Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 107 — Fio de Sangue
— Não deixarei que escape. Você estará em um cenário de impotência, onde sua única opção será aceitar seu destino e parar de lutar. Sua vida só me serve para sanar algumas dúvidas sobre os deuses. Por isso, eu te deixo viver. Arrancarei sua esperança, te quebrarei ao máximo, e só então me livrarei de você. — Sua voz estava firme, sem raiva ou pena. Apenas um objetivo frio em mente.
— Deuses? — Flügel murmurou, dando um passo para trás assim que o Campeão pareceu sugar o ar. Com uma investida, a criatura se lançou para frente, tentando um corte diagonal com a espada do braço direito superior.
Já esperando a iniciativa, Flügel rodou os calcanhares para a direita, girando e esquivando do golpe. Aproveitando a brecha, ele correu pela lateral esquerda do Ossiarco. Deu um passo para a esquerda e jogou o cotovelo para trás com o punho cerrado, usando todo o corpo para desferir um soco em seus quadris, tentando desestabilizar a criatura.
O impacto das armaduras chocando-se criou um som seco e estridente, como metal contra pedra. Flügel sentiu a força do soco reverberar por seu braço, mas o Campeão Ossiarco permaneceu imóvel, uma muralha.
Seus olhos vermelhos brilhavam com indiferença. Ele moveu o braço esquerdo superior, fintando um ataque com a espada. Na verdade, usou o escudo em seu braço esquerdo inferior, chocando a ponta contra a cabeça de Flügel.
O golpe atingiu o elmo de Aço Dracônico com um clangor ensurdecedor. Flügel cambaleou para trás, a visão borrando em escuridão, os ouvidos zumbindo com um som agudo. A força do impacto reverberou por seu crânio.
A armadura dispersou o máximo da força por seu corpo, mas era impossível não causar danos. Um amassado profundo ficou em seu elmo.
Recuando, ele tentou recuperar os sentidos. A visão estava embaçada, os movimentos, errados. Aquele foi um golpe letal, Flügel tinha certeza de que teria morrido sem sua armadura. Seu rosto se transformou em uma carranca sob o elmo amassado, que agora cutucava sua cabeça.
Uma chama se acendeu em seu peito, como um incêndio. A dor de cabeça latejava ainda mais, e a raiva alimentava essa fúria. Quando isso começava, era um ciclo infinito, nublando seus pensamentos racionais e movendo-o por impulsos.
Em uma tentativa inútil de se desestressar, ele murmurou diversas maldições contra o monstro e contra aquele que o criou.
— Desista. Aceite se tornar minha cobaia de experimentos e eu irei poupar o reino de Tournand. Você pode salvar todas aquelas pessoas, ou ser egoísta e, consequentemente, condenar um reino inteiro à morte. Você vale mais do que uma população inteira? — A voz do Lich ecoou nas paredes, entrando na mente de Flügel como uma doce tentação.
Ponderando por alguns instantes, Flügel decidiu que era uma boa oportunidade de sair dessa situação.
— E Nytheris? O que fará com ele? Me sacrifico por um bem maior, mas jamais sacrificaria aqueles que amo — disse Flügel, aproveitando a pausa para agitar sua mana, dando um enorme fluxo contínuo para sua mão esquerda, onde Nytheris estava alocado, e também para curar seu corpo. Ele conseguia movimentar sua mana dentro do próprio corpo, desde que os Ossiarcos menores não balançassem as foices.
— Será um problema tê-lo por perto quando eu estiver fazendo experimentos, mas sei como fazer um familiar conseguir se auto-sustentar… Se você aceitar a minha proposta, posso deixá-lo viver também. Quem sabe, você até não comece a querer me ajudar a matar os deuses caso descubra mais sobre eles? Ou está sob algum feitiço de lealdade?
— Não tenho lealdade alguma com os deuses. Sinceramente, tenho até mesmo um certo ressentimento e raiva de certas entidades… Eu diria que estou pendendo mais para o seu lado do que para os divinos. Poderia ao menos me dizer o porquê de querer me matar? E quem me observa? — Flügel olhou em volta, usando o momento para explorar suas possibilidades.
