Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 27 — Promessa
Eu saí da sala de aula de Darel e passei por duas outras salas antes de entrar na terceira. Lá, assisti à aula do mestre Álvaro.
A sala era menor que as demais, com paredes de pedra gastas. No centro, um círculo de treinamento desenhado com uma tinta preta específica para círculos mágicos delimitava o espaço de combate. À primeira vista, parecia apenas uma marcação qualquer, mas, na verdade, era um círculo mágico de cura de alto nível.
Caso algo grave acontecesse durante os treinos, Álvaro só precisaria despejar mana nele, e qualquer ferimento dentro da área seria imediatamente tratado. Era um sistema preventivo para que ninguém morresse — ou saísse com um braço a menos — durante os treinos com ardema.
Mestre Álvaro já estava no círculo quando entrei. Sua mão esquerda segurava uma espada longa com uma firmeza que desafiava a ausência do braço direito. A manga direita da camiseta de mangas compridas estava dobrada e presa acima do coto, expondo a pele cicatrizada. O sorriso torto em seu rosto misturava incentivo e ameaça.
— Sentem-se — ordenou ele, com a voz grave que silenciava qualquer murmúrio.
Sentei-me em um banco de madeira ao lado de Lirien, que polia uma adaga com movimentos precisos. Ela me lançou um olhar rápido, avaliador, antes de voltar à sua tarefa. Ela sempre fazia isso. Os outros cadetes se acomodavam, mas seus olhares pesavam sobre mim, carregados de desprezo.
Eu era uma criança de seis anos em um quartel onde a idade mínima para cadetes era quinze. Minha presença os irritava, como se eu, um garoto franzino, estivesse roubando o lugar de alguém mais digno.
Nytheris, materializado ao meu lado, permaneceu em silêncio. Estava mais calado do que o normal, e eu suspeitava que era por causa da noite passada. Sua camisa cinza de manga longa, moldada por mana, parecia deslocada naquele ambiente rústico. Ele cruzou os braços e fixou os olhos em Álvaro.
Álvaro deu um passo à frente, a espada na mão esquerda apontada para o chão.
— Hoje, vocês vão aprender a lutar com o ardema e a espada como se fossem um só — anunciou ele, erguendo a lâmina. Uma aura avermelhada, o ardema, envolveu a espada, fazendo o metal vibrar com energia. — Imbuir mana na arma é o básico. Mas o ardema… isso é o que separa os soldados dos mortos. Ele amplifica em muito a durabilidade e o corte da espada. Diferente da mana que amplifica pouco da espada.
— Flügel! — chamou ele, a voz cortando meus pensamentos.
Levantei-me, ignorando os sussurros venenosos dos cadetes. “Criança,” ouvi novamente, baixo, mas claro. A raiva queimou no peito, mas mantive a calma e encarei Álvaro.
— Sim, senhor? — respondi, firme.
— No círculo. Vamos ver se esse ardema que você mostrou aguenta um combate de verdade — disse ele, o sorriso torto se alargando. — Pegue uma arma.
Caminhei até o suporte de armas, sentindo os olhares dos cadetes como facas nas costas. Escolhi uma espada curta e testei seu peso com um movimento rápido. Não era minha favorita, mas sabia que Álvaro queria me levar ao limite, então a arma não faria muita diferença.
— Seu objetivo é simples — explicou ele, posicionando-se no lado oposto do círculo. — Me acertar. Um golpe. Use o ardema, imbua ele na espada também, mas não hesite.
Senti o ardema pulsar no peito, quente e familiar. “Eu consigo acertar um golpe, eu acho,” pensei, apertando o cabo da espada.
Álvaro atacou sem aviso. Sua espada, envolta em ardema vermelho escuro, cortou o ar com um zumbido. Imbui mana na minha espada, sentindo o metal vibrar em resposta, e levantei a lâmina para bloquear. O impacto foi brutal. Meus braços tremeram, e meus pés deslizaram pelo chão. O ardema em meus braços estava amplificando minha força, mas a dor familiar veio junto, um lembrete do preço que ele cobrava.
— Lento! — zombou Álvaro, girando o corpo e atacando novamente, a espada mirando meu ombro.
