Capítulo 645 - Saída Abrupta
Ouvindo aquela entonação tão familiar, a expressão do rapaz pálido mudou, ficando fria como o gelo.
“É melhor me soltar, ou eu e você teremos problemas!” ameaçou, com uma voz claramente irritada.
“Eu disse, advinha quem é??” A voz repetiu, de forma insistente, dando mais ênfase na indagação.
Esse fodido! Fernando pensou, cheio de raiva. Ele sabia exatamente a quem pertencia essa voz, não era a outro se não aquele conhecido como Urso Tirânico, Raul Garcia. Eu não vou participar desse joguinho idiota! decidiu-se, ficando em silêncio.
Vendo isso, o sujeito moreno aumentou ainda mais o aperto, fazendo alguns ossos do rapaz estalarem.
“Advinha quem é?!” repetiu novamente, dessa vez com uma voz ameaçadora.
De repente, duas mulheres, uma baixinha de óculos e outra alta e magra, cada uma com uma pequena pilha de papéis em suas mãos, viraram no corredor, dando de cara com àquela cena inusitada, onde um homem moreno agarrava um rapaz branco e pálido, tapando seus olhos e prendendo-o no lugar.
“O que é isso?” A garota baixinha perguntou, assustada.
A mulher magra e alta ficou chocada, mas respirou fundo.
“Apenas continue andando e finja que não viu nada.” murmurou, com uma voz trêmula. “Alguns militares gostam de fazer esse tipo de ‘coisa’ em segredo, mas eles detestam que os outros descubram…”
A outra garota imediatamente ficou apreensiva ao ouvir isso.
Mais cedo, naquele dia, ela soube que uma recepcionista havia sido morta por um Tenente Nomeado maluco e outras duas foram feridas e mesmo assim ele não só não havia sido punido como até mesmo a Administradora Amélia tinha sido exonerada temporariamente do cargo. Isso fez muitos dos funcionários ficarem com receio dos militares.
Tac! Tac! Tac!
As duas garotas passaram em completo silêncio, evitando olhar na direção dos dois homens.
Raul apenas acompanhou ambas com seu olhar, parecendo sorrir. Enquanto o próprio Fernando, apesar de não vê-las, devido a mão do sujeito, pôde ouvi-las completamente. Isso o fez ficar completamente vermelho de vergonha.
Numa última tentativa, ele ativou sua Habilidade Fúria, aumentando seu atributo de Físico em 3 pontos, quando usou tudo que tinha, mas os braços do sujeito não se moveram minimamente.
“Senhor Raul, dá para me soltar de uma vez?” O rapaz finalmente desistiu, suspirando, sabendo que não era páreo para ele em questão de força.
“Hahaha! Olha só, acertou de primeira. Parece que somos realmente próximos. Nunca duvidei de você garoto!” disse, rindo alto, enquanto afrouxava o aperto, libertando-o.
Assim que se virou, o jovem Tenente o olhou calmamente em seus olhos, então sem dar qualquer indicação, lançou um soco rápido em direção ao seu rosto.
Bam!
Sem qualquer dificuldade, o Capitão defendeu o ataque, suavizando seu soco com sua palma.
“Muito lento.” Raul falou, sorrindo.
Swish! Swish! Swish!
Fernando lançou mais três socos rápidos, intercalando entre direita e esquerda, como um boxeador.
Bam! Bam! Bam!
O braço esquerdo de Raul se moveu habilmente, bloqueando cada ataque, enquanto seu corpo permanecia imóvel. Logo o sujeito usou a outra mão para bocejar levemente.
“Você melhorou sua técnica, está mais afiado, mas ainda é muito fraco.” comentou, de forma zombeteira, então após aparar o último ataque, fechou seu punho direito, quando mal reuniu impulso e disparou um soco numa velocidade assustadora na direção do rapaz pálido. “É assim que se faz!”
Swish! Boom!
Fernando mal teve tempo para entender o que aconteceu, o golpe o atingiu diretamente na têmpora, jogando-o brutalmente no chão, fazendo sua cabeça fazer um estalo estranho enquanto se chocava contra o solo. Quando se deu conta de si, estava deitado no chão, com tudo ao seu redor girando e com sua visão ficando turva, enquanto o lado direito da sua nuca doía terrivelmente.
Raul se agachou ao lado dele, observando-o com um sorriso zombador.
