Índice de Capítulo

    Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
    Aspas duplas para conversa mental: “
    Travessão para falas em voz alta: —

    A criatura jazia derrotada, os trapos negros espalhados ao redor do corpo inerte. A máscara de osso, rachada, parecia sem vida, com a adaga de Nytheris cravada em sua face.

    Eu o encarava, o peito subindo e descendo em respirações curtas, o suor pingando da testa enquanto minha mente girava. O alívio da vitória durou pouco. O peso das mortes que eu sofri ainda me esmagava, cada ferimento fantasma pulsando como se fosse real.

    Nytheris estava postado ao meu lado, sua forma etérea tomando forma lentamente. Sua roupa estava rasgada na manga, seus olhos negros me fitavam com uma mistura de cautela e algo que eu não conseguia decifrar.

    — Flügel — disse ele, a voz ecoando nos meus ouvidos antes de se dissipar — Você está bem?

    Não respondi. Minhas mãos tremiam, os dedos cerrados em punhos enquanto eu tentava afastar as lembranças cruéis.

    ‘Três vezes. Eu morri três vezes e agora estou aqui, vivo, como se nada tivesse acontecido… por que isso é possível?’

    — Eu… morri e retornei? — Minha voz falhou, e uma risada seca escapou, ecoando estranhamente no silêncio que caiu sobre a floresta. Cada morte ainda estava fresca em minha mente. Eu sabia que algo dentro de mim havia quebrado além do reparo.

    Olhei para minhas mãos trêmulas e pálidas, as palmas úmidas de suor frio.

    Fechei os olhos, tentando ordenar os pensamentos. Mas, ao abri-los, a floresta havia sumido. Um vazio escuro me engoliu, silenciando até o som da minha respiração.

    – Onde eu estou? – perguntei-me, tentando olhar para os lados, mas sem um corpo, parecia impossível. 

    O vazio me sufocava, um negro absoluto que devorava até o eco dos meus pensamentos. De repente, presenças colossais emergiram. Imponentes, esmagadoras, sem forma, como sombras de deuses esquecidos.

    Elas me cercavam, julgando-me, como se eu fosse uma peça errada em seu jogo incompreensível.

    — O que vocês querem de mim? — Sibilei, a voz ecoando na escuridão, mas sem resposta imediata. O silêncio era opressivo, e o peso das presenças aumentava, como se estivessem se aproximando, apertando o cerco. E algo no fundo do meu ser apertou.

    Dezenas de vozes falando em uníssono quebraram o silêncio:  — Você é o troféu disputado entre os deuses, e seu destino é selado no silêncio. Quebre-o, e o ciclo te deixará em um inferno de desespero sem fim.

    ‘Troféu disputado entre os deuses? Meu destino selado no silêncio?’ Meus pensamentos giravam, buscando sentido naquelas palavras enigmáticas. Será que eu estava preso a esse ciclo de mortes e retornos, condenado a não falar sobre ele?

    — Por quê? — perguntei, ou pelo menos tentei, mas antes que pudesse formular outra palavra, a escuridão se despedaçou. Uma luz caótica explodiu ao meu redor, um turbilhão de cores que queimava os olhos e consumia o vazio. Senti minha consciência sendo arrastada, e então… —

    Abri os olhos com um suspiro rouco, o ar frio da floresta enchendo meus pulmões. Estava de pé novamente, a carruagem estilhaçada à minha frente, os corpos dos mineradores espalhados ao redor. A estranha criatura caída no chão,  a adaga de Nytheris ainda cravada em sua face. Tudo exatamente como antes.

    — Flügel — Me chamou, a voz atravessando o zumbido em meus ouvidos — Você está bem?

    — … Você tinha me perguntado isso agora há pouco? — Engoli em seco. Aquela pergunta de Nytheris trouxe uma sensação de déjà-vu, algo que eu sentia sempre que era dilacerado pelo Vulto Esfarrapado e voltava.

    — Não? Você está pálido, Flügel. Ficou aterrorizado com esse monstro? Mas ele não era tão forte… eu o derrotei em instantes — Ele disse se aproximando de mim — Bom, vamos embora. Encontramos o que causou isso e confirmamos que a carruagem não voltou porque sofreu um ataque.

    A adaga cravada na máscara do Vulto Esfarrapado desapareceu, desfazendo-se em fumaça negra e deslizando para o corte no hanfu de Nytheris, restaurando-o como se nada o tivesse rasgado.

    — É… eu fiquei assustado — falei, olhando para o cadáver. Tentei me aproximar do corpo, mas hesitei, com receio de que aquela coisa se levantasse e começasse a me despedaçar outra vez. Mesmo assim, me forcei a avançar. Sabia muito bem que se continuasse fugindo dos meus medos, eles só piorariam, como acontecera com a fobia social.

    O Vulto Esfarrapado estava no chão como um inseto dissecado, suas formas retorcidas revelando uma anatomia que desafiava a lógica. 

    Mesmo morto — se é que “morte” se aplicava —, sua presença era um erro persistente, como uma mancha de tinta em um pergaminho sagrado. A máscara de osso branco, agora rachada pela adaga de Nytheris, não refletia nada. Era lisa demais, artificial, como se tivesse sido moldada por mãos que nunca conheceram humanidade.

    Aproximei-me, os joelhos ainda trêmulos, e empurrei o cadáver com a ponta de um galho seco. Nada aconteceu. Apenas um farfalhar seco ecoou, como se seus trapos fossem folhas de outono petrificadas.

    — O que você está fazendo? — Nytheris perguntou, pairando próximo, seu hanfu já intacto novamente.

    — Quero entender o que ele era — respondi, a voz mais firme do que eu esperava.

    Ajoelhei-me, ignorando o cheiro azedo e metálico que emanava do corpo. Suas mãos de seis dedos foram o primeiro detalhe que chamou minha atenção. Os ossos não eram brancos, mas acinzentados, com veias negras entrelaçadas como raízes. 

    As garras, ainda afiadas, tinham uma textura vítrea, quase como quartzo, mas com fissuras internas que brilhavam em roxo profundo quando a luz as atingia.

    — Não toque nelas — Advertiu Nytheris, mas eu já as examinava com o graveto. Ao roçar uma garra, ela vibrou, emitindo um zumbido agudo que fizeram meus dentes rangerem e meus músculos ficarem tensos.

    Os trapos que antes flutuavam ao seu redor haviam se desintegrado em fios de mana estagnada, mas sua túnica esfarrapada ainda estava intacta. Puxei-a com cuidado, revelando um torso ossudo coberto por símbolos gravados. Runas desconhecidas, angulares e assimétricas, que pareciam arranhar a superfície dos ossos em vez de estarem entalhadas.

    — Você reconhece isso? — perguntei, apontando para as marcas.

    Nytheris inclinou-se, os olhos estreitando-se. — Não, mas parecem… rasuras, como se algo tivesse tentado apagar um texto maior.

    A máscara, agora próxima de mim, chamou minha atenção novamente. Sem reflexos, sem detalhes, apenas um oval branco e liso, rachado no centro. 

    Com o graveto, ergui-a cuidadosamente. Por trás, onde um rosto deveria estar, havia apenas escuridão compacta, como alcatrão espesso. Porém, ao inclinar a cabeça, algo escorreu, um líquido negro e viscoso que fumegou ao tocar o solo, corroendo a vegetação instantaneamente.

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