Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
    Aspas duplas para conversa mental: “
    Travessão para falas em voz alta: —

    O sol já havia subido no horizonte, mas a floresta densa resistia à luz, mantendo-se envolta em sombras e um ar úmido que grudava na pele.

    As árvores altas e retorcidas formavam uma barreira impenetrável, com galhos entrelaçados que criavam um dossel, permitindo passar apenas frestas de luz dourada. O ar era pesado, impregnado do cheiro de terra molhada e folhas apodrecidas, e cada passo que dávamos ecoava com o som de galhos quebrados e folhas secas sendo esmagadas.

    Olhei para Nytheris, que caminhava ao meu lado, seu rosto marcado por uma preocupação silenciosa. Parecia reviver os eventos da madrugada, assim como eu.

    Não havia tempo para parar e refletir, porém. Precisava voltar ao reino antes que meus pais percebessem minha ausência. A ideia de enfrentar a decepção deles — ou, pior, o medo que sentiriam ao descobrir que seu filho de cinco anos havia desaparecido — era suficiente para acelerar meus passos.

    — Nytheris — minha voz ainda estava rouca, mas firme —, vamos embora logo… — minha voz estava cansada e saía baixa, eu tinha me esgotado a muito tempo.

    Ele me encarou, seus olhos brilhando com uma intensidade que eu mal conseguia compreender. Por um instante, pareceu hesitar, como se quisesse dizer algo, mas acabou apenas assentindo com a cabeça.

    — Você está certo — respondeu, sua voz suave, mas carregada de uma tensão que não conseguia disfarçar. — A floresta é densa, e o caminho de volta não será fácil. Você está bem para continuar?

    Senti uma pontada de dor no peito ao respirar fundo, lembrando-me do sufocamento e da água gelada que quase me afogou. Apesar do medo, sabia que não podia parar. Ergui a mão, concentrando-me na magia de cura que ainda dominava precariamente.

    Um brilho azul suave emanou da minha palma, iluminando por um breve momento o rosto de Nytheris e as árvores ao redor. A magia não era tão forte; eu conseguiria curar resfriados com facilidade, mas não todo o cansaço e as dores de uma só vez. Ainda assim, um alívio imediato me envolveu à medida que um calor reconfortante se espalhava pelo corpo, suavizando a dor e a tensão nos músculos.

    — Estou melhor — afirmei, tentando soar mais confiante do que me sentia. — Mas preciso me aprimorar nisso. A magia de cura… ela ainda é muito fraca.

    Nytheris observou o brilho azul se dissipar, seus olhos refletindo uma mistura de admiração e preocupação.

    — Você vai melhorar. Você nunca nem leu um livro de magia… mas agora, como sairemos dessa floresta? É muito densa, e não temos ideia de onde estamos — disse ele, suspirando.

    Ele tinha razão. A floresta era um labirinto de árvores e sombras, e cada passo adiante exigia mais esforço que o anterior. Ainda assim, eu sabia que desistir não era uma opção. O reino não estava tão longe, e eu precisava voltar antes que fosse tarde demais.

    Caminhamos em silêncio por algum tempo, o som dos nossos passos sendo o único ruído a romper a quietude da floresta. A cada minuto, o peso da responsabilidade crescia sobre meus ombros — não apenas pela urgência de chegar em casa, mas também pela jornada que ainda me aguardava.

    As respostas que eu buscava, os segredos que precisava desvendar, tudo parecia distante e nebuloso. Porém, uma única certeza me sustentava: eu não estava sozinho. Por mais que o passado tentasse me alcançar, eu não permitiria que ele moldasse meu futuro.

    A cada inspiração, sentia a mana fluir pelo meu corpo e se acumular em algum ponto dentro de mim. Já não estava completamente drenado, mas ainda me sentia longe de estar pleno.

    — Nytheris, você me deixa com pouquíssima mana, hein? Não me sinto cheio, mesmo depois de repor minha mana por mais de meia hora. E essa é a quantidade que sempre estou acostumado a ter — comentei, enquanto me sentava ao pé de uma árvore. Naquele exato lugar, a mana parecia mais densa; eu conseguiria recuperá-la bem mais rápido ali.

    — Oh, bom, você sabe… eu estava constantemente absorvendo sua mana. Sempre que você a captava pela respiração, eu a tomava, então você nunca recuperava muito. Só parava de absorvê-la quando você a utilizava — explicou Nytheris, sentando-se à minha frente.

    Enquanto ele falava, coloquei a mão direita sobre o peito. Uma luz azul brotou da minha palma, e um calor reconfortante penetrou meu corpo. Usei uma quantidade considerável de mana, mas o cansaço foi sendo dissipado pela magia, que eu mantinha ativa continuamente.

    — É… mas ei, você não consegue absorver mana como eu? — perguntei, olhando para Nytheris, que observava os arredores com uma adaga negra medieval na mão direita, uma criação sua.

    Toquei o bolso direito, confirmando que a bolsinha de moedas ainda estava lá. Era o único item que consegui pegar do corpo morto que encontrara. Aquelas moedas com certeza ajudariam muito minha família.

    — Não, pelo menos ainda não… Não sei se algum dia conseguirei, mas, tipo… eu nem sei como você faz isso, sabe? Esse negócio de absorver mana — respondeu Nytheris, seus olhos se fixando no meu peito, como se tentasse desvendar algo. — Acho que você não depende só da sua reserva de mana… E isso pode ser um problema mais adiante.

    — Um problema mais adiante? — retruquei, confuso, querendo entender a que ele se referia.