“Isso me lembra os velhos tempos.” comentou, com uma voz levemente reminiscente, antes que os olhos dele se fechassem lentamente. “Ei, ei, você realmente vai apagar só com isso? Porra, moleque, eu tava só brincando! Droga, acho que não tem jeito.” resmungou, quando agarrou o rapaz pelo braço, então começou a arrastá-lo pelo longo corredor, como um saco de batatas, enquanto assoviava de forma despreocupada.
De repente, ambos cruzaram novamente com as duas garotas, que estavam logo na intersecção do corredor, observando-os secretamente, claramente assustadas.
“Bom dia, senhoritas.” O sujeito moreno cumprimentou, levando a mão livre até a testa.
As duas garotas congelaram, quando apenas assentiram, sem sequer se atreverem a responder.
Quando o sujeito arrastando o outro deu alguns passos se afastando, a garota baixinha não pôde evitar comentar:
“Então é assim que eles ‘brincam’? Isso não é um pouco brutal demais?” murmurou, com um rosto assustado.
“Quem sabe? Até que é interessante.” A garota alta e magra respondeu, com um leve rubor nas bochechas.
De repente, Raul parou seus passos, então olhou para trás.
“Ei vocês duas, interessadas em se juntar?” perguntou, enquanto lambia os lábios, de forma maliciosa.
A garota baixinha e a alta congelaram, quando se entreolharam e falaram ao mesmo tempo:
“Corre!”
As duas mulheres largaram os papéis, fazendo-os voar para todos os lados, enquanto dispararam, aos gritos.
“Hahahaha!” Raul riu alto, então puxou Fernando, jogando-o no ombro. “É melhor meter o pé daqui.”
…
Pouco tempo depois, Fernando, que ainda estava com a visão turva, abriu os olhos. Ao ver um teto acima, ficou surpreso, quando se levantou assustado.
“Finalmente acordou, princesa?” Raul falou, de forma despreocupada. “Não achei que você realmente desmaiaria com um tapinha desses. Tá ficando mole moleque.”
“Você que é maluco!” Fernando respondeu, irritado, então olhou para baixo. “Senhor Raul… Onde está minha armadura?!”
“Ah, isso? Eu tirei ela, um cara carregando outro desacordado de armadura por aí chamava muita atenção.”
“E que diferença a armadura faz? O problema não é esse!” O jovem Tenente falou, quase vermelho de raiva, quando respirou fundo, tentando se acalmar, mas ao puxar o cobertor e notar algo, sua expressão mudou completamente. “Onde estão minhas calças?”
“Eu também tirei, elas chamavam muita atenção.”
“Vai se foder!” O rapaz respondeu, quando se levantou, partindo para cima dele.
De repente, a porta foi aberta, quando uma mulher ruiva adentrou no local, apenas para ver um rapaz pálido apenas de camisa e cueca, com a mão no rosto do moreno, tentando furar seus olhos, enquanto o outro o prendia contra o chão. Ambos olharam na direção dela, surpresos.
“C-capitã Lerona?” Fernando falou, quase gaguejando.
“…”
Lerona tinha uma expressão estranha no rosto, quando lentamente começou a fechar a porta.
“Ei, não é o que você está pensando?!”
Momentos depois, Fernando e Raul estavam sentados na sala, enquanto a mulher servia alguns pães caseiros com chá.
O rapaz pálido estava extremamente envergonhado, mas tomou a iniciativa de falar:
“Então essa é sua casa, Capitã Lerona?” perguntou, com uma voz levemente rouca.
A mulher assentiu, quando se sentou.
“Sim, o General Dimitri disse que vocês viriam, apenas não imaginei que seria daquele jeito…” falou, ao lembrar-se do sujeito moreno que havia aparecido em sua porta com Fernando naquele estado. “Aliás, você não tem esposa?”
O jovem Tenente conseguia sentir o desprezo na voz da mulher, quando olhou para Raul com um olhar furioso. O sujeito realmente parecia estar tentando arruinar o pouco de reputação que ainda lhe restava. Só de imaginar que ele o carregou por metade da cidade sem calças faziam suas veias saltarem.
Em resposta a intenção quase assassina dele, o Capitão moreno apenas fingiu que não viu nada, quando empurrou um dos pães na boca, mastigando-o e dando um gole no chá.
Suspirando, Fernando resolveu finalmente tocar no assunto.
“O que exatamente está acontecendo aqui? Por que o General Dimitri me disse para encontrá-lo e por que viemos na casa da Capitã Lerona?”
