Capítulo 23: Chuva de Cinzas
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Com um simples aceno de Kael, os membros se dividiram e rapidamente seguiram caminhos diferentes.
Jax e Mira subiram pela escada em espiral no setor leste do prédio, seus passos eram rápidos, mas ainda assim não se comparavam à velocidade anterior.
Arin e Zara seguiram pela escadaria sul, avançando em zigue-zague pelos corredores até reencontrarem as escadas.
Kael, por sua vez, seguia sozinho pela escadaria principal. Seus movimentos eram calmos, porém rápidos, ansiosos para recuperar aquela que jurou proteger.
A tempestade que se aproximava abalaria não só Porto Alegre, mas o Brasil inteiro.
E o Esqueletão, por fim, rapidamente voltaria a ter sangue em suas paredes… isso se restasse alguma.
Kael avançava com cautela pelos andares do Esqueletão, observando quaisquer sombras que poderiam estar à volta.
O vento que escapava de si fugia entre os buracos do prédio abandonado, assobiando como um canto medonho de passarinho.
Era perceptível o peso dos sentimentos que ele carregava a cada passo que dava. Por uma imprudência sua, Emi estava em perigo.
Um perigo vindo da mesma organização responsável pelo desaparecimento de seu amigo, aquele que, na última troca de palavras que tiveram, prometeu mantê-la segura com sua própria vida.
Porém, mesmo carregando esse peso, Kael rapidamente alcançou o oitavo andar do prédio.
Mas, ao pisar ali, foi recebido por um cenário ainda mais devastado do que imaginava.
As paredes estavam estraçalhadas. No chão, uma trilha de sangue atravessava o corredor escuro como se fosse um tapete vermelho escarlate, guiando-o para seu encontro inevitável.
Kael se aproximou da trilha, agachou ao seu lado e passou dois dedos no líquido.
— Está seco… — murmurou, os olhos varrendo o ambiente à volta. — Deve fazer pelo menos uma hora desde que esta aqui.
Levantou-se devagar, os músculos cobertos pela camisa social, seus cabelos grisalhos balançavam com a leve brisa que entrava pelas frestas e paredes estilhaçadas.
Seguiu a trilha sangrenta pelo corredor escuro, logo depois vendo uma pequena iluminação que piscava por causa de um mau contato escapando por uma porta meio aberta.
O caminho levava até aquela porta, como se fosse um convite para entrar.
— Eu só espero que esse sangue não seja de quem eu estou imaginando… — disse Kael, com a voz firme. — porque, se for… pode ser armadilha ou o caralho que seja, não vai me segurar… eu vou desmembrar cada parte do corpo do Seprus.
Com um olhar assustadoramente frio, Kael se aproximou da porta lentamente, a empurrando com calma.
Mas a cena ao abri-la o fez parar por um breve instante.
Dentro da sala, um homem se encontrava no final da listra sangrenta.
Estava sentado, completamente apoiado na cadeira, enquanto pingava inúmeras gotas de sangue no chão.
Seu corpo, completamente mutilado, mostrava buracos e ferimentos verdadeiramente cruéis. Não feitos só para matar, mas para causar uma terrível dor antes do descanso eterno.
Tinha o cabelo em forma de moicano vermelho, porém, ainda mais colorido que o original, graças a cor escarlate que jorrava de sua cabeça.
Já seus olhos cor de rosa, mesmo quase fechados, mantinham seu brilho mais vívido, como se esperassem, cheios de esperança, algo ou alguém até seu último suspiro.
Atrás dele, várias telas de segurança estavam desligadas.
No colo do morto, diversas fotografias capturadas das câmeras de vigilância.
Kael se aproximou lentamente e pegou algumas das imagens.
A primeira mostrava Louie, preso em uma cela escura, devorando a comida de seu prato como se fosse um animal.
Já em outra, aparecia Nina, deitada sobre o concreto, ainda inconsciente.
E a última, Emi… acorrentada, com a boca amordaçada e sangue escorrendo de sua testa.
A raiva de Kael estava a um fio de explodir, mas seus olhos, lutando para disfarçar esse sentimento, mantiveram a frieza.
— Que brincadeirinha de mau gosto… — murmurou, examinando o corpo diante de si. — Mas, pensando pelo lado bom, poderia ser o corpo da Emi que eu estivesse vendo aqui. Fico feliz que não seja ela…
Aproximou levemente seu rosto do cadáver à sua frente.