‘O triângulo deles é o limite do “campo de batalha perfeito”. Lá fora eu poderei usar a mana livremente. Aqui dentro, eu sou uma presa do campeão. A armadura sobreviveu ao escudo, mas as lâminas… não arrisco. Dar as costas com ele a esta distância é suicídio’
— Está me dizendo que está contra os divinos também? Por que? — A voz do Lich, que tinha uma calma predatória, agora continha um fio de curiosidade faminta, como um caçador farejando uma presa interessante. Ele parecia saborear a ideia de encontrar um companheiro para essa batalha antiga e solitária contra os divinos.
‘Se eu não falar o porquê, ele pode tomar como mentira. Mas se eu falar demais…’
— Eu não posso falar tudo. Estarei me colocando em risco, então temo ter de omitir muito… mas direi algumas coisas. Eu sou amaldiçoado. Estou destinado, sou comandado por seres divinos e caminho em uma estrada já traçada. Não posso dizer com certeza se estou agindo por conta própria, ou se o destino predestinou cada ação minha. Há mais, mas não posso dizer. — Flügel pressionou o punho onde Nytheris estava alojado, quase implorando para seu familiar acordar.
O silêncio caiu sobre a caverna. O som macabro da respiração do Ossiarco Campeão e o leve zumbido das foices dos Ossiarcos menores eram a única coisa que preenchia o local.
Até que um terremoto de grande escala atingiu a caverna, fazendo todos balançarem e o chão parecer dançar.
Flügel se esforçou para manter-se firme sobre o chão que balançava violentamente, não querendo cair na frente da criatura implacável.
Os Ossiarcos conseguiram manter a barreira enquanto se equilibravam. O Ossiarco Campeão não teve dificuldade alguma em se manter em pé sobre aquele chão que parecia ser o assoalho de um barco em alto mar.
‘Nunca tinha presenciado um terremoto. Se estamos perto de Tournand, isso é impossível. Então, estamos dentro da montanha que Severus está atacando?! Isso é bom, não estou longe dos meus companheiros. Mas se a montanha desabar, eu estarei preso em um loop de mortes por desabamento. Se volto segundos antes de morrer, jamais serei capaz de escapar dessa ruína, ainda mais sem mana!’
— Parece que seus amigos estão ficando cada vez mais ansiosos, não é? — A voz do Lich veio, carregada de desdém, mas com um sutil toque de preocupação com seu covil.
— O que você me disse me intriga. Sua existência é, para falar a verdade, fascinante. Você alega viver em uma estrada já traçada, mas por quê? Aposto que está vinculado ao que você não pode falar. Mesmo assim, não confio em você. Não posso confiar em alguém que não sabe se está sob seu próprio controle. A única forma de me parar antes que eu destrua todo o reino de Tournand é se tornar meu prisioneiro.
Flügel cerrou os dentes, cheio de raiva e frustração. Convencer o Lich e ganhar sua confiança para escapar seria o melhor cenário, mas, como sempre, o melhor cenário nunca lhe aconteceu.
— Eu aceito a proposta! — A voz de Flügel ecoou com urgência, uma rendição forçada. Ele precisava vender sua alma para ganhar a próxima hora de vida. — Você tem a minha palavra. Minha prioridade é Tournand e Nytheris! Cumpra a sua parte.
— Muito bem, você fez a escolha mais sábia. Tire sua armadura, agora.
— Não irei me opor a isso. — Flügel começou a remover o elmo. Um fio de sangue quente escorreu de sua testa, cruzando o rosto até o queixo. Era a prova da extrema violência da pancada que levara.
Seguiu tirando suas manoplas, deixando-as cair no chão com um barulho seco ecoando na caverna. Seus olhos procuravam uma saída, mas ele não deixava de vigiar o Campeão. Sem a armadura, a criatura conseguiria decapitá-lo em um instante.
Enquanto tirava a couraça do peitoral, a porta de pedra subiu lentamente, expondo a figura do Lich, que carregava um baú pequeno de ferro envelhecido. Os olhos de Flügel focaram imediatamente na porta se abrindo. Uma saída. Uma brecha.
Mas com o campeão bloqueando sua passagem, era impossível. Ainda mais sem sua armadura.
O Lich abriu a caixa com um clique metálico. Dentro, repousavam três objetos: algemas pesadas de ferro escuro que se conectavam a um cinto peitoral e uma máscara lisa negra.
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