Raul, que ainda mastigava o pão, olhou para o rapaz, quando respondeu:
“Eu pedi autorização do General para levá-lo a um lugar e a mocinha aqui irá nos acompanhar. Deveria ser algo só para os rapazes, mas o General insistiu e só autorizou se a levássemos.” disse, parecendo descontente com a presença da mulher.
“Talvez ele não confie em você para isso.” Lerona falou, olhando-o com uma expressão intimidante. “Além disso, eu estou encarregada de mantê-lo vivo.”
“Pelo que soube, o moleque quase morreu no Salão mais cedo e você não estava lá. Parece que não é tão competente assim.”
“I-isso…” A mulher ruiva ficou em silêncio com o argumento do sujeito, afinal, ela havia pedido uma licença especial a Dimitri, para aprender a lidar com os efeitos colaterais da Sopa Revitalizante. Várias sensações que ela não sentia há anos estavam aflorando em seu corpo, fazendo-a temer até mesmo ‘atacar’ a pessoa que ela deveria proteger.
“Aliás, garoto. Você realmente tentou matar uma Administradora do Salão e em plena luz do dia. Por acaso está tentando seguir os passos do Capitão Viktor?” Raul perguntou, rindo alto, parecendo orgulhoso. “Talvez o seu título deva ser ‘Pequeno Cão Louco’? Hahahaha! Você faz jus a Décima Terceira, o Capitão ficaria impressionado.”
Viktor Yudin havia ganho seu título de Cão Louco justamente por esse feito e era algo extensamente conhecido em Vento Amarelo por todas as Guarnições.
Fernando não parecia contente ao ouvir isso, o que ele menos queria era ser associado a alguém como o Capitão da Décima Terceira.
Apesar de descontente, o rapaz ignorou suas palavras.
“O que você quer dizer com me levar a um lugar? Onde é isso?”
“O General realmente não te disse nada? Nós estamos saindo de Garância essa noite.”
“O quê?!” Quando Fernando ouviu isso, não pôde evitar se levantar, surpreso. “Não posso sair da cidade, meu batalhão está no meio de um recrutamento e tenho…”
“Várias coisas para lidar?” Raul falou, interrompendo-o. “Moleque, é para isso que temos subordinados. Se não pudermos deixar o trabalho pesado para eles, que graça há em ocupar uma posição de liderança?” comentou, sorrindo.
O jovem Tenente não pôde deixar de olhar para o sujeito com reprovação. Ele sabia exatamente como Raul lidava com assuntos burocráticos e administrativos, sempre empurrando tudo para aqueles abaixo dele. Esse não era o tipo de coisa que ele gostava de fazer.
Vendo que Fernando não parecia contente, o sujeito moreno continuou.
“Escute, eu dei uma olhada no seu Batalhão mais cedo. O trabalho que você tem feito lá é impressionante. De certa forma, seu nível organizacional não perde em nada para aquela Bruxa e até a supera em muitos aspectos e pelo que vi ela com certeza ficaria orgulhosa.” Raul o elogiou, com sinceridade, o que surpreendeu o jovem pálido. “Mas um Comandante sem força, é um Comandante morto. Se você não tiver o que é necessário para defender o que é seu, outros tomarão de você. O que experimentou hoje ou quando tentaram te matar antes, é apenas uma fração do que terá que passar no futuro. Ou realmente planeja depender de pessoas como ela para te manter seguro a vida toda?” falou, apontando para Lerona.
A Capitã franziu a testa com o comentário, mas não se intrometeu, pois apesar do atrevimento, ela não discordava das palavras do sujeito.
Ouvindo tudo aquilo, Fernando lentamente se acalmou, quando se sentou novamente. Assim como Raul disse, ele não poderia depender de outras pessoas o tempo todo. Além disso, se quisesse ser bem-sucedido na Missão de Trucidação, precisaria melhorar sua força.
“Eu entendi.” falou, com uma voz calma. “Vou enviar alguns comandos ao meu pessoal, eles devem ser capazes de lidar com tudo na minha ausência. Mas quanto tempo ficaremos fora?”
“Pelo menos uma semana.” O sujeito moreno falou.
A expressão de Fernando mudou ao ouvir isso, quando seus olhos se estreitaram. Raul havia prometido treiná-lo antes, então imaginou que se tratava disso. Porém, por que precisariam sair da cidade por tanto tempo?
“Para onde vamos?” indagou, com um olhar severo.
O Capitão sorriu de forma branda.