— “Cabelos vermelhos em moicano, olhos rosa… esse deve ser Gorthok. O mesmo que Louie falou que fugiu.” — pensou Kael, olhando o corpo ensanguentado. — “Entendi… desculpa, moleque. Não sei o que te motivou a pedir isso, mas infelizmente não vou conseguir capturá-lo com vida como tu tinha me pedido.”
— “Mas… Eu não entendo uma coisa. Por que Seprus mataria um dos seus? O que ele ganharia fazendo isso?”
Mas, antes que pudesse chegar a uma conclusão, o som de cimento se despedaçando ecoou pela parede à sua esquerda.
Junto dele, um vulto humanoide emergiu, brandindo uma lâmina que brilhava em dourado na direção de Kael, que, por puro reflexo, canalizou o escudo psíquico em volta do seu braço direito, bloqueando o golpe.
O vento que recuou do impacto foi absurdo, as paredes ao redor se quebraram como se fossem feitas de vidro, o chão cedeu sob a força do ataque. O prédio inteiro tremeu com aquela simples colisão.
E então, uma voz cortou o som da destruição enquanto ambas as silhuetas caíam pelo chão completamente destruído.
— Vocês demoraram, hein? — disse o agressor com um sorriso sádico. — Já estava quase cochilando aqui. Pelo visto, pontualidade não faz parte do dicionário de Áurea!
O vulto enfim ficou claro em meio à queda, aquele na frente de Kael era Sethros, em carne e osso.
Seu olhar era assustador, cheio de loucura e uma espécie de prazer doentio. Tinha um sorriso macabro em seu rosto, como se desejasse somente a mais pura destruição.
— Ouvi falar bastante de você… Kael — disse Sethros, enquanto ambos despencavam, quebrando os pisos de todos os andares até enfim chegarem ao térreo.
O comandante olhou com surpresa, segurando sua espada mesmo durante a queda.
— “Ele sabe meu nome…” — pensou, enquanto enfim tocava os pés no chão do térreo, marcando-o com uma enorme cratera.
Logo após tocarem o chão, ambos se distanciaram em impulsos rápidos para trás. O prédio inteiro tremia, como se já estivesse a um fio de ruir.
— “Cabelos brancos por fora e roxo por dentro, olhos rosas e um manto lilás… pela descrição do Louie, é ele… esse homem na minha frente… é o Seprus.” — pensou Kael, os olhos fixos no oponente a dez passos à sua frente.
Seu pensamento foi rápido, mas ele não tinha tempo para esse luxo. Antes mesmo que pudesse continuar, uma investida de Sethros vinha rapidamente em sua direção, tentando perfurá-lo.
Kael, com um movimento tão perfeito que parecia uma dança, conseguiu esquivar seu corpo para o lado, desviando da rápida estocada e, usando sua defesa psíquica como uma luva ao redor da mão direita, segurou firme a lâmina de Sethros ao lado do seu corpo.
Sethros o encarava com um sorriso lunático, rindo como louco da reação de Kael em relação ao seu golpe.
— Você realmente é forte! Isso vai ser muito divertido! Mas lutar aqui dentro poderia atrapalhar a brincadeira do pessoal lá em cima… — disse Sethros, apontando para cima. — Por que nós não… levamos essa luta lá pra fora?
Kael não teve o menor tempo de reagir. De forma instantânea, o mundo prendeu sua respiração, como se o próprio tempo congelasse, e, quando se deu conta de onde estava, a luz da lua ainda nem tocava sua pele.
Ali estavam eles, a diversos quarteirões de distância do Esqueletão, onde estavam instantes antes.
À sua frente, Sethros estava na mesma posição de estocada, porém o espaço ao seu redor reagia de forma estranha… como se, de uma hora para outra, fosse preenchido de dentro para fora.
Kael respirou fundo, jogando a lâmina de Sethros para o lado enquanto cambaleava, tentando estabilizar novamente seu corpo.
— “Que merda foi essa?”
O pensamento se formou rapidamente em sua mente.
— “Isso se quer foi um teletransporte? O espaço… ele pareceu reagir de uma forma tão estranha à minha aparição…”
Os olhos de Kael rapidamente vasculharam o cenário em busca de alguma lógica.
