3 meses após o massacre — Porto Alegre, RS

    As ruas estavam vivas.
    Carros passavam em fluxo constante, os faróis refletindo nas poças da última chuva da tarde. Pessoas apressadas cruzavam as esquinas, algumas falando ao telefone, outras apenas seguindo o ritmo automático da cidade. O som dos motores, dos passos, das buzinas… tudo indicava que o mundo continuava girando — como se nada tivesse acontecido.

    Mas para Louie, Porto Alegre nunca mais seria a mesma.

    Ele caminhava lentamente pela calçada de pedras irregulares, as mãos nos bolsos e os olhos fixos à frente, mas vazios.
    O vento úmido de maio soprava entre os prédios, trazendo o perfume das folhas secas misturado ao cheiro metálico da cidade molhada. Alguns galhos das árvores já estavam nus, enquanto outros teimavam em manter tons alaranjados e avermelhados pendendo sobre as calçadas.

    O frio do início do outono não era intenso, mas o suficiente para atravessar o tecido da jaqueta que ele vestia — e alcançar, com facilidade, os lugares mais vulneráveis da alma.

    A poucos metros, erguiam-se os portões fechados do antigo Colégio Península.
    Agora transformado em um memorial silencioso, o local era visitado por centenas de pessoas diariamente — familiares, ex-alunos, curiosos, repórteres.

    Grades cobriam o perímetro.
    Painéis de vidro exibiam os nomes das vítimas.
    Flores, cartas e retratos se amontoavam em murais improvisados, alguns já molhados pela garoa e outros esmaecidos pelo tempo.
    Havia velas acesas, bonecos de pelúcia, terços amarrados e cartazes com mensagens como “Nunca esqueceremos” e “Eles viviam aqui”.

    Louie parou diante do portão principal.

    Mesmo após três meses, a sensação de vazio ainda era opressora.
    Era como se o chão ali guardasse o som das últimas vozes… os gritos… o silêncio final.

    Ele tentou respirar fundo, mas o ar parecia mais denso.
    Mais difícil de engolir.
    Seu coração batia devagar, pesado.
    Nem mesmo as árvores ao redor, com suas folhas secas espalhadas pelo chão, conseguiam esconder o frio que parecia vir de dentro.

    Por mais que o cenário ao redor tivesse mudado, por mais que a cidade tivesse voltado a pulsar, dentro dele ainda havia destroços.
    Fragmentos de algo que ele não sabia como juntar.
    Ainda não compreendia totalmente o que acontecera naquele dia…
    Ou pior — talvez parte dele compreendesse sim… e apenas recusasse aceitar.

    Ele tocou seu olho direito com a ponta dos dedos. A mudança em sua cor, o tom avermelhado, ainda era um mistério, mas a sensação de estranheza nunca o abandonara. A cada dia, ele sentia algo em seu interior, algo que parecia estar prestes a despertar, mas que ele não sabia como controlar.

    Emi, sua mãe, sempre o apoiaria. Ela insistia que ele fosse forte, mas Louie sabia que a dor dela também estava escondida. Nina, sua irmã, era sua fonte de luz nesses dias sombrios. Sempre sorrindo, sempre tentando manter o ânimo dele. Mas Louie sentia que algo estava prestes a acontecer, algo que poderia mudar tudo.

    A tarde estava calma, mas Louie sentia o peso do ar. Era como se houvesse uma eletricidade carregada no ambiente, algo que ele não conseguia explicar. Ele respirou fundo, tentando afastar o medo crescente. Foi quando ouviu uma voz familiar chamando seu nome:

    — Louie! Louie, espera!

    Ele se virou, e viu Nina correndo em sua direção, seus olhos brilhando de excitação.

    — O que foi, Nina? — Louie perguntou, meio distraído com a sensação inquietante que ainda o envolvia.

    Nina parou à sua frente, ofegante, mas com um sorriso de orelha a orelha.

    — Mãe disse que… que você está começando a melhorar! Eu… eu acho que a memória vai voltar, Louie! Eu sinto isso!

    Louie a olhou, um sorriso fraco surgiu em seu rosto, mas as palavras dela não traziam conforto. Ele queria acreditar, mas algo em seu interior dizia que não seria tão simples assim.