Intensifiquei o ardema, a aura invisível envolvendo meu corpo, e desviei para o lado, mais rápido do que o normal. Tentei um contra-ataque, trocando de mana para ardema sobre a espada para reforçar o golpe, mas Álvaro bloqueou com facilidade. Ele me deu um chute no estômago que me jogou para trás. Rolei pelo chão, a espada ainda na mão, o peito ardendo como se estivesse em chamas.
— Vamos! Levante e me ataque de verdade! Você só tem isso?
Levantei-me, ofegante, o suor escorrendo pelo rosto. Tentei de novo, canalizando o ardema para reforçar o corpo e também imbuindo ardema na espada ao mesmo tempo. Ataquei com um golpe descendente, a lâmina brilhando com energia. Álvaro bloqueou, mas, por um instante, senti resistência, como se ele tivesse precisado se esforçar um pouco mais.
— Melhor! — exclamou ele, o sorriso torto com um toque de aprovação. — Mas ainda não é o suficiente!
O duelo prosseguiu, mas não durou muito. Meu corpo estava chegando ao limite por eu estar usando o ardema forçadamente; meus braços pareciam dois blocos de pedra para levantar. Álvaro desviou minha espada para baixo e me deu um chute forte nas pernas, me jogando no chão.
— Fim — declarou ele, abaixando a arma.
Fiquei ofegante, uma dor latejante no peito como um coração em chamas. Os cadetes me encararam, alguns com sorrisos maliciosos, outros murmurando maldições baixo o suficiente para Álvaro não ouvir. A dor que o ardema causava se misturava à raiva, mas forcei-me a manter a calma.
Álvaro me olhou, o sorriso torto suavizando por um instante.
— Não foi horrível, Flügel. Seu ardema é forte pra sua idade, e você sabe usar ele na espada também. Mas precisa melhorar nisso. Não se preocupe, você é a primeira criança que eu vejo conseguir utilizar tão bem assim o ardema, ainda mais antes de ter despertado ele.
— Sim, senhor — respondi, tentando ignorar os olhares invejosos e maldosos dos cadetes.
Ele acenou com a cabeça e me dispensou. Voltei ao banco, e Lirien sussurrou:
— Você foi bem. — Lirien me tratava como uma criança, mas sabia que eu tinha talento. O exército não me colocaria aqui tão novo se eu não fosse especial. E todos sabiam disso, mas não aceitavam isso muito bem.
Nytheris, ainda calado, apenas me observava. Os olhos estreitados, o lábio inferior projetado num leve beicinho. Ele estava me olhando com orgulho, mas também parecia magoado. Eu sabia o porquê.
A aula continuou, com outros cadetes enfrentando Álvaro. Lirien foi chamada e se saiu bem, usando o ardema para aumentar a agilidade e imbuindo ele também na adaga para golpes precisos, embora também não conseguisse acertá-lo. Álvaro corrigia erros com uma mistura de zombaria e precisão, implacável como sempre.
Quando o sino do quartel tocou, marcando o fim da aula, Álvaro nos dispensou com um aviso:
— Amanhã, tragam o dobro de disposição. Hoje eu não irei punir ninguém já que todos falharam em me acertar, mas amanhã eu irei punir todos que não me acertarem.
Saí da sala com os outros, o corpo exausto e o efeito colateral do ardema fazendo todo o meu corpo doer. O sol estava baixo, tingindo Tournand de laranja e roxo. Nytheris caminhava ao meu lado, Ajustando a gola da camisa cinza com um gesto quase automático. Seu silêncio começava a me irritar.
— Ei, fala logo o que tá acontecendo — disse em voz alta, parando no meio do pátio. — Você tá mais quieto que um morto.
Ele simplesmente se desfez e correu para dentro do meu peito. Sua voz surgiu dentro da minha mente, fria e magoada:
“Como você pôde pensar naquilo ontem à noite?”
Agora eu tinha certeza. Era disso que ele estava falando.
“Você mesmo se culpou por aquilo, Flügel. Disse que foi egoísmo… e agora pensa em repetir o mesmo erro?”
Fechei os olhos, o peso da culpa me atingindo com força.
“Me desculpe, Nytheris. Eu… eu prometo. Nunca mais vou pensar nisso.”
Houve um silêncio denso por um momento. Então ele respondeu, mais suave:
“Você tem uma vida para viver. E se você desistir… eu deixo de existir também.”
As palavras dele me atravessaram como uma lâmina. Ele estava certo. Dessa vez, não era só minha vida em jogo. Era a dele também.
“Eu sei. E não vou esquecer disso.”
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