Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 16 — Esforço Bem Recompensado
Aragi arregalou os olhos, surpreso e incrédulo, enquanto largava a faca e pegava o saquinho de moedas e a moeda de ouro. Até Sophia, que lavava os pratos, parou, a esponja ainda na mão, olhando para a mão de Aragi e para mim, boquiaberta.
— Isso… isso é incrível, filho! — Aragi exclamou, colocando o saquinho e a moeda sobre a mesa. Ele me levantou com facilidade, como se eu fosse leve como uma pena, e beijou minha bochecha várias vezes, rindo alto.
— Uma moeda de ouro? — Sophia murmurou, ainda pasma. Ela largou a esponja e se aproximou da mesa, abrindo o saquinho com dedos hesitantes. — Cinco moedas de bronze… duas de prata…
Eu sorri para ela, esperando um elogio, mas seus olhos encontraram os meus, e o brilho de alívio deu lugar a uma sombra de raiva e preocupação.
— Mas isso não apaga o que você fez, Flügel! — disse, apontando um dedo para mim. — Nunca mais saia sem nos avisar. Você continua de castigo, entendeu?
— Tudo bem… — murmurei, coçando a nuca. Era justo, eu sabia. Tinha sido imprudente, mesmo que o resultado tivesse valido a pena.
Aragi pegou as cinco moedas de bronze e uma de prata, um sorriso largo iluminando seu rosto.
— Vou comprar mais carne, pães, e talvez uns vegetais frescos, tá bom? — Ele puxou Sophia pela cintura, abraçando-a com força e beijando sua bochecha demoradamente. Ela relaxou um pouco nos braços dele, mas ainda mantinha o cenho franzido.
— Tudo bem, querido — respondeu, com um suspiro.
Aragi se abaixou até ficar na minha altura, seus olhos castanhos encontrando os meus. Ele beijou minha testa e segurou meus ombros com as mãos calejadas.
— Flügel, sua mãe está certa. Vamos comer melhor por sua causa, e estou orgulhoso de você por pensar na família. Mas foi perigoso, meu filho. Muito perigoso. Não faça isso de novo, tá bom?
Concordei com a cabeça, sem saber o que dizer. Ele estava certo, mas mesmo com o medo que senti enfrentando aquele lich, Nae’Zyrael, não me arrependia. Ver o sorriso de Aragi e saber que Elijah e Mael teriam comida de verdade era a melhor recompensa que eu poderia querer.
— Estou indo! — Aragi disse, levantando-se e caminhando até a porta. Ele saiu, e o som da porta se fechando ecoou pela casa.
Sophia voltou a lavar as tigelas, o barulho da água contra o metal enchendo o silêncio.
— Mãe, posso ir dormir? Tô muito cansado… — pedi, bocejando. Meu corpo parecia pesado, como se cada passo na floresta ainda estivesse grudado em mim.
Ela hesitou, olhando para mim por cima do ombro. Por um segundo, achei que ela ia dizer algo gentil, mas então apontou para a bacia quase vazia ao lado.
— Antes, pode encher isso pra mim? O Capitão Garrick disse que você sabe magia de água, não é?
— Tá bom — respondi, arrastando os pés até a bacia. Apontei a palma da mão, concentrando-me, e uma bola de água se formou, brilhando levemente antes de cair na bacia, enchendo-a quase até a borda. — Assim tá bom?
Sophia acenou com a cabeça, mas seus lábios estavam apertados, como se ela quisesse dizer algo, mas não soubesse o quê. Fui até o quarto onde dormíamos, deitei nos panos que usávamos como colchão e puxei o cobertor fino sobre mim. O cansaço me engoliu, e em minutos, eu estava apagado.
…
Acordei com o sol já baixo, a luz dourada entrando pela janela rachada. A casa estava silenciosa, exceto pelo som abafado de vozes na cozinha. Meu estômago roncou, e percebi que o cheiro de ensopado pairava no ar, quente e familiar. Levantei-me, esfregando os olhos, e caminhei devagar até a cozinha, ainda grogue.
O cheiro de madeira velha misturava-se ao aroma do ensopado que Sophia mexia no fogão. Elijah e Mael já estavam à mesa rústica, as pernas balançando enquanto trocavam olhares curiosos.
Sophia mexia a panela com movimentos bruscos, a colher batendo na borda de ferro como se estivesse descarregando algo. Aragi cortava um pedaço de pão duro com uma faca cega, os olhos fixos na tarefa, evitando o olhar de Sophia.
“Por que tá esse clima horrível de novo?” Nytheris murmurou na minha mente, sua voz carregada de curiosidade. — Eles brigaram por sua causa, aposto.
“Não sei…” respondi, hesitante. “Acho que é por causa do exército. Sophia não tá feliz com isso.”
“E você? Tá pronto pra deixar eles pra trás?” Nytheris perguntou, e havia um tom mais sério em sua voz, como se ele soubesse o peso do que estava por vir.
