Capítulo 24: O Rachar da Noite
A lua permanecia intocada, brilhando de forma solitária no imenso céu escuro.
Na zona norte de Porto Alegre, acontecia a continuação do que, em pouco tempo, seria lembrado como o início de uma guerra capaz de abalar o mundo e levar até mesmo a ordem natural à ruína.
No centro desse confronto, dois verdadeiros monstros se enfrentavam, como o prato principal de um banquete.
A batalha se desenrolava de forma frenética. No lado de Áurea, Kael, membro da Trion e o mais poderoso pináculo da força de toda a história da cidade subterrânea, enfrentava Sethros, da Sacrificium Sanguínis, o louco e dissimulado Apóstolo de Samael, aquele conhecido como o Herdeiro do Juiz Corrompido.
Agora, os dois se encaravam frente a frente.
Diferentes poderes.
Diferentes ideais.
Qual dos dois prevalecerá no final?
Não… a pergunta certa é… o que restará quando, enfim, essa batalha acabar…
Instantes antes do Esqueletão cair. (Final do capítulo passado)
— Kael, Kael… — murmurou Sethros, passando as mãos pelo próprio rosto, esbanjando um sorriso lunático e assustador. — Você não imagina o quanto esperei por isso! Eu mal conseguia esperar a hora de finalmente te ver pessoalmente! Faz tanto tempo que não tenho um brinquedo divertido!
Kael manteve seu olhar firme, analisando cada movimento do inimigo.
— O que vocês realmente querem com tudo isso? — sua voz saía calma, mas claramente irritada. — Qual era o plano de vocês que envolvia sequestrar o Louie? E, principalmente, por que envolver a Emi e a Nina nisso?
Sethros suspirou, tirando o sorriso do rosto em um instante.
— Que sujeito mais entediante tu é, hein… — murmurou, encarando Kael com um olhar decepcionado. — Isso aí já é passado, o que aconteceu não pode ser mudado. De que adianta chorar por um ovo quebrado?
Kael perguntou novamente, seu rosto começando a ferver em raiva.
— Tu não tá afim de falar, pelo visto… então peço que me responda pelo menos uma única coisa… — disse, movendo a mão lentamente até o pescoço. Seus olhos assumiram uma frieza assustadora. — Qual a relação de vocês… com o desaparecimento de Daltro Kaede, dez anos atrás?
Mas antes que Sethros pudesse abrir a boca, o chão tremeu.
Um tremor tão forte que sacudiu o solo sob os pés de ambos, os vidros dos prédios evacuados ao redor estilhaçaram-se quase que instantaneamente, explodindo em fragmentos minúsculos.
O som vinha do Esqueletão, agora uma gigantesca ruína que se estendia por um quilômetro.
Kael se virou imediatamente, encarando fixamente a direção do antigo prédio abandonado.
— Arin… Zara… — murmurou Kael. — “Espero que Mira e Jax tenham conseguido tirar a Emi de lá a tempo, pois pelo som e o tremor, o Esqueletão já cedeu por completo.”
Mas, antes que pudesse continuar seu pensamento, a voz debochada de Sethros ecoou, interrompendo-o.
— Pelo visto… ela já começou por lá… Isso vai ser muito divertido.
Seu sorriso voltou rapidamente, os olhos fixos na direção do colapso.
— “As duas outras assinaturas de calor que Lila detectou… devem ser a Emi e a garota de olhos roxos que Louie mencionou, já que o Gorthok estava morto no oitavo andar.”
Respirou fundo, seu olhar voltando a Sethros.
— “Bom… não adianta pensar muito nisso agora. Arin e Zara sabem se cuidar sozinhas.”
Kael então firmou os pés no chão, entrando em posição de batalha.
Sethros voltou a sorrir, observando Kael se preparar.
— Hahahaha… que encantador da sua parte, está tão ansioso para a nossa brincadeira que até já entrou em posição! — disse, abrindo os braços como se recebesse aplausos de uma plateia. — Mas… acho que eu ainda consigo te motivar um pouquinho mais… então, respondendo à sua pergunta… sim, estou ligado ao desaparecimento dele. Quer uma pequena dica? Você está mais perto da verdade do que imagina… só não sabe disso ainda…
Inclinou a cabeça levemente, seu sorriso ficando mais raso e frio.
— Mas não espere que eu revele mais do que isso! Hahaha! — gritou Sethros, soltando uma gargalhada alta.
Kael apertou os punhos ao ouvir a resposta de Sethros, seus olhos arregalados, suas veias saltadas pela raiva.
Diante dele estava um dos possíveis responsáveis pelo desaparecimento de seu melhor amigo, e ele não pretendia desperdiçar aquela oportunidade.