“Nós vamos para uma pequena cidade chamada Yandou. Não é muito longe daqui e tem algo lá que eu preciso. Isso é tudo que vai ouvir, então vê se não enche o saco.”
Vendo que ele não planejava lhe dar mais detalhes, Fernando suspirou, quando assentiu.
Poucas horas depois, durante a madrugada, após enviar uma séria de mensagens e reunirem alguns suprimentos, o jovem Tenente do Batalhão Zero estava com sua armadura negra próximo ao portão Leste, escondido em meio as sombras. Raul e Lerona estavam ao seu lado.
“Façam silêncio, meu contato está na próxima troca de turno. Precisamos sair sem que isso vaze para o Salão.” Raul alertou, com uma expressão séria.
Fernando e Lerona assentiram. Nenhum dos dois sabia como o sujeito havia conseguido subornar um dos Guardas do portão, mas entendiam que isso era fundamental. Se Guardas comuns registrassem sua saída, isso definitivamente chegaria aos ouvidos de Herin, o que seria um problema.
Enquanto esperavam, em silêncio, Fernando recebeu uma mensagem em seu Cubo Comunicador, vinda de Argos. O estranho conteúdo imediatamente chamou sua atenção.
Segundo o relatório, o grupo comercial Herbalistas do Sul, que vinha sendo monitorado pela Sopro Noturno e até então estava em silêncio, havia finalmente se movido, tendo feito contato com alguém. Porém, os observadores enviados para a missão simplesmente tinham desaparecido pouco tempo depois de enviarem essa informação.
Ao ler isso, a expressão do jovem Tenente afundou.
A Família Lopes está envolvida? pensou, preocupado.
Apesar de ser uma organização nova, Argos havia a estruturado bem e estava recrutando pessoas relativamente capazes. Se o outro lado foi capaz de percebê-los e até os eliminar tão facilmente sem chamar a atenção, não deveriam ser amadores quaisquer.
Por que logo agora? indagou-se, frustrado.
De todos os momentos, aquele era o pior possível. Não só ele estava saindo de Garância, como Herin certamente estaria pressionando o Batalhão Zero pelos próximos dias em busca de informações a seu respeito.
Mas mesmo que estivesse preocupado, sabia que não poderia voltar atrás agora. Então enviou mais alguns comandos a todos, alertando-os sobre a possibilidades de emboscadas e para se manterem principalmente nas dependências do Batalhão Zero até seu retorno.
Após algum tempo em meio a escuridão, enquanto observavam o portão cheio de luzes, um agrupamento de guardas novos chegou, rendendo o antigo e fazendo a troca de turno.
Após cerca de cinco minutos, um assovio baixo soou, misturando-se aos ventos frios da noite.
“Vamos.” Raul falou, quando acelerou em direção ao portão com Lerona e Fernando logo atrás, subindo as escadas para a parte de cima da muralha em um instante.
Assim que chegaram lá, dois guardas estavam os esperando. Nenhum dos homens disse nada, quando apenas fizeram um sinal, para que se apressassem, desligando as luzes do portão Leste por alguns segundos.
“Abrir o portão diretamente chamaria muita atenção, então vamos pular.”
Sem hesitar, Raul saltou do alto da gigantesca muralha, em direção ao lado externo.
Fernando ficou surpreso com isso, afinal, o sujeito era um pleno Usuário de Habilidades e não sabia voar.
O que ele está fazendo? Cair dessa altura vai fazer muito barulho! pensou, sem entender suas ações. Mesmo que saltar de uma altura como essa não fosse matar alguém como ele, ainda chamaria muita atenção. O ‘contato’ dele claramente eram apenas aqueles dois guardas e o restante não tinham ligação, se um único dos outros percebesse algo, iriam soar um alerta.
Porém, contra suas expectativas, Raul surgiu, levitando.
“Andem, rápido!”
O que está acontecendo? Desde quando esse cara aprendeu magia de voo? pensou, chocado. Há muito tempo Raul havia dito que só conseguia usar incrementos básicos e Magia de Voo com certeza não faria parte desse arsenal. Ele estava mentindo?
O sujeito moreno pareceu perceber o rosto surpreso de Fernando, quando sorriu levemente.
“Depois eu explico, se apresse!”
Fernando e Lerona se entreolharam, quando ambos saltaram também, ativando Levitação, então os três dispararam em direção ao Leste em meio a noite fria e escura.
O jovem Tenente não pôde deixar de olhar para trás, com uma expressão conflituosa.
Eu voltarei, então fiquem seguros até lá.

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