“Não sei ainda” admiti, sentindo um aperto no peito. “Mas tenho que tentar, né?”
Puxei a cadeira perto da janela, e o arrastar contra o chão fez Elijah erguer a cabeça. Ele abriu a boca para falar, mas Mael deu um chute leve em sua perna por baixo da mesa, silenciando-o com um olhar. Sorri por dentro — meus irmãos estavam tão confusos quanto eu, tentando entender o que estava acontecendo.
— Sente-se, Flügel — Sophia disse sem se virar, a voz firme, mas com um tremor que eu sabia ser preocupação.
Obedeci, deslizando para o assento ao lado de Mael. O silêncio voltou, pesado, quebrado apenas pelo crepitar do fogo no fogão. Sophia serviu o ensopado em tigelas lascadas, o vapor subindo em fios finos. Era simples — batatas, um pouco de carne seca e ervas —, mas naquela noite, cada colherada parecia carregar o peso do dia.
Aragi limpou a garganta, quebrando o silêncio.
— Amanhã vai ser diferente, hein? — Ele olhou para mim, o pão ainda na mão. — Não é todo dia que um garoto de cinco anos entra pro exército.
Sophia deixou a colher cair na panela com um barulho alto, virando-se para ele com os olhos estreitados. Suas mãos apertaram a colher com força, como se ela estivesse segurando as palavras que queria gritar.
— Diferente? — retrucou, a voz afiada. — Ele é uma criança, Aragi. Não devia estar assinando papéis com soldados!
— Ele não vai lutar amanhã, Sophia — Aragi respondeu, calmo, mas firme. — Você ouviu o Capitão. Estudo, treinamento… é uma chance. Melhor do que essa vida que a gente tem agora.
Ela cruzou os braços, o rosto endurecido, mas seus olhos brilharam com algo que parecia medo. Eles caíram sobre mim, e senti aquele peso de novo — como se ela quisesse me proteger, mas soubesse que não podia.
— Eu vou ficar bem, mãe — disse, tentando soar confiante, embora minha voz tremesse um pouco. — O Capitão disse que vou aprender coisas. Magia, luta e eu vou estudar.
Elijah deu uma boa colherada em sua comida, quase derrubando ela e disse animado:
— Você tem que me levar quando voar de novo, Flügel! Quero ver as nuvens de perto!
Mael revirou os olhos, mas um sorriso escapou dele.
— Ele não vai te levar, Elijah. Você ia gritar e cair na primeira ventania.
— Não ia, não! — Elijah protestou, batendo a colher na mesa. Então, ele olhou para mim, os olhos arregalados. — Flügel… você vai morar com os soldados? Não vai mais dormir aqui?
A pergunta me pegou desprevenido. Olhei para ele, depois para Mael, que fingia não se importar, mas estava esperando minha resposta.
— Não sei ainda — admiti, coçando a cabeça, sentindo-me mais criança do que nunca. — Acho que vou treinar aqui no reino, mas… vou voltar pra casa sempre que puder. Prometo.
Sophia bufou, um som que era meio risada, meio suspiro, e pela primeira vez naquela noite, a tensão pareceu aliviar. Ela voltou ao fogão, mexendo o ensopado com menos força, mas suas mãos ainda tremiam levemente.
Aragi balançou a cabeça, um sorriso tímido nos lábios.
— Vamos comer, pessoal. Hoje é dia de comemorar o que temos.
Comi em silêncio, deixando as vozes deles preencherem o espaço. Nytheris estava quieto, mas eu sentia sua presença, como um apoio invisível. Não era só o ensopado que aquecia meu peito — era a sensação de que, apesar de tudo, eu ainda tinha minha família. Esse lar. Mesmo que amanhã eu começasse a caminhar para longe dele.
Depois do jantar, Elijah e Mael correram para o canto da casa onde dormiam, brigando pelo cobertor mais grosso. Sophia começou a limpar as tigelas, e Aragi se sentou perto da janela, olhando para a noite que caía. Hesitei antes de me aproximar dele.
— Pai… você acha que fiz a coisa certa? — perguntei, a voz baixa para que Sophia não ouvisse.
Ele virou a cabeça, seus olhos castanhos encontrando os meus. Por um momento, ele só me encarou, como se tentasse ver além do garoto de cinco anos na frente dele.
— Não sei se foi a coisa certa, Flügel — disse, por fim. — Mas foi corajoso. E às vezes, é tudo que a gente pode fazer.
Concordei com a cabeça, sentindo aquelas palavras se acomodarem no meu peito. Coragem. Não era uma palavra que eu usava para mim, mas vindo dele, parecia verdade.
— Vá dormir, filho — ele acrescentou, apontando para o quarto. — Amanhã vai ser um dia grande.
Obedeci, caminhando até o quarto e me deitando nos panos que usava como colchão. Puxei o cobertor fino, sentindo o frio do chão de madeira. A escuridão me envolveu, mas não parecia tão pesada quanto antes.
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