Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
    Aspas duplas para conversa mental: “
    Travessão para falas em voz alta: —


    Provavelmente já se passou um mês inteiro desde que criei aquela névoa negra. Durante esse tempo, descobri algo intrigante: ela pode absorver a energia que forneço.

    Não sei ao certo se é mana ou outra fonte de poder, mas sempre que estou sozinho, concentro-me da mesma forma que fiz para invocá-la. Aos poucos, sinto algo fluindo dentro de mim, como um rio subterrâneo, até que consigo despejá-lo diretamente sobre a névoa.

    Tento controlá-lo, guiá-lo, alimentá-lo. Às vezes, ele repousa em minha mão, em meu braço ou perna. Outras, paira sobre minha cabeça como um espectro silencioso. Mas, na maior parte do tempo, aninha-se em meu peito, bem acima do coração.

    Meia hora alimentando-o é o bastante para meu corpo ceder. A exaustão me atinge como uma maré, e o sono vem antes que eu perceba.

    O que exatamente eu criei? Um espírito? Um parasita? Um familiar? Ele cresce à medida que absorve minha energia e, mesmo sem falar, há uma conexão entre nós, algo que vai além das palavras.

    Agora com cinco centímetros, já não é apenas uma névoa amorfa. Seu corpo adquiriu uma leve solidez, e a fumaça que escorre dele se assemelha a um longo cabelo negro, oscilando no ar como se tivesse vontade própria.

    Observo-o repousando na palma da minha mão, sua forma trêmula, como se estivesse respirando. “O que você é?”

    Eu deveria me preocupar… mas, por algum motivo, não estou.

    Um ano se passa.

    O tempo flui de maneira estranha para mim. Não sei se é porque ainda sou um bebê ou se é efeito da criatura que criei, mas a sensação é sempre a mesma: comer, dormir e, quando tenho um momento de privacidade, alimentar a névoa negra.

    Ela cresceu. Agora tem em torno de 60 centímetros, então não posso deixá-la sair o tempo todo, mas sempre que acordo de madrugada, coloco-a para fora e observo sua forma.

    Está mais sólida. Seus cabelos agora são facilmente distinguíveis, há cavidades oculares e um nariz. Também perdeu sua forma de estrela, assumindo um corpo humanoide.

    Porém, ainda não fala. Tento conversar com ela, mas não há resposta. No entanto, sempre que começo a alimentá-la, sinto uma leve contestação vinda dela. Consigo perceber seus sentimentos.

    Agora compreendo certas palavras e comandos de meus pais. Também descobri os nomes dos meus irmãos: o mais velho se chama Mael, e o do meio, Elijah.

    Há algo curioso sobre o cabelo de Elijah: é cinza, apesar de minha mãe ter cabelos castanhos e meu pai, pretos.

    Será que ele é filho fora do casamento? Esse pensamento passou pela minha cabeça algumas vezes, mas logo deixo de lado. Eventualmente, descobrirei.

    ‘Quero usar magia ofensiva…’ resmungo em minha mente enquanto observo as sombras dançando no teto de madeira do quarto, as chamas da vela fazendo pouco para iluminar o ambiente.

    ‘Certo, é isso mesmo! Vou usar magia.’ Consigo sentir a presença desse rio correndo pelo meu corpo, e a cada respiração correta, mais água entra nesse fluxo.

    Sento-me no berço, fechando os olhos por um momento. Respiro fundo, concentrando-me na sensação do rio subterrâneo fluindo dentro de mim. A névoa negra repousa próxima, oscilando no ar como se observasse meus pensamentos.

    A ideia de usar magia ofensiva é tentadora, mas antes preciso entender o que sou capaz de fazer. Minhas tentativas anteriores foram instintivas, guiadas mais pela necessidade do que pelo conhecimento.

    Abro os olhos e fito o cobertor fino sobre minhas pernas. Se minha energia pode alimentar a névoa negra e se mover dentro de mim como um fluxo constante, então talvez eu consiga usá-la de forma mais precisa.

    Respiro mais uma vez, tentando repetir a sensação de quando a névoa se alimenta. Visualizo o fluxo da energia movendo-se, não para ela, mas para fora, até o cobertor.

    Minha testa se enruga em concentração. Sinto o rio dentro de mim responder, ainda que de forma hesitante.

    E então, algo acontece.

    A borda do cobertor treme. Quase imperceptível, um movimento tão sutil que poderia ser apenas uma ilusão dos meus olhos cansados. Mas não é.

    O rio dentro de mim se agita, e a borda do cobertor se ergue levemente antes de cair de novo, como se algo invisível tivesse tentado puxá-la e perdido as forças.

    Meus olhos se arregalam.

    ‘Eu fiz isso? Isso foi magia de gravidade? Ou talvez eu possa ter usado telecinese?’