— Eu sabia que você não ia falar muito… mas isso basta por enquanto… — disse, tanto com deboche quanto com desprezo. — Afinal, eu vou conseguir mais informações de ti quando arrancar teus braços e pernas mesmo.
— ISSO! Era isso que eu queria ver! — gritou, seus olhos se revirando, bêbado pela sua própria loucura. — Finalmente! Agora vamos, me mostre o que o tão falado “senhor do tempo” é capaz de fazer!
Mas, no instante seguinte, como se a água virasse vinho… seu sorriso desapareceu completamente.
O olhar de Sethros mudou totalmente. Agora era afiado… letal como uma lâmina.
— Chega de conversa…
Lentamente, Sethros ergueu a mão direita aos céus, e nela se materializou sua espada, transbordando de energia dourada. Brilhava como o sol na escuridão da noite.
— …e vamos começar…
Sua voz saía como um sussurro.
— O julgamento.
A lâmina rapidamente emitiu um brilho incandescente, que percorreu seu contorno como se estivesse imbuída por um fogo dourado.
O espaço ao redor dela oscilava, se distorcendo como se não soubesse onde ir.
E então, sem aviso, sem som, sem sequer deixar um único traço seu, Sethros desapareceu.
Kael não viu, mesmo sendo um dos Kaelums mais rápidos da história, sua visão não conseguiu acompanhar o que aconteceu à sua frente.
A única coisa que conseguiu sentir foi uma presença assassina que surgia instantaneamente em suas costas.
Ela vinha de Sethros, que já estava atrás dele antes mesmo de sua imagem ser visível a olhos humanos.
E, sem nenhum intervalo entre ação e intenção, Sethros desferiu um rápido corte horizontal com sua espada.
Kael só teve o tempo do movimento de Sethros para reagir, curvando-se para a frente instintivamente.
A lâmina dourada errou seu alvo por milímetros, passando por cima das costas de Kael.
O golpe atravessou o ar com uma força devastadora.
A linha do corte se estendeu por centenas de metros, devastando tudo que encontrava em seu caminho. Prédios inteiros foram perfeitamente cortados horizontalmente e, como se fossem dominós partidos ao meio, desabaram em sequência.
— “Merda! Eu nem vi ele chegando atrás de mim, só consegui desviar por causa do curto tempo que ele teve pra executar o ataque. Mas agora… é hora de contra-atacar!” — pensou Kael, agora girando o corpo em direção a Sethros.
Com um passo tão preciso quanto o de uma dança, Kael girou seu corpo com leveza, seu pé direito brilhando em azul elétrico. Com o corpo ainda em rotação, disparou um chute rápido, envolto em relâmpagos.
Mas, antes que o golpe conseguisse chegar a Sethros… ele desapareceu, deixando para trás apenas uma pequena tremulação no espaço.
O chute passou rasgando o ar, rachando o chão à volta com sua pressão.
Kael pousou com leveza, dando um pequeno tapinha na poeira do próprio ombro.
— Entendi… então é assim que vocês da Sacrificium Sanguinis jogam? — gritou Kael, cheio de desprezo na voz. — Confesso que eu esperava bem mais. Afinal, tu é um dos supostos cúmplices do desaparecimento de Daltro Kaede, mas não vejo tu tendo a mínima chance contra ele.
Seus olhos vasculhavam tudo em volta, tentando achar onde Sethros estava escondido.
— “Ele parece não ter muitas limitações para esse teletransporte dele.” — pensava Kael, pronto para qualquer ataque repentino. — “Mas se pode se mover com toda essa liberdade… por que não tirou Louie, Emi e Nina de Porto Alegre? O que ele está tramando afinal?”
Então, de sua frente, a espada de energia dourada veio voando em sua direção.
Vinha apenas a lâmina, sozinha, perfurando o ar rapidamente.
— “Espera… por que só a espada?” — pensou rapidamente.
Kael desviou levemente a cabeça, fazendo ela passar a poucos centímetros do seu rosto, cravando no chão logo atrás.
Porém, sem ao menos lhe dar chance de respirar, todo o solo sob os pés de Kael, junto com ele, foi subitamente teletransportado.
Em menos de um piscar de olhos, lá estava ele agora, caindo em queda livre, a um quilômetro de altura, cercado por fragmentos de asfalto e concreto arrancados com ele do chão.
Estavam lado a lado com as nuvens, na escuridão do céu.
— “Eu fui teletransportado?! Então… foi a lâmina!” — pensou Kael, os olhos arregalados. — “Se foi ela que teleportou tudo isso… então o poder possivelmente vem dela, e não diretamente dele.”