    — Eu espero que sim, Nina. — Louie respondeu, tentando disfarçar a angústia.

    De repente, uma onda de calor o envolveu. Ele sentiu uma pressão em seu peito, como se o ar tivesse ficado mais denso. Ele olhou ao redor, mas nada parecia fora do comum. Foi quando, sem querer, seus punhos se cerraram. O calor que sentia em seu corpo parecia se concentrar nas suas mãos. E então, de forma abrupta, uma explosão de luz e energia saiu de seus dedos.

    Nina deu um grito de surpresa, recuando instintivamente para trás. Louie ficou estático, seus olhos fixos nas mãos, agora cobertas por uma energia azulada que parecia pulsar com vida própria. A sensação era estranha, como se a força fosse um reflexo de algo dentro dele, algo que ele não compreendia.

    — O que foi isso…? — Nina perguntou, em choque.

    Louie não sabia o que responder. Ele olhou para as mãos, ainda tremendo. A energia desapareceu tão repentinamente quanto apareceu, mas a sensação de inquietação não sumiu.

    — Isso… eu não sei o que foi. Mas tem algo acontecendo… algo maior. E eu… eu não faço ideia do que seja. — murmurou Louie, com a respiração entrecortada e o olhar perdido.

    Naquele momento, ele sentiu um calor profundo em seu peito. Olhou para Nina e, sem saber como, disse:

    — Acho que… estamos apenas começando a entender o que aconteceu.

    Nina, ainda atônita, tocou o braço de Louie com cuidado, como se temesse que ele fosse desaparecer em uma explosão de luz novamente.

    — Mas… você tem… poderes? — ela perguntou, com a voz baixa e cheia de dúvida.

    Antes que Louie pudesse responder, uma onda de dor se espalhou pela sua cabeça, e ele caiu de joelhos, tentando se segurar. A sensação de vazio aumentou, como se uma parte de sua alma estivesse sendo arrancada. Ele levou a mão à testa, tentando aliviar a pressão, mas as imagens de uma cidade em chamas, corpos espalhados e pessoas gritando começaram a invadir sua mente. Ele viu flashes de um massacre… e então, uma figura. Um homem misterioso, com uma aura de poder que parecia intensa e aterrorizante. Louie tentou se afastar da imagem, mas foi impossível.

    — Louie, o que está acontecendo com você? — Nina perguntou, desesperada, vendo o sofrimento de seu irmão.

    Louie olhou para ela, a confusão estampada no rosto. Queria dizer que estava bem, mas não sabia. Nada fazia sentido — não sabia mais distinguir o que era real daquilo que sua mente tentava desesperadamente processar.

    Foi então que uma voz suave e estranhamente familiar ecoou em sua mente, como se viesse de dentro dele:

    “Ahhh, os olhinhos abriram, Louie!
    Três meses e só agora começa a acordar?

    (uma risada sombria e dissimulada reverberou em sua mente)
    Não foi sorte.
    Você foi escolhido.
    Marcado.
    A verdade já se mexe dentro de você.
    Não precisa entender ainda.
    Primeiro sente.
    Depois… quebra.”

    Um arrepio percorreu sua espinha. As palavras lhe soavam conhecidas, mas ele não fazia ideia de onde vinham.

    — Q-quem é você?! — sua voz quebrou no grito, ecoando vazio pelas paredes ao redor. — Responda!

    A voz desapareceu tão rápido quanto surgiu, deixando Louie ainda mais perdido e inquieto.

    Ele lançou um olhar pesado para Nina e, com esforço, ergueu-se.

    — Acho que… preciso de ajuda. — murmurou Louie, a voz trêmula, como quem tenta se agarrar a algo dentro de si que está se partindo.

    Nina o encarou em silêncio. Havia medo em seus olhos — mas também um brilho discreto, resignado, como se ela já soubesse que algo dentro dele havia mudado para sempre.

    Sem dizer nada, ela apertou sua mão com firmeza. E juntos, começaram a caminhar para casa.

    O mundo ao redor seguia seu ritmo. Mas dentro deles, uma certeza silenciosa crescia: algo estava vindo. Algo maior do que podiam compreender… e que não poderia mais ser evitado.

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