    A névoa negra vibra em meu peito, como se sentisse minha excitação.

    Sinto meu coração acelerar, o cansaço ameaçando me dominar, mas o desejo de tentar mais uma vez fala mais alto.

    Respiro fundo e tento de novo.

    Porém, ao me concentrar para levantar a borda do cobertor novamente, desmaio, provavelmente por exaustão.

    Sou acordado pela minha mãe, que me pega para me amamentar. A névoa negra está aninhada em meu peito, uma sensação estranha, mas com a qual já me acostumei.

    Depois de me alimentar, ela me coloca no chão da cozinha para engatinhar. Parece que quer que eu me esforce para me desenvolver corretamente.

    E assim faço, engatinhando pela casa toda, menos no banheiro.

    ‘Droga… estou exausto…’ Minha mãe me coloca sentado perto do meu irmão do meio, Elijah. Eu tenho um ano de idade, Elijah parece ter dois, e Mael aparenta ter quatro.

    Ambos brincam com bonecos de madeira desgastados, mas estou muito cansado para distinguir suas formas.

    O chão de madeira é frio contra minha pele, mas não me importo. Meu corpo pequeno e frágil está exausto depois de tanto esforço. Minha mãe me deixou ali, perto de Elijah e Mael, talvez esperando que eu tentasse interagir com eles.

    Mas não quero.

    Meus olhos se fixam no teto, onde a fraca luz da vela faz as sombras oscilarem como figuras vivas. Gosto disso. É uma distração silenciosa, diferente das risadas e do bater de brinquedos.

    A névoa negra também está ali. Mesmo quando não posso vê-la, eu a sinto. Um peso sutil, uma presença constante que se aninha dentro de mim. Ela não se move muito durante o dia, apenas reage quando a chamo.

    Passo a mão sobre o peito, sentindo uma leve oscilação sob minha pele.

    ‘Você está ouvindo meus pensamentos?’

    Nada responde. Mas a sensação de algo próximo, atento, permanece.

    ‘Bom, acho que consegue me entender… Decidi que te darei um nome, por causa da sua aparência. Seu nome será Nytheris, uma junção de night e aether.’

    Uma pulsação quente percorre meu peito, e noto uma irradiação de satisfação que não é minha. Mas Isso me deixa feliz.

    Fecho os olhos, deixando minha respiração se estabilizar. Um dia, entenderei exatamente o que essa coisa é.

    Um dia…

    A voz de minha mãe me tira desses pensamentos. Abro os olhos e a vejo vindo até nós. Seu olhar passa por Elijah e Mael primeiro, avaliando se estão bem, e depois pousa em mim.

    Ela se agacha, passando a mão em meu cabelo com um toque suave. Seus lábios se movem, e, embora eu ainda não compreenda todas as palavras, reconheço o tom: carinho misturado a uma leve preocupação.

    ‘Algo sobre… dormir no chão?’

    Antes que eu possa reagir, ela me pega no colo e me carrega de volta para o quarto.

    A névoa negra se recolhe ainda mais dentro de mim, como se instintivamente se escondesse do toque dela.

    Fui colocado no berço, e o calor de um cobertor leve me envolve. Meus olhos pesam quase imediatamente.

    O cansaço me vence antes que eu possa pensar em mais alguma coisa.

    (…)

    A escuridão da noite envolve o quarto como um manto silencioso. O ar frio roça minha pele, e o único som é a brisa suave passando pelas frestas da janela.

    Abro os olhos lentamente.

    Algo me despertou.

    Minha respiração está calma, mas meu coração bate de forma estranha, como se percebesse uma mudança sutil ao redor.

    Então, percebo.

    Nytheris não está aninhado em meu peito.

    Levanto um pouco a cabeça, piscando para ajustar minha visão à penumbra do quarto. E então, eu o vejo.

    Nytheris paira ao lado do berço.

    E, pela primeira vez, ouço sua voz.

    — …Flügel… —

    Meu corpo congela.

    ‘Você… falou?’

    E, em seguida, com hesitação, outra resposta sussurrada:

    — …Sim… —

    Nytheris está desperto.

    O choque percorreu minha espinha. Eu já sabia que Nytheris era mais do que um simples fragmento da fonte de poder deste mundo, mas… ele estava realmente consciente? Seria capaz de pensar? De se comunicar?

    Meus lábios se entreabriram, várias perguntas surgindo ao mesmo tempo, mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, uma onda de exaustão me atingiu novamente.

    Nytheris se aproximou, sua forma negra se condensando antes de deslizar lentamente de volta para o meu peito.

    A última coisa que ouvi, antes de meu corpo ceder ao sono, foi sua voz agora um pouco mais firme, mas ainda carregada de incerteza.

    — …Acordado… finalmente…

    E então, a escuridão me envolveu mais uma vez.

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