Porém, interrompendo seus pensamentos, a lâmina voou em alta velocidade em direção ao solo novamente, como se estivesse sendo teleguiada a alguém.
E, em menos de um microssegundo depois, lá estava Sethros, a empunhando ao seu lado em meio ao céu escuro.
Sem perder tempo, ele brandiu sua espada em um corte vertical, mirando em seu alvo com perfeição.
Kael reagiu no mesmo instante, girando o tronco mesmo em meio ao ar, revidando com um soco direto envolto em raios.
O impacto entre a lâmina de Sethros e o punho de Kael rasgou o céu em dois. Uma explosão de relâmpagos afastou as nuvens acima de Porto Alegre.
Kael foi lançado contra os destroços de um dos prédios cortados antes. O choque foi tão devastador que prédios inteiros a volta foram arrancados e arremessados para todos os lados pelo recuo de sua colisão com o solo.
Já Sethros… desapareceu, sem ao menos deixar rastros.
Por entre os escombros, uma mão surgiu.
Kael se levantou, empurrando pedaços de pedra e terra para longe do corpo. Nenhum machucado aparente. Apenas sua camisa social, que estava rasgada e coberta de sujeira.
Ele levou a mão ao pescoço, estalando-o para o lado.
— Certo… — disse com um sorriso confiante no rosto. — Acho que estou começando a entender como funciona.
De seus olhos, faíscas azuis saíam, como se já estivessem contidas ali há muito tempo.
— Agora sim… vamos começar a brincadeira, Seprus.
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CURIOSIDADE 8:
Sethros tem um problema de bipolaridade em níveis extremos, mudando seu humor, suas reações e suas vontades em questão de segundos. Isso vem muito dos experimentos pelos quais ele passou na infância (ainda não explorado na obra). Por causa disso, é visível em vários momentos ele alternar rapidamente entre uma felicidade louca e um prazer violento para, logo depois, uma frieza total.
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FRAGMENTO HISTÓRICO 7:
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⟬ ARQUIVO DE ESTÁGIO 1 — Nº 005 ⟭
Diário pessoal — Observações
Autor: Marek Aurellum — Ano XL após a morte de Cristo.
(Documento confidencial. Extraído dos registros centrais da OPKM.)
Originalmente compilado por Marek Aurellum no quadragésimo ano após a morte de Cristo, como parte da obra “Crônica de Um Poder que Não Compreendo”.
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Logo pela manhã, saí da caupona onde estava hospedado e parti em direção às montanhas, na tentativa de interrogar os moradores locais, provavelmente onde o boato do “Homem Ciclone” tivera início.
Segui com a carroça por cerca de uma hora até chegar à grande montanha de Mons Pratomagnus. Percorremos seus caminhos e, pouco depois, chegamos à pequena vila de Vicus Rupestris, onde o murmúrio parecia ter começado.
Era uma comunidade pequena, de poucos habitantes, mas com belas passagens talhadas na rocha e lindas esculturas de pedra ao longo das vias.
Ali me encontrei com Lucanus enquanto entrevistava os cidadãos. Era um homem de estatura mediana e bom porte físico; tinha cabelos pretos e grandes olhos castanhos. Ele me relatou outra história, distinta daquela repetida pela boca do povo.
Disse que, enquanto caçava em uma área distante da vila, foi surpreendido pela súbita tempestade. Sem rota de fuga, buscou abrigo numa caverna oculta atrás de uma grande cascata. Ali permaneceu por longo tempo, até que as rajadas de vento finalmente cessaram. Então ouviu sons de árvores partindo perto do lago próximo e, ao observar à distância, viu um homem ensanguentado, coberto de cortes, aproximando-se da água.
Segundo ele, espirais de vento giravam ao redor do estranho, cortando de forma perfeita diversas árvores próximas, como se fossem simples folhas de papel. Ao inclinar-se para ver melhor, Lucanus pisou num galho que se quebrou, e tal pequeno barulho já bastou para que o homem percebesse sua presença. Por alguma razão desconhecida, ele fugiu imediatamente para dentro da floresta densa, como se temesse algo.
Não sei se acredito completamente nas palavras de Lucanus, pois os sentidos humanos podem ser facilmente enganados por mistérios da natureza. Ainda assim, para provar o que afirmava, insistiu em levar-me até o lago que mencionou. Como não tenho nada a perder e quero demonstrar bom trabalho em minha primeira missão como Vigiles, aceitei o convite sem hesitar. Partiremos agora.
Logo mais venho atualizar sobre o que encontramos nesse tal lago.
Assinado: Marek Aurellum
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⟬ FIM DO FRAGMENTO ⟭
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