Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 17 — O Alvorecer de um Mago
O céu ainda estava tingido de cinza quando acordei. O silêncio da casa era quebrado apenas pelo ronco leve de Aragi e pelo som distante do vento que soprava contra as tábuas mal ajustadas da janela.
Meu corpo parecia pesado, como se o peso do que estava por vir tivesse se alojado nos meus ossos durante a noite. Mas eu me levantei mesmo assim. O cobertor fino escorregou para o chão enquanto eu esfregava os olhos, tentando afastar o sono e a incerteza que me agarravam como sombras.
Sophia já estava na cozinha, e o cheiro de mingau ralo subia da panela de ferro. Ela não disse nada quando me viu, apenas apontou com o queixo para uma tigela sobre a mesa. Seus movimentos bruscos de sempre estavam carregados de uma tensão que eu sabia ser por minha causa. Aragi apareceu logo depois, com o cabelo desgrenhado e os olhos ainda meio fechados, mas ele me deu um aceno firme antes de se sentar ao meu lado.
— Coma rápido, Flügel — ele disse, com a voz rouca de sono. — O sol vai nascer em breve, e você ouviu o Capitão: sem atrasos.
Assenti, peguei a colher de madeira e engoli o mingau sem realmente sentir o gosto. Era quente, mas simples, como tudo em nossa vida até então. Elijah e Mael ainda dormiam juntos em seu quarto compartilhado.
“Você está quieto demais”, Nytheris murmurou na minha mente, sua voz cortando o silêncio como um fio de luz. “Nervoso?”
“Um pouco”, admiti, mexendo o mingau distraidamente. “Não sei o que esperar. E se eu não for bom o suficiente?”
“Você voou sem ninguém te ensinar”, ele retrucou, o tom quase impaciente. “Enfrentou um lich e sobreviveu. Você é mais do que bom o suficiente, Flügel. Só precisa acreditar nisso.”
Não respondi, mas suas palavras aqueceram algo dentro de mim, como uma brasa que se recusava a apagar. Terminei o mingau, levantei-me e ajustei a túnica marrom surrada, que era a única coisa limpa que eu tinha para vestir além da roupa que eu estava usando. Sophia me observou de canto de olho, hesitando antes de falar.
— Tome cuidado — ela disse finalmente, com a voz baixa, quase engolida pelo crepitar do fogo. — E volte para casa quando terminar, hein?
— Vou voltar, mãe — prometi, forçando um sorriso que ela retribuiu com um bufo.
Aragi se levantou e colocou uma mão no meu ombro. — Vamos. Eu te levo até a rua principal. O resto você faz sozinho.
O ar lá fora estava frio, com o orvalho ainda cobrindo a terra batida enquanto caminhávamos em silêncio. O céu clareava aos poucos, com tons de laranja e rosa se misturando ao cinza.
Quando chegamos à rua principal, Aragi parou e se virou para mim com um olhar que eu não conseguia decifrar. — Você é forte, filho. Mais forte do que eu era na sua idade. Só… não se esqueça de quem você é, tá bem?
— Tá bom, pai — respondi, com a voz firme apesar do nó na garganta.
Ele me deu um tapinha nas costas antes de se virar e voltar para casa sem olhar para trás. Fiquei ali por um instante, observando-o desaparecer na curva, antes de eu seguir em direção à base no portão. O som dos meus passos ecoava na rua vazia, misturando-se ao canto tímido dos primeiros pássaros.
A base surgiu à minha frente mais rápido do que eu esperava, com o granito escuro refletindo a luz fraca do amanhecer. Os guardas no portão menor me reconheceram de imediato e acenaram para que eu entrasse sem dizer uma palavra.
O interior estava mais movimentado agora, talvez por ser de manhã. Na cozinha, no canto, havia uma pequena fila para cada guarda pegar um pão com alho dentro, enquanto outros dois faziam os pães. O cheiro permanecia o mesmo: pães, couro e um pouco de óleo, que provavelmente subia do subsolo. Eadric estava lá, esperando perto da entrada da sala de comando, com os braços cruzados e a postura rígida como sempre.
— Pontual — ele disse, com a voz seca, mas com um leve aceno de aprovação. — O Capitão gosta disso. Venha comigo.
Segui-o para dentro, ao lado de Garrick. Havia uma mesa simples no centro, coberta por pergaminhos e uma pilha de livros encadernados em couro. Na parede atrás dela, uma janela pequena deixava entrar a luz do sol nascente.
