Capítulo 380 - Medo
Após a Unidade de Logística terminar de recolher as principais partes dos corpos dos Ciclopes, o Batalhão seguiu em frente.
No caminho, durante a marcha, Karol permaneceu montada em seu lobo, mantendo distância de Fernando, o que o fez suspirar.
Que complicado… pensou.
Não só ele havia tido uma pequena discussão com ela antes, como teve a situação com os filhotes de Ciclopes depois. Lidar com sua esposa chateada nesse nível era uma situação à qual ele não estava acostumado.
Olhando para o Anel de Aprisionamento em seu dedo, observou o conteúdo interno.
“Mestre, precisa de algo?” A voz de Brakas soou, ao sentir a mente de Fernando.
O jovem não disse nada, primeiro olhou a situação do local.
O Baiholder estava ocupando boa parte da sua cela. Em outras duas, havia vários Lobos Prateados em miniatura. Sozinho, o Orc Líder estava parado, com uma expressão vazia. As duas crianças Ciclopes estavam dormindo, ocupando outra das celas.
A verdade é que ele não tinha matado os dois filhotes, mas usado dois olhos dos Ciclopes que Brakas havia exterminado.
Ele não sabia porque havia feito isso, pois sua razão lhe dizia para apenas matar as criaturas, assim como o resto do grupo havia sido morto. E era o que havia decidido inicialmente, mas lembrando das palavras de sua esposa e de seu rosto triste, assim como de um certo comichão que se apertava em seu peito, acabou desistindo no último instante.
O que eu faço com essas coisinhas? pensou, suspirando.
Depois de algum tempo, voltou sua atenção para o grande Orc Líder que estava parado em pé.
“O que aconteceu com ele?” perguntou, sua voz ecoando dentro do anel.
Brakas, que estava em silêncio, ao não receber uma resposta, ficou feliz em finalmente ouvir a voz de seu mestre.
“Ele estava um pouco rebelde, então o coloquei para ‘descansar’ um pouco. Mas é questão de tempo até domá-lo, nada resiste a mim.” A voz envelhecida do Baiholder soou com um leve indício de brincadeira.
Mesmo entendendo o contexto do que ele disse, Fernando fingiu não perceber. Apesar de não sentir ódio propriamente dito dos Orcs, era uma raça que ele não sentia a menor empatia, independente do que acontecesse com eles.
Afinal, ele próprio havia visto o resultado da crueldade dessa raça. Eles não poupavam um Humano sequer que caísse em suas mãos. Sejam homens, mulheres ou crianças, todos sofreriam até seu amargo fim.
“E quanto aos lobos?” perguntou, olhando para as criaturas que estavam espremidas em duas celas, miniaturizadas com magia. Parecia haver pelo menos quinze deles.
“Eles já estão prontos, mestre. Todos estão maduros e bem treinados, pode usá-los agora se quiser.”
“Não, ainda não é a hora certa.” Fernando respondeu. Se ele surgisse com tantas montarias novas nesse momento, muitas suspeitas seriam levantadas sobre ele.
“Inclusive, devo dizer que esse lote é muito superior ao anterior. Devido à carne de Delgnor eu consegui transformá-los em verdadeiras máquinas de guerra.” O Baiholder falou, cheio de orgulho, como se estivesse se referindo a sua obra-prima. “Sua pele, músculos e ossos estão muito mais resistentes, além de sua força e agilidade estarem maiores.”
Fernando ouviu aquilo com surpresa. Lembrando da cara de cobiça de Brakas, quando entregou a carne de Delgnor, achou que não iria usar nada dela nos lobos.
“Se você pudesse me dar um pouco mais daquela carne, eu conse-”.
“Não.” Fernando disse, de forma decisiva, o interrompendo. “Eu disse que lhe daria mais quando terminasse o que lhe pedi.” completou. Mesmo que tivesse uma quantidade abundante de carne de Delgnor, não iria voltar atrás em suas palavras.
“Isso… Entendido, mestre. Estou trabalhando nisso.” A voz envelhecida soou, decepcionada.
Vendo isso, Fernando franziu a testa com curiosidade.
“A carne de Delgnor é tão boa assim? Por que a quer tanto? Você disse que só precisa de mana para viver.”
Brakas ficou surpreso com o interesse do jovem.
“Você não sabe, mestre? Carne de Delgnor e outras criaturas naturalmente poderosas aceleram e muito o fortalecimento corporal e concentração do mana de alguém. Cada parte do corpo deles é como um tesouro raro, até mesmo seu sangue é rico em energia. Mesmo uma criatura fraca iria ficar muito mais poderosa apenas comendo dessa carne todos os dias por algum tempo.” disse, de forma entusiasmada.
Fernando levantou a sobrancelha, em dúvidas, ao ouvir isso.
“Eu sei que a carne de Delgnor melhora o corpo e também o mana, mas não me pareceu tão relevante. Pelo que me falaram, ela é usada para outra utilidade.” disse de forma leviana. Mesmo sabendo que o uso principal era para aumentar as chances de alguém adentrar no Sistema de Habilidades, queria entender o que o Beholder sabia sobre.
Os olhos de Brakas moveram-se, como se estivesse indignado.
“Besteira! Isso é apenas a forma rudimentar que os Humanos a utilizam. Consumir a carne diretamente, sem o devido preparo, é um desperdício de recursos. Primeiro você deve fervê-la em mana condensado, assim como usar chamas de magia para concentrar ainda mais suas propriedades, só então ela estará apta para consumo. Se usar fogo comum, as propriedades de mana não serão devidamente aproveitadas.” falou, como se fosse um especialista.
Ouvindo isso, Fernando ficou confuso. Ele não ouviu Ferman falar nada a respeito disso, o que o deixou ainda mais curioso.
Deve-se saber que Beholders são conhecidos por acumular conhecimento por anos. Além disso, os solitários são extremamente individualistas e dificilmente partilham suas descobertas com outros indivíduos. Então o rapaz deduziu que essa informação foi algo que Brakas havia descoberto em algum momento de sua vida.
Depois disso, perguntou mais algumas coisas para o Baiholder, tentando entender o processo de preparo da carne de Delgnor. Se fosse tão bom quanto Brakas afirmava, ele precisava testar.
Horas depois, o Batalhão Zero parou, quando os batedores acharam uma pequena estrada.
“Estamos próximos.” Damon disse, com alguma hesitação em sua voz.
Fernando e os demais membros centrais rapidamente entraram em alerta. No entanto, quando finalmente avistaram a vila chamada Rosina, suas expressões mudaram.
O que outrora foi uma vila cheia de pessoas, agora não passava de carvão e cinzas. As pequenas casas ao longe estavam completamente destruídas, com sinais de incêndio. Até mesmo as plantações no caminho não eram diferentes, tendo sido completamente saqueadas e queimadas.
Não só isso, mas vários corpos, por inteiro ou desmembrados, estavam pendurados em estacas na entrada da vila. Era como uma mensagem, uma forma dos Orcs dizerem que aquele seria o destino dos que se opusessem contra eles.
“Que terrível…” Noah disse, com alguma pena e horror, principalmente ao ver as expressões de sofrimento nos rostos das vítimas que se mantiveram congeladas mesmo após suas mortes.
Lina não conseguiu evitar colocar a mão na boca, enquanto desviava os olhos. Muitos dos outros tiveram reações parecidas. Mesmo que já tivessem visto situações semelhantes antes, a brutalidade em Rosina havia sido além do normal.
Apenas pessoas mais vividas nesse mundo, como Theodora, Ilgner, Trayan e alguns dos outros, acostumados a uma vida sanguinária, não pareciam emotivos com essa visão.
Fernando fechou os olhos por um instante. Mesmo esperando que esse fosse o resultado, ao presenciar tal cena não pôde deixar de se sentir mal.
Quando abriu os olhos novamente, sua expressão amarga diminuiu, até que ficou muito mais calmo. Com a mente no lugar, se decidiu.
“Vasculhem todo o perímetro, procurem rastros do inimigo! E quero uma linha de defesa pronta.” disse, com uma voz fria.
Mesmo que estivesse levemente abalado, não era o primeiro lugar que encontrava nesse estado. Ao invés de deixar suas emoções tomarem de conta, era melhor se precaver e verificar se não havia alguma emboscada ou inimigos na região.
“Entendido.”
Theodora e Ilgner, que ouviram as ordens, assentiram.
“Terceiro Pelotão, vá vasculhar os arredores. Quinto Pelotão, comigo!” Theodora gritou, saindo em busca de rastros.
Enquanto isso, Ilgner levou consigo o Segundo Pelotão para levantar uma defesa provisória mais ao sul. Se os Orcs ainda estivessem por perto, seria melhor estarem prontos para o combate.
“Está acabado, tudo acabado…” Damon disse, com as mãos trêmulas, enquanto caia de joelhos, com olhos apáticos, como se tivesse desistido de tudo.
Os outros membros da Unidade de Logística também pareciam afetados. Este era o último lugar que poderiam chegar em busca de suas famílias, mas tudo que encontraram foram pilhas e mais pilhas de corpos.
“Senhor!” Karol disse, descendo de seu Lobo Prateado e indo em direção ao velho Sargento.
“Minha filha, minha neta, todos… Todos estão mortos!” gritou, visivelmente abalado. “Eu só seguirei até aqui, minha velha vida deve findar-se junto aos meus descendentes.” falou, com uma voz trêmula e olhos lacrimejantes.
Vendo isso, Fernando e os outros finalmente entenderam. O velho parecia conhecer mais desse local que os outros, pois era ali que sua própria família vivia!
O jovem Tenente, ao ver o sofrimento do homem, sentiu seu peito apertar, mas não havia nada que pudesse fazer a respeito. A dor de perder a família era algo que ele não conseguia sequer imaginar.
Pensando nisso, lembrou de seu irmão e de seus pais, se eles próprios estavam bem na Terra. Já fazia mais de um ano desde que ele havia sido trazido à Avalon. Mesmo que mantivesse isso para si, era difícil ficar tanto tempo sem ver sua família, ainda mais sabendo que nunca mais poderia vê-la novamente.
Ele gostaria de poder apresentar sua esposa a seu pai e sua mãe, mas sabia que jamais teria a oportunidade.
“Está tudo bem, senhor, está tudo bem.” Karol disse, apoiando o homem e tentando levantá-lo.
“É por isso, por isso não devemos ter pena desses monstros. Eles não terão pena de nós!” disse, com lágrimas nos olhos.
Ouvindo isso, somando ao que aconteceu antes, Karol não sabia o que dizer.
Na realidade, mesmo Fernando tinha uma expressão complicada.
“Minha filha era tão bondosa e se esforçava tanto nas plantações, é por isso que eu fui até Meridai para comprar grãos, para ajudar a vila… Se eu não tivesse saído, nada disso teria acontecido.” disse com reminiscência.
O jovem Tenente, que estava ao lado, suspirou.
“Mesmo que você tivesse ficado, nada mudaria, Sargento Damon, você só teria morrido também.” A voz de Fernando soou, de forma calma.
Ouvindo isso, Karol, Ronald e alguns dos outros que estavam ao redor olharam para o rapaz com olhares estranhos.
“Qual a necessidade de dizer isso, Fernando?” Karol disse, com uma expressão verdadeiramente zangada.
“É a verdade.” continuou, com um olhar indiferente.
Os membros da Unidade de Logística também se sentiram insultados ao verem a atitude do Tenente.
Mesmo Emily, que levava tudo de bom humor, começou a ficar irritada com a fala sem emoção do jovem e estava prestes a insultá-lo, mesmo sabendo da quebra de hierarquia.
“Seu m-” No entanto, parou suas palavras na metade, quando Ronald a impediu, cobrindo sua boca.
Fernando aproximou-se de Damon, ficando ao seu lado, então varreu seu olhar sobre a Unidade de Logística.
“Muitos de vocês, assim como o Sargento Damon, devem desejar poder ter estado ao lado de suas famílias. Mas saibam que isso não resolveria nada. Todos vocês morreriam também.” disse, de maneira fria.
Essas palavras só acarretaram olhares furiosos em sua direção. Até o velho homem não pareceu aceitar bem isso.
“Se é isso que vocês querem, morrer de forma injusta ao lado de suas famílias, então eu não direi mais nada. Mas vocês realmente acham isso certo? Morrer enquanto os culpados andam, comem e dormem por aí como se nada tivesse acontecido?” Fernando disse. Suas palavras fez com que as expressões de muitos deles mudassem, até mesmo a de Damon.
O rosto frio e calmo do jovem Tenente mudou, mostrando uma firmeza imponente.
“Se vocês não aceitam isso, então basta lutar! Faça-os pagar pelo que fizeram!” gritou.
Quando os membros da Unidade de Logística ouviram isso, sentiram algo. O vazio e a dor rapidamente começaram a se transformar em uma violenta fúria!
Após dizer isso, o rapaz não falou mais nada, pois percebeu que não precisava. Apenas por seus rostos ele sabia o que estavam pensando.
Suas expressões, antes vazias, tristes e sem vida, agora pareciam diferentes, pois agora eles tinham um objetivo, vingança!
Karol, que estava ajudando Damon, não se sentiu bem ao ouvir as palavras de Fernando. A seu ver, esse não era o caminho certo. Mas no fim, resolveu não interferir, principalmente ao ver os olhos do velho homem, que pareciam ganhar vida novamente.
Ela sentiu que seu marido talvez só estivesse dizendo isso para não deixá-los cair em tristeza, no entanto, as coisas não eram bem assim.
A verdade é que o próprio Fernando não era algum tipo de justiceiro, ou do tipo que gostava de lutar a batalha dos outros. Era por isso que ele odiava tanto as Legiões, que os obrigava a guerrear em seu nome e de seus interesses. Mas após ver tanta crueldade dos Orcs, mesmo seu sangue começou a se agitar.
“Obrigado, Tenente. Mesmo sendo jovem, suas palavras me fortalecem. Eu seguirei em frente e espero que minha família possa descansar em paz.” Damon disse, após se acalmar. Então tirou uma foto, onde uma mulher jovem e uma menina, em torno de dez anos, apareciam sorrindo. “Só lamento que minha pequena neta, Dana, tenha vivido tão pouco. Seu avô fará o melhor que puder.” falou, de forma decisiva.
Karol, apesar de triste, assentiu. Mesmo que pensasse que o tipo de motivação não era certa, sentiu que o importante é que essas pessoas pudessem continuar em frente.
Então ela olhou para Fernando. Mesmo que ambos estivessem brigados por diferenças em seus pensamentos, percebeu que talvez tivesse sido muito dura com ele. No entanto, quando viu o rosto de seu marido, encarando a foto, sua expressão mudou.
“Fernando?!”
O rosto do rapaz, que já era pálido, ficou muito mais branco que o normal. E pela primeira vez em sua vida, o viu fazer uma expressão que nunca tinha visto em seu rosto, mesmo quando estavam em situações de vida ou morte, e isso era medo.
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