    — Bom, não sei… Mas você sabe que tem um núcleo de mana, certo? Não é algo físico, como o coração ou outro órgão, mas… Talvez você esteja “refinando” seu corpo e núcleo cada vez que absorve mana do ambiente. Com o tempo, isso pode remover certas impurezas do seu corpo. Talvez eu esteja errado — disse Nytheris, hesitante, como se estivesse escondendo algo.

    Eu continuava muito confuso sobre isso que ele acabara de dizer, mas eu estava tão exausto que decidi não insistir no assunto e passei meia hora aplicando magia de cura em mim mesmo. Embora fraca, ela ainda funcionava, mesmo que lentamente. Não estava totalmente recuperado, mas me sentia bem melhor que antes.

    — Certo, vamos, Nytheris. Aquele bastardo ainda pode estar por aí — falei, me levantando. Minha mana estava bem mais restaurada; eu não havia gastado muito para me curar, e aquele lugar parecia repleto de mana.

    — Se continuarmos por terra, vamos levar horas para chegar ao reino, Flügel — alertou Nytheris, apertando mais forte a adaga.

    — É… bom, talvez esteja na hora de eu aprender a voar. Mas… e se alguém do reino me ver voando? Bem, vou ter que arriscar… O lich ainda está na floresta; se demorarmos, aquele lobo dele será um problema.

    Voar não era algo que eu dominava por completo, mas sabia que não tinha escolha. A floresta era densa, e o caminho por terra consumiria horas que não podíamos perder. O lich e seu lobo sombrio poderiam nos alcançar a qualquer momento.

    A sensação de desespero que eu senti quando passei pelo muro de Tournand voltaram e me fizeram estremecer, mas eu não podia parar para pensar muito agora. Eu precisava voar por necessidade.

    — Certo — disse, respirando fundo enquanto tentava me acalmar — Vamos tentar.

    Nytheris assentiu e, como se percebesse minha necessidade de foco, sua forma sombria se dissolveu, mergulhando no meu peito. A sensação era estranha, mas reconfortante. Eu sabia que ele estava ali, como sempre, e sua presença me trazia paz.

    Fechei os olhos por um instante, sentindo a mana fluir dentro de mim. Dominava bem a magia de gravidade, mas usá-la para voar exigia precisão. Desta vez, não me limitaria a aliviar meu peso e me impulsionar com vento; eu voaria de verdade.

    Comecei aplicando a magia de gravidade sobre mim, reduzindo meu peso até quase levitar. Em seguida, concentrei-me na magia de vento, criando uma corrente de ar ao meu redor. No início, foi difícil equilibrar as duas forças, mas aos poucos encontrei o ponto certo. O vento me envolveu, erguendo-me do chão, enquanto a gravidade ajustada me mantinha estável no ar.

    — Isso — murmurei, sentindo uma pontada de orgulho. Estava voando, e logo percebi o orgulho de Nytheris emanava pelo meu peito.

    Contemplava a floresta abaixo, as árvores altas agora distantes. O sol brilhava sobre as copas, iluminando o caminho rumo ao reino. Ao longe, atrás de mim, avistava as montanhas que cercavam Tournand, suas encostas verdes e íngremes contrastando com o céu azul.

    A floresta densa se estendia até a base das montanhas, onde a umidade das chuvas frequentes favorecia o crescimento das árvores.

    — Vamos — falei, direcionando-me ao reino.

    Voar era incrível, mas exaustivo. A cada minuto, sentia minha mana diminuir. Mesmo assim, prossegui, mantendo o equilíbrio entre gravidade e vento. Nytheris permanecia em mim, sua presença silenciosa e reconfortante.

    À medida que nos aproximávamos, as muralhas de pedra e as torres imponentes de Tournand surgiram à vista. Não era a entrada principal, mas um portão menor, usado sobretudo por aventureiros e trabalhadores que coletavam recursos na floresta.

    Uma trilha clara levava ao portão, cercada por uma clareira onde as árvores haviam sido cortadas. Quatro guardas montavam a guarda do portão menor do reino de Tournand — dois espadachins e dois magos —, suas armaduras e túnicas reluzindo ao sol enquanto inspecionavam os transeuntes.

    Perto do portão, um grupo de aventureiros conversava animadamente, e trabalhadores carregavam sacos e caixas para dentro do reino.

    — Estamos quase lá — murmurei, sentindo um alívio imediato.

    Porém, mal as palavras deixaram meus lábios, algo chamou minha atenção. Um vulto escuro movia-se entre as árvores abaixo, rápido e silencioso. Meu coração disparou, e instintivamente desviei o olhar, evitando atrair sua atenção.

    “Nytheris” chamei mentalmente, sabendo que ele me ouviria.  “Você viu isso?”

    “Vi” respondeu, sua voz ecoando na minha mente. “Mas não podemos parar agora. Continue voando.”

    Concordei, acelerando o voo e, com isso, consumindo mais mana. O vulto podia ser apenas um animal, mas eu não queria arriscar. O lich e seu lobo sombrio eram uma ameaça real, e eu não os subestimaria.

    Minha mana, contudo, estava se esgotando rapidamente. Eu não tinha controle suficiente para sustentar o voo por muito tempo, e cada segundo exigia um esforço imenso. Por fim, quando estava quase alcançando o portão, minha concentração falhou. O vento cessou por falta de mana, e eu me concentrei apenas em reduzir meu peso para não me estatelar no chão.

    — Droga! — exclamei mentalmente, tentando recuperar o controle, mas era tarde demais.

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