguntou-se, apesar de já saber a resposta.
De seu ponto de vista, Ferman era uma pessoa honrada e jamais compactuaria com tais atrocidades, mas mesmo sendo um Cavaleiro, no fim ele era apenas um homem, uma única voz. Mesmo que ele fosse contrário a isso, o rapaz duvidava que poderia contrariar sua própria Legião ou mesmo o Conselho Superior.
Lembrando-se das palavras de Ferman naquele dia, sobre expiar seus pecados e o aconselhando a ser uma pessoa melhor que ele próprio, o fez ficar pensativo.
Até o Cavaleiro Branco, que era conhecido como o mais bondoso e honrado dos Cavaleiros, tinha seus arrependimentos e pecados e estava de mãos atadas frente aos poderes das Legiões.
Logo Wedsnagauer, que estava ansioso, pareceu se acalmar, quando respirou fundo, virando-se, então olhou para Fernando, diretamente em seus olhos.
“Agora, meu aluno, você sabe do nosso passado, o passado de um usuário de Runas. Não vou pedir que embarque comigo em minha sede de vingança, mas peço que valorize os ensinamentos das Runas e se puder, passe-os adiante no futuro.”
O jovem Tenente, que estava em silêncio, assentiu.
“Farei o meu melhor, professor.” respondeu. “Não deixarei que as artes das Runas sejam esquecidas, você tem minha palavra.” garantiu, com uma voz firme e resoluta.
Ouvindo isso, Wedsnagauer sentiu toda a raiva em seu peito ser lavada, quando abriu um sorriso em seu rosto. Mesmo com todo o passado sombrio, o velho homem sentia como se um raio de esperança tivesse surgido à sua frente, seja Fernando ou Emily, cada um de seus discípulos lhe dava vontade de apenas esquecer sobre vingança e viver o restante de sua vida em paz.
No entanto, logo seu olhar recaiu sobre o jovem amarrado na cadeira ao lado. Por mais que ele não estivesse buscando seus inimigos, eles ainda vieram até ele, ou mais precisamente, até seu aluno.
“Quanto a isso… Não garanto que posso desfazer o Contrato que o está impedindo de falar, mas posso tentar. Porém, pode ser que ele morra no processo ou que seu cérebro sofra danos irreparáveis, você está bem com isso?” Wedsnagauer perguntou.
Fernando ficou pensativo por um momento, então olhou para Lincon, em dúvida. Ele ainda precisava do sujeito para lhe ajudar com a Magia de Eletricidade, mas sentiu que obter informações sobre a Família Lopes era ainda mais importante.
“Sem problemas, vocês podem fazer. Tenho certeza de que é o que ele quer também.” falou, olhando para o homem.
O assassino, que estava amarrado na cadeira, com papéis em sua boca, emitiu alguns ruídos, como se estivesse protestando, mas o rapaz apenas o ignorou.
“Vamos precisar de pelo menos um dia, então informe aos membros do seu Batalhão que a aula de Runas de hoje está cancelada.” O velho homem falou.
“Tudo bem.” Fernando concordou. “Então eu o o deixo em suas mãos professor.”
O Mestre de Runas assentiu, quando começou a retirar várias coisas de sua Pulseira de Armazenamento, jogando-as sobre sua bancada.
Com tudo acertado, o jovem Tenente se preparou para sair, mas foi seguido de perto por Alfie Caiman, que o acompanhou até a saída.
Fernando olhou para o homem de forma desconfiada.
Ele não vai me ameaçar de novo, vai? pensou, suspirando, ainda se recordando do dia em que Alfie invadiu seu escritório.
Assim que ambos saíram do depósito, fechando a porta atrás deles, o Assistente se virou em sua direção.
“Não é uma Doença de Mana.” falou, com uma expressão séria.
“O quê?” Fernando perguntou, sem entender, mas logo um clique soou em sua mente, quando entendeu. “Você quer dizer…”
“O que afeta a mente do Doutor não se trata de uma simples Doença de Mana, o que o aflige é… uma Maldição.”

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