Um homem mais velho estava lá, de pé perto da mesa, com cabelo grisalho curto e um manto azul-escuro que parecia caro demais para aquele lugar. Seus olhos me encontraram imediatamente, afiados e curiosos. Em seu olho direito, havia um monóculo pequeno com uma lente um pouco azulada, que trocava ligeiramente de cor: ficava esverdeada, azulada, amarelada e então apenas transparente, e assim o ciclo se repetia.
— Esse é o garoto? — ele perguntou, com a voz grave carregando um sotaque que eu não reconhecia.
— Sim, Mestre Thalion — Eadric respondeu, fazendo um gesto para que eu me aproximasse. — Flügel Handels, o prodígio do Capitão Garrick.
Thalion me estudou por um longo momento, como se pudesse ver através de mim. A lente de seu monóculo ficou apenas transparente, parando de mudar de cor. Senti um arrepio, mas mantive o queixo erguido, lembrando das palavras de Nytheris. Ele finalmente assentiu e apontou para uma cadeira à sua frente.
— Sente-se, Flügel. Meu nome é Thalion Veyris, mago da Ordem dos Magos de Tournand. Fui chamado para avaliá-lo antes de começarmos seu treinamento formal. O Capitão me disse coisas… interessantes sobre suas habilidades.
Sentei-me, com as mãos apertando as bordas da cadeira enquanto ele pegava um dos livros e o abria em uma página marcada. — Magia de vento para voar, cura, fogo, água, gelo… tudo isso sem treinamento formal, aos cinco anos. É verdade?
— Sim, senhor — respondi, com a voz mais firme do que eu esperava. — Eu… aprendi sozinho. Não sei como explicar.
— Não precisa explicar ainda — ele disse, com um leve sorriso surgindo em seus lábios. — Vamos descobrir juntos. Mas primeiro, quero ver. Mostre-me algo, qualquer coisa.
Hesitei, olhei para Garrick, que apenas assentiu. O ambiente parecia pequeno demais para voar, então optei por algo simples. Estendi a mão, concentrando-me como fizera tantas vezes antes, e uma esfera de água se formou acima da minha palma, girando lentamente antes de congelar em um cristal perfeito. Thalion ergueu uma sobrancelha e se inclinou para frente.
— Impressionante. Controle natural sobre dois elementos em sequência. E isso sem esforço visível… — Ele anotou algo em um pergaminho, e o som da pena arranhando o papel preencheu o silêncio. — Diga-me, Flügel, você já sentiu algo… estranho quando usa magia? Algo que não consegue explicar?
A pergunta me pegou de surpresa. Pensei em Nytheris, na voz que me guiava desde que eu conseguia me lembrar, mas não sabia se deveria falar sobre ele. Ainda não.
— Às vezes — respondi, escolhendo as palavras com cuidado. — Sinto como se… a magia viesse de um lugar que eu não entendo, como se fosse maior do que eu. — Peguei a bola de gelo e a coloquei sobre a mesa, ajeitando-a levemente para que não rolasse e se espatifasse no chão.
Thalion assentiu, como se esperasse essa resposta. — Interessante. Muito interessante. Vamos começar com o básico hoje, mas acredito que você será mais do que um simples soldado, garoto. Há algo em você… algo antigo, talvez. O nome da sua família é Handels, certo?
— Antigo? Sim, o nome da minha família é Handels… — disse, incerto, enquanto meu coração acelerava.
— Isso explica muitas coisas… Mas não se preocupe com isso agora — ele disse, fechando o livro com um estalo. — Vamos testar seus limites. Levante-se. Quero ver o que você consegue fazer com o vento.
— Tem certeza? O espaço é pequeno… — falei indeciso, com medo de dar algo errado enquanto tentasse voar e quebrasse algo.
— Não tenha medo, apenas faça.
Obedeci, sentindo o olhar de Thalion, Garrick e Eadric sobre mim enquanto me posicionava no centro da sala. Fechei os olhos, respirei fundo e deixei a magia fluir. Criei uma corrente de vento que me impulsionava para cima com a mão esquerda.
Com a mão direita, removi a gravidade do meu corpo. O ar ao meu redor ficou mais forte, levantando os pergaminhos da mesa e fazendo o manto de Thalion ondular. Abri os olhos e vi que estava pairando a poucos centímetros do chão, com o vento sustentando meu peso como uma mão invisível.
— Incrível — Thalion murmurou, com os olhos brilhando de excitação. — Você é um talento sem igual, Flügel Handels. E eu pretendo poli-lo!
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