— “Foi muito rápido… mesmo com a minha velocidade de reação, eu nem notei quando fui teletransportado… será que… é instantâneo? Levando em conta como as moléculas à volta reagiram, eu acho que tenho uma teoria em mente do que pode ser…”
Mas não havia muito tempo para pensar.
Ali estavam o pináculo da força de Áurea e o Apóstolo Caído do Juízo Final da Sacrificium Sanguínis. Enfim, frente a frente.
Naquele instante, marcou-se o primeiro passo de uma guerra futura, que ecoaria não só pelo mundo, mas por todo o universo, levando a queda consigo.
Enquanto isso, Arin e Zara chegaram rapidamente ao décimo andar.
O corredor principal se abria diante deles como um labirinto de várias salas destruídas. O teto era alto, sustentado por vigas enferrujadas e cimento desgastado.
As paredes rachadas, cobertas por marcas de infiltração e pichações quase apagadas pelo tempo. Algumas janelas estavam completamente quebradas, outras somente trincadas.
Cacos de vidro e entulho cobriam maior parte do chão, junto da poeira que subia do vento vindo das frestas do prédio.
Ao pisarem ali, Arin e Zara trocaram um breve olhar, não houve uma palavra se quer trocada, apenas um leve aceno com a cabeça para que se entendessem.
E, como um raio, ambas avançaram rapidamente, separando-se em direções opostas, vasculhando cada sala em instantes.
Ao fim da varredura, reuniram-se novamente, como se o tempo mal tivesse passado.
Diante de ambas, uma única porta sobrava. A última, no final do corredor mais distante. Estava bem desgastada, com dobradiças enferrujadas e mal pregadas. Como se estivesse a um fio de cair
Ali, o silêncio era absoluto, na tentativa de fazer o menor alarde possível.
Porém, antes que dessem mais um passo em direção a porta final, um forte tremor percorreu todo o prédio, balançando o as paredes e o chão sob seus pés.
Zara imediatamente lançou um olhar de canto para Arin, que já respondia antes mesmo de ser questionada:
— AAAAAAH Nem vem! Não fui eu dessa vez! — disse, fazendo beicinho como se fosse algo recorrente tais acusações.
Zara levou a mão ao rosto, claramente sem paciência.
— Não é isso, sua idiota! — berrou Zara, a um fio de explodir. — Eu acho que o Kael já começou a lutar. Espero que a Emi realmente esteja aqui, e que o Jax e a Mira já tenham tirado ela daqui… porque eu não acho que esse prédio aguente muito mais que isso não…
— Ahhhhhh! Então era isso que tu ia falar… Hahaha! — Arin mudou de expressão quase que no mesmo segundo, abrindo um gigante sorriso confiante. — Jax e Mira são tão rápidos quanto nós, aposto que já estão longe pra caramba! Fora que a Lila deve tá lá por enquanto pra ajudar eles com aquele teletransporte de sombras dahora dela!
— E… chega a ser estranho falar isso, mas acho que você tem razão… — disse Zara, enquanto apertava firme um dos seus braceletes, seus olhos fixos na porta à frente. — Então, vamos lá? Acho que… está na hora de fazermos a nossa parte também.
Arin respirou fundo, mantendo aquele lindo sorriso alegre no rosto, e se preparou para começar.
Pequenos redemoinhos começaram a girar ao seu redor, levantando poeira e pedaços soltos de restos largados no chão.
Seja lá quem fosse a pessoa atrás daquela porta, ela ia ter que enfrentar a força de um desastre natural vivo, com belos olhos verdes e cabelos avermelhados.
Enfim, juntas, ambas deram o primeiro passo frente ao desafio.
Mas, assim que seus pés tocaram os grãos de cimento no solo, uma força desumana as atingiu imediatamente.
Uma pressão invisível, brutal e esmagadora despencou de uma só vez sobre seus corpos.
Os olhos de ambas se arregalaram no mesmo instante, a surpresa estampada em seus rostos. Era como se o peso de seus corpos tivesse sido multiplicado centenas de milhões de vezes em questão de um segundo.
A gravidade do andar inteiro havia sido distorcida naquele súbito momento.
O chão sob seus pés trincou quase de imediato, rachando e se desfazendo como se não passasse de uma fina camada de vidro. Em menos de segundos, o prédio inteiro tremeu.
Sem forças para resistir, o piso, junto de todo o edifício, enfim cedeu.
Zara rangeu os dentes, sentindo os músculos quase falharem em reagir ao esforço repentino.
Arin, mesmo suando, ainda mantinha o mesmo sorriso, impressionada, mas não menos confiante.
As duas foram lançadas ao térreo quase que instantâneamente.
Porém, mesmo com a pressão absurda e os escombros ruindo ao redor, permaneceram em pé ao tocarem o solo.
O impacto de seus corpos criou uma gigantesca cratera com um raio de aproximadamente um quilômetro ao redor, uma cicatriz colossal no centro dos dez quilômetros evacuados.
Os destroços do prédio, agora caindo em ruínas, foram arremessados para longe pelo vendaval que emanou da queda, a onda de choque pulverizou dezenas de estruturas ao redor do Esqueletão, reduzindo fachadas inteiras a poeira em um instante.
A força da colisão foi tamanha que todas as janelas dos prédios próximos estouraram, e o tremor resultante foi sentido por quase todo o Rio Grande do Sul, registrado como um abalo sísmico de magnitude 5,6 na Escala Richter.
Enquanto os poucos restos mortais do Esqueletão ainda caíam como cinzas do céu, uma silhueta encapuzada caminhava entre os escombros.
A presença daquela figura parecia profana demais para pertencer ao planeta que hoje chamamos de nosso.
O seu simples ato de avançar sob a chuva de cinzas iluminadas pela lua prateada fazia tudo ao redor afundar.
Cada passo seu deixava mais uma fenda sobre a terra, que cedia diante da absoluta força invisível que a rodeava.
Dos contornos do seu capuz violeta, escapavam fios de cabelo tão negros quanto o céu escuro, e escondidos sob ele, seus olhos roxos brilhavam como uma ametista luminescente.
Mesmo frente a sua pressão, Zara e Arin mantinham-se firmes de pé, suportando toda aquela gravidade brutal.
Mas, aos poucos, o peso gravitacional começava a diminuir, aliviando seus corpos pouco a pouco, até que enfim se estabilizasse.
E foi ali, banhadas pela luz fria da lua, com as cinzas prateadas dançando no ar, que a tempestade estava prestes a começar.
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FRAGMENTO HISTÓRICO 6:
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⟬ ARQUIVO DE ESTÁGIO 1 — Nº 004 ⟭
Diário pessoal — Observações
Autor: Marek Aurellum — Ano XL após a morte de Cristo.
(Documento confidencial. Extraído dos registros centrais da OPKM.)
Originalmente compilado por Marek Aurellum no quadragésimo ano após a morte de Cristo, como parte da obra “Crônica de Um Poder que Não Compreendo”.
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Após sair do portuário, aluguei uma carroça e parti em direção às montanhas da cidade de Arretium, mais para o interior da Gália Cisalpina e onde ocorreu a triste tragédia do ciclone.
Seguimos pela via dos Apeninos, uma estrada estreita que serpenteia entre colinas íngremes, cercada por pinheiros e rochas altas. O ar fica mais frio a cada trecho, e a névoa baixa torna a passagem dificultosa e até assustadora.
Mas não havia muitas opções. Era o caminho mais rápido para chegar à cidade montanhosa de Arretium, e eu não queria demorar mais do que o necessário nessa missão de fachada dada a mim.
Percorremos todo o trajeto em apenas um dia, até enfim alcançar meu destino, Arretium.
Já na cidade, procurei abrigo no bairro Vicus Silvestris e aluguei um quarto modesto em uma caupona local. Descansaria ali antes de seguir pela manhã às colinas onde o murmurinho do “Homem Ciclone” havia se iniciado.
Continuarei atualizando este diário ao longo da missão.
Assinado: Marek Aurellum
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⟬ FIM DO FRAGMENTO ⟭
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Decifrando palavras:
Caupona tem o mesmo significado de Pousada ou hotel nos dias de hoje.
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CURIOSIDADE 7:
No relatório que Louie entrega para Kael e os Vigilantes, ele afirma que o nome de Sethros é Seprus, ainda consequência do mesmo erro de interpretação apresentado na “CURIOSIDADE 2“.
Nesse mesmo relatório, Louie também pede para que o grupo tente capturar tanto a garota dos olhos roxos quanto Gorthok com vida. Ele não dá muitas explicações sobre Gorthok, mas menciona que sentiu uma conexão estranha com a garota e acredita que isso possivelmente esteja ligado ao massacre sangrento e ao seu próprio passado, que ainda